2 Davi

Meu celular passa pela mão de todos e rimos após ler a mensagem. Sei bem que o objetivo do projeto não é esse, deveríamos apresentar algo relativo às aulas, assim como estamos fazendo agora, criando um conteúdo matemático para facilitar o estudo e apresnera-lo no dia, a diretora deve ficar uma fera com o comitê de formatura, mas concordo, vai ser muito bom ver isso, amanhã todos estarão eufóricos como se isso fosse transformar a vida deles para sempre.

Observo a expressão de cada um do grupo que está na minha frente. Ísis é praticamente indiferente, Miguel ri como um idiota, Emanuel está soltando algumas piadinhas, Janaína está se divertindo também e lembrando sempre que mentir é pecado.

— Isso claramente saiu da minha sala. — Miguel comenta

Conheço a fama da turma de Miguel, todos os professores dizem que eles são incontroláveis, o terrível terceiro B. O terceiro ano da Escola Metódica é dividido em três turmas, A, B e C, as turmas são pequenas, apenas quinze pessoas por sala, isso ajuda ainda mais a separarem os alunos por seu comportamento. A turma A é conhecida pelo seu bom desempenho, notas altas e o claro sucesso no Enem, a turma B fazem partes os indisciplinados, eles têm notas baixas, comportamentos duvidosos, e a minha turma, o terceiro C, fazem parte apenas os na média, nem fede, nem cheira, raramente estamos metidos em alguma confusão, mesmo Pedro sendo da minha sala, sabemos que ele está lá, pois em outras arranjaria problemas maiores, acho que por isso quase ninguém me conhece, tirando a parte de eu me excluir propositalmente de qualquer momento de atividade de socialização fora do meu grupinho de amigos.

— Qual é o sua mentira ou segredo, Davi? — A voz de Ísis me rouba dos meus pensamentos, percebo que eles já estão em outra conversa

— Hum... — passo a mão no meu cabelo e me pego pensando, eu tenho alguma mentira que pode ser revelada? — Nenhuma.

— Temos um santo aqui! — Miguel quase grita

— Para falar a verdade eu também não tenho nenhum. — comenta Janaína — Minha vida é um livro aberto.

— Ok, ok. — Miguel arruma sua postura e se inclina para Janaína — Então é uma pura verdade que você ainda é virgem e que nunca beijou ninguém na sua vida toda?

Ele dispara e encaramos Janaína, eu gosto de como o cabelo escuro e ondulado dela contrasta com sua pele morena, como seus olhos escuros parecem tão puros quanto ela, o colar de crucifixo brilha com a luz, Janaína ri com a pergunta, revirando levemente e com suavidade os olhos.

— Totalmente verdade. — Diz ela se apoiando sobre a mesa e dando um sorriso bonito — Estou esperando a pessoa certa e sei que quando ele aparecer, vai esperar por mim.

— Pura e casta. — responde Ísis, não é um deboche, ela simplesmente constata

— E você Ísis? — Janaína assume a frente, não há tom de provocação — É verdade que você ficou com o Antônio, Daniel, Carlos, Luan, Mateus e até o Pedro?

Ela solta uma risada quase debochada, Ísis também é bonita, o cabelo castanho-claro cacheado está preso em um rabo de cavalo, as marcas em suas mãos da briga com Pedro contrastam com sua pele branca, seus olhos esverdeados, acompanham o sorriso tosco que ela coloca no rosto.

— Falando assim nem parece que teve um intervalo de tempo, sabe essas festinhas de aniversário… — Da de ombros — E o Pedro, foi a muito, muito, tempo, só uma bitoquinha. Mas eu agora só quero saber do Luís.

— Só porque eu queria um beijinho… — Emanuel brinca e todos rimos

— Emanuel… — Ísis aponta para ele — É verdade que você é apaixonado pela Valéria? A Valéria do comitê de formatura.

— Todo mundo sabe que eu sou apaixonado por ela, até ela mesma deve saber. — Ele ri, arrumando a blusa da farda e o cabelo preto, noto que Ísis está quase soltando algum concelho sobre relacionamento — E sobre isso, eu já tentei conversar com ela sobre, mas fui dispensado, três vezes.

— Três vezes!? — Janaína franze a testa

— Você tentou três vezes? — Ísis questiona — Que tipo de burrice é essa!? Ela não te quer, tá na cara né!

— Então Miguel… — Emanuel desvia do assunto, tentando fazer uma cara de malvado — É verdade que você roubou as provas de história, mas ficou com remorso e devolveu tudo, antes que fosse tarde demais?

— Achei que já tivessem deixado isso cair no esquecimento. — É, sobre essa história eu ouvi falar e em variadas versões, incluindo uma que ele foi pego roubando, outra que ele usou só para ele as provas — Eu roubei e devolvi, isso foi no primeiro ano, desde o ano passado estou controlado e não faço besteira.

— É verdade. — Emanuel concorda analítico

— Voltamos ao Davi. Eu nunca escutei nada sobre você, então se não tem mentiras, qual é a sua verdade? — Ísis pergunta curiosa

— Eu sou o cara que passa despercebido, ninguém repara quando eu colo nos testes, ou quando mato a aula de educação física, ninguém repara em mim, essa é a verdade. — É realmente tudo verdade, estou cômodo no meu papel de pária desde a quinta série

— Então, ninguém tem uma mentirinha, nenhum segredo? Sabe, somos adolescentes, uma besteirinha qualquer.

— Não ter contado para minha mãe que eu fiquei com três na média de matemática da unidade passada conta? — Emanuel pergunta balançando as mãos — Ela mal olha meu boletim, ela não perguntou, eu não falei…

— Nossa, e eu achando que a minha média foi baixa. — Concordo com Ísis, logo de início ficou claro que nós estávamos ali atrás de nota

— Tem que ser um segredo que te afete na escola, bom o suficiente para ser exposto para todos… — Jana ri

— Você acha que isso realmente vai nos afetar? — Emanuel solta — Quem a gente beijou, quem a gente não beijou, como nos comportavamos exatamente, quando entrarmos na faculdade vai ser somente lembrança, é claro que se não for nada que suje a nossa ficha com a polícia.

— Somos o clube dos sem segredos. — Janina fala, todos levamos um tempo para entender, mas depois ligamos os pontos

— O clube dos sem segredos. — Emanuel ri

— Vocês são tão idiotas. — Miguel revira os olhos

Eu tinha gostado do nome, O Clube dos Sem Segredos, eu gostei de estar ali reunido conversando sem nenhuma pressão ou desespero por puxar o saco da professora primeiro, mas estava na minha hora, já eram sete e meia, daqui que eu chegasse em casa e começasse a fazer as tarefas para amanhã, já estaria na minha hora de dormir, não tive receio em atrapalhar aquela conversa maravilhosa e lembrar o motivo de realmente ainda estarmos ali.

— A professora não deu sinal de vida?

— Não… — Emanuel bate a mão no bolso da calças — Cadê a merda do meu telefone? Alguém tem que pedir por liberação. — Ele pega a mochila e começou a vasculhar

— O Pedro quebrou meu celular… — Infeliz, eu daria esse nome para o dia de Ísis na escola

Eu sei que Ísis não é uma flor, mas nunca a vi começando nehuma confusão, Luís e Pedro são da minha sala, na hora em que a briga dos dois começou ninguém entendeu direito, Luís estava apenas saindo da sala quando Pedro avançou contra ele. Não fez sentido, como sempre, mas essa do celular da Ísis foi gota de água, a sala inteira o ignorou quando Pedro voltou para sala, até mesmo os amigos dele o zoaram e acharam que passou do limite.

— O meu está sem bateria. — Miguel fala — Eu tomei um puxão de orelha por usar o celular, sendo que não fui o único.

— É por isso que deixo o meu em casa… — Todos nós encaramos Janaína, chocados, como se ela fosse um alien naquela mesa

Quem não leva o celular para a escola? Existem pessoas que levam muito a sério esse papo de ser um aluno perfeito. Pego meu celular e dígito rapidamente para a professora no grupo.

— Pronto, acabamos de pedir por liberação.

A professora não demora a responder, aparentemente ela teve um problema com o carro, estamos libertados, mas amanhã teremos outra reunião, ninguém parece se importar muito, estamos arrumando as coisas ainda falando e envolvidos com a mensagem do projeto.

— Quem vai ser o primeiro a ter seu segredo revelado?

— Tanto faz. — Solta Ísis

— E se for o Luís? — Provoca Miguel — E se ele estiver te traindo?

— Claro, com a Luciana! — Provoca de volta

Ísis e Luís, Miguel e Luciana, são os casais que vem sobrevivendo, claro que tem alguns mais, mas nenhum chama atenção como eles. Ísis e Luís foram improváveis, principalmente depois do boato que Luís estava saindo com um cara, mas os dois estão sempre por aí se beijando e andando de mãos dadas, Miguel e Luciana, é casamento na certa por mais que nenhum dos dois queira assumir isso, Luciana é da minha sala, eu sempre a vejo falando apaixonadamente dele para as amigas.

— Decidiram como vão embora? — Janaína começa a se levantar — Meu pai vem me pegar, só preciso ligar para ele, se quiserem carona, nós nos apertamos…

— Pode ser. — concordo, não estou a fim de esperar ônibus sozinho

— Espera… — Emanuel continua mexendo na mochila fervorosamente — Minha mãe vem me pegar..., mas preciso do meu celular…

— Não deixou em casa? — Pergunto

— Não… Eu usei ele de tarde… — Ele começa a tirar tudo de dentro da mochila e começa a dar para Miguel segurar

— Um de seus amigos deve ter pego! — Ísis o apreça

— Liga pelo meu. — Ofereço

Saímos da biblioteca e vamos para a entrada, Emanuel mesmo contrariado aceita usar o celular jogando tudo de volta na mochila, Janaína também usa o meu para ligar, mas não consegue falar com ninguém de casa, Ísis também resolve ligar para o pai, mas ele ainda está no trabalho e vai demorar, ela revira os olhos.

— Olha só! — Ísis grita — Alguém tem que encontrar o Pedro no lugar de sempre! Quando você chegar em casa!

— Me dá isso! — Tomo o celular da mão dela, ela leu a mensagem na barra de notificação

— Vocês são amigos? Ou sei lá, qualquer coisa?

— Tratamos de negócios.

— Nós somos adolescentes. — Ísis me encara e coloca as mãos no meu ombro — Dependendo dos negócios não é para gente.

— Eu não vendo droga, ok?

Uma gargalhada rola solta. Meus negócios com o Pedro não são nada de mais, ele apenas precisa de um amigo as vezes, principalmente depois que ele surta com alguém, nosso ponto de encontro é uma praça que fica entre a minha casa e a dele. Pedro tem problemas de relacionamento e convivência, porém os pais deles só enchergam como uma rebeldia de adolescente, quando ele era criança, era apenas criança traquina, a escola tentou conversar com os pais dele para que procurassem ajuda especializada, mas ficaram extremamente ofendidos e então a diretora finge que nada mais está acontecendo. Reflito um pouco, é melhor ir a pé, saindo daqui já posso m****r mensagem para que ele me espere na praça.

Chegamos na porta da escola e então Miguel a força, mas não consegue abrir, tenta de novo, a porta de madeira treme, mas não abre. Ele olha para nós, e então Ísis vai até à porta e faz o mesmo, a forçando e puxando com força. Nada. Nenhum movimento.

— Nem vem. — Ísis força a porta — A gente está trancado? Sério mesmo?

— Com licença… — Emanuel vai até à porta e tenta abri-lá novamente de todo o jeito e também não consegue — Cadê o porteiro? A professora? Não é possível que nem a tia da limpeza está aqui.

Barulho de passos fortes, nos viramos, não tem ninguém além de nós, mas o barulho continua, parece vir do banheiro. Ok, isso está muito estranho. Ísis toma a dianteira e começa a andar lentamente para o banheiro procurando pelo barulho e então a luz cai, está tudo escuro, Janaína da um grito assustado.

— Fica todo mundo junto! — Miguel diz — Liga a lanterna do celular!

Pego o celular, mas alguém o toma da minha mão com facilidade.

— Para de pisar no meu pé! — Ísis grita

— Devolve meu celular!

— Não me empurra! — Miguel grita

— Quem passou a mão na minha bunda!? — Jana grita em ódio

Tento falar algo, mas sinto uma mão envolver minha boca, tento morder, mas a mão se afasta rapidamente, alguém se choca com as minhas costas, alguém segura meu braço, respiro apressadamente, a um barulho longe de onde estamos, escuto uma porta ser aberta e fechada.

— Que brincadeira é essa!? —A luz volta. Janiana está agarrada ao meu braço, ela sorri envergonhada e me solta, Emanuel balança a cabeça e volta a forçar a porta ainda fechada, batendo nela com força.

— O que é aquilo? — Miguel pergunta, há algo no meio do corredor

Ele e Ísis começam a andar em direção a aquela coisa, Janina se afasta indo até à janela para olhar lá fora, Emanuel ainda está na porta. Miguel se agacha perto daquilo, uma fumaça amarela estranha começa a subir, Ísis e Miguel vão para trás de vez, aquilo me atinge e começo tossir, a luz cai de novo. Uma das meninas grita, forçam a porta rápidamente, sinto um frio na espinha, não vejo nada, há um cheiro estranho, alguém segura meu braço dessa vez com força e começa a me apertar, a mão enluvada consegue segurar minha boca, a força é estranha, sou arrastado para trás e escuto uma porta ser aberta, a única porta perto da porta de saída que temos é a sala da diretoria, sou jogado e bato contra o chão.

Uma lanterna é ligada no meu rosto, abaixo rápido a cabeça, posso escuta-los lá fora perguntando um ao outro onde estão, e então sinto algo entrar e ser enterrado na minha barriga. Arde. Dói. Não consigo fazer nada além de envolver minhas mãos nos ombros de quem fez isso, escuridão, sinto o gosto de sangue na minha boca, não tem nada que eu consiga fazer quando sinto a lâmina se mover, me sinto rasgado, aberto, humilhado, o movimento se repete e depois sinto o frio da lâmina no meu pescoço. Solto quem fez isso e levo as mãos ao corte na barriga, tanto sangue…

Engasgo. Não consigo respirar. Tento me levantar, me sento, mas joelhos começam a falhar e então volto a me deitar no chão. Luto para não fechar os olhos, para concentrar a força em alguma parte do meu corpo, mas é impossível… alguém bate a porta… Tento procurar algo com as mãos para me segurar, mas não acho, tento falar algo, mas minha garganta parece estar machucada também… Cada vez mais o ar se torna escasso… Não consigo respirar, nem enchergar…

O escuro se torna mais escuro.

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