4 Ísis

Estou na minha sala, colocando as coisas na mochila com raiva, ninguém fala comigo, as pessoas estão arrumando suas coisas e começando a sair, paro por um momento para respirar, espero que as pessoas terminem de sair e então me sento e abraço a mochila. Davi estava morto e essa notícia foi assustadora. Me sinto observada, olho para a porta e vejo Pedro parado ali, ele entra e anda até a minha frente, ficamos em silêncio por um tempo. Eu me levanto e o abraço, ele retribui afundando o rosto no meu ombro.

Nós odiamos, mas já fomos muito amigos, e nesse momento nossas muralhas parecem desarmadas. Pedro me solta e então nos encaramos, seguro a mão dele, é como se eu estivesse vendo o Pedro, meu melhor amigo de 10 anos, eu não sei muito sobre o que ele sente ou o que faz agora, são praticamnte sete anos sem nós aproximarmos assim, mas Davi era muito importante para ele. Pedro solta minha mão e sem falar nada continua ali olhando para mim.

— Estou aqui, ok? Para você.

— Eu não preciso! — Ele se contradiz

— Eu realmente… Não acho que devemos manter a nossa pose agora Pedro, foda-se que a gente briga, bate… Eu sei que você está sofrendo, conheço você.

— Ísis… — Ele se aproxima de novo, mas dessa vez seu rosto se torna de raiva, ele agarra a gola da minha blusa e me puxa em direção a ele, fico na ponta dos pés — Se eu souber que você tem alguma coisa com o que aconteceu com o Davi, vai se ver comigo. Se eu pensar, imaginar, ouvir alguém falar seu nome relativo a tudo que está acontecendo, não vai ser uma dessas nossas briguinhas de escola…

Agarro as mãos dele e arranco da minha blusa, respiro apressadamente, e então aponto o dedo para o rosto dele, porém volto para a minha mochila e término de colocar as coisas dentro, a jogo no ombro e começo a sair da sala.

— Por um segundo, eu achei que estavamos sendo verdadeiros um com o outro! — rosno de raiva — Por um momento… Voce é um babaca.

O deixo sozinho na sala e empuro quem está pela minha frente no corredor, todos olham para mim, estou transpirando e com a raiva estampada no rosto, a lixeira é a primeira coisa que vejo pela frente, a chuto, o lixo se espalha, alguns alunos tomam susto, saio da escola e começo a ir a pé para casa.

Chego em casa nada animada, minha cabeça parece que vai explodir, aquela foto de Davi… Valéria e seu e-mail fora de controle, um caos. Meu pai está trabalhando, a mãe de Alexandre também, e a primeira coisa que vejo na sala são sapatos largados, masculino e feminino, reviro os olhos, não é possível que esses dois estejam de namorico depois de todos esses acontecimentos, eu só preciso chegar no meu quarto para ter paz.

Passo pelo corredor em silêncio, a porta do quarto de Alexandre está entreaberta, os barulhos que ele e Fani produzem ali dentro me fazem andar ainda mais rápido para o meu quarto, onde fecho e tranco a porta, ainda da para escutar uns barulhinhos, procuro meu fone revirando as coisas do quarto que está há bagunça, arrumo minha cama, fecho a porta do guarda-roupa e pego as roupas do chão e as dobro, colocando em cima da cadeira da mesinha de estudos, acho o fone perdido no bolso de uma blusa e então começo a procurar meu celular, até lembrar que não tenho mais um, evito gritar de raiva, odeio Pedro, odeio de mais, ligo o notebook e me sento na cama, coloco os fones e ponho uma música qualquer.

Eu não sou uma maluca surtada em todos os momentos, eu acho.

Tudo agora gira em torno de Davi, todas as postagens, mensagens e imagens, todos dizem como ele era um bom garoto, um bom filho, fotos com amigos, fotos das turmas que ele já tinha passado. Os blogs de notícia local vervilham com as informações, abro o primeiro que acho uma notícia sobre a morte dele, claramente sensacionalista criando toda uma teoria sobre a foto tosca de mais cedo, antes mesmo de ler o texto já acho insuportável, a foto que foi mandada para nós está borrada no começo da reportagem, há também fotos dos alunos saindo da escola, mal se preocupam em borrar os rostos, foco no texto.

“O que está acontecendo com a Escola Metódica?

Como a morte de um aluno pode ter sido noticiada em primeira mão para todos os alunos! Para todos, desde a quinta série até o terceiro ano.

Ser a melhor escola da cidade e a terceira melhor em notas do Enem na Bahia, não garante nada, nossos filhos não estão seguros.

Talvez eles recebam todo dia, imagens desse tipo.Talvez a morte seja um assunto banal entre os alunos.

Os pais deveriam abrir seus olhos.”

Não dou risada, a escola pode até ter seus defeitos, mas não deve ser em si culpada pelo que aconteceu. Estou tentando ainda assimilar as coisas que aconteceram agora, um corpo anunciado para toda a escola como uma bela brincadeira, o clima de ontem… A notificação da mensagem de Luís me anima, estava tão chocada que o larguei para trás, abro a chamada de vídeo e posso ver o dono do meu coração.

— Você sumiu. — Ele diz sorrindo

— Eu sei! Estava tentando descobrir quem mandou a mensagem.

— Eu soube que você estava chutando lixeiras pela escola…

— Foi culpa do Pedro… Você acredita que ele foi atrás de mim, para me ameaçar? Como se eu tivesse algo com a morte do Davi.... Ele só me tirou do sério.

— Típico.

— Juntou a Valéria tendo problemas para entrar no e-mail, Pedro me enchendo, todos da escola me encarando, acabei não te esperando, desculpa.

— Tá tudo bem, eu sei que as coisas não estão nada fácies, mas a Valéria conseguiu entrar no e-mail?

— Não, nadinha, a Valéria disse que não consegue entrar no e-mail… Sei lá, acho que deveriam deixar para a polícia.

— Mas você sabe que isso vai apertar pro seu lado, né? Só vocês quatro estavam lá, e o ps da mensagem dizia claramente sobre ter o esfaqueado na escola.

— Deve ser uma piada, porque ninguém da escola faria uma coisa assim… É um crime… Também, espero que não seja uma piada de mal gosto.

— Meu irmão estava aqui soltando fogo, ele me fez um interrogatório sobre a escola, sobre tudo que acontecia lá dentro, eu tentei explicar que eu e o Davi tínhamos uma vivência diferente... O Alberto já quer brigar com a escola.

— Dessa vez eu vou ter que concordar com seu irmão, o que aconteceu foi dentro da escola, se não foi lá, foi por culpa dela. Mas não consigo entender o motivo.

— Alberto, até me perguntou se tínhamos algum ritual, alguma iniciação, algo relativo com o número 1 no rosto… Mas a gente não faz nada assim.

— O Davi estava ontem comigo na escola, nós conversamos normalmente… A bomba de fumaça, as luzes apagando… Foi como um filme de terror.

— Acha que alguém armou? Para pegar o Davi?

— Não sei. — Coço a cabeça, nos encaramos e ficamos em silêncio por alguns segundos

Observo seu cabelo cacheado, sua boca, seus olhos castanhos pequenos e me pergunto quando fiquei tão apaixonada assim. Temos tanta coisa para dizer que mal vemos a hora passar, quando a mãe dele interrompe nossa conversa já passa das seis da tarde, nos despedimos e eu desligo o notebook, tirando os fones e podendo finalmente escutar o silêncio da casa. Puxo de debaixo da cama uma caixa, abro e tiro de lá meu caderno mais recente, a tantos que já perdi a conta. Abro em uma página em branco e escrevo a data de hoje.

Isso é um diário, e todos esses outros também são, começou quando eu tinha dez anos, um dos conselhos da psicóloga que eu frequentava era colocar os meus sentimentos no papel e acabei passando a narrar meu dia a dia, eu parei de frequentá-la quando tinha treze, na época em que meus pais se separaram, mas não parei de escrever. Se tornou um hábito.

Começo a escrever as primeiras palavras, ou melhor, palavrões sobre esse dia, meu momento não dura muito, batidas na porta roubam a minha vaga concentração, abro a porta e vejo Alexandre, os cabelos castanhos estão tão bagunçados e a uma enorme marca de mordida no pescoço, a qual ele não faz questão de esconder.

— O Pedro ligou para mim, atrás de você, eu mandei ele ir se lascar.

— Fez maravilhosamente bem. — É a única resposta que consigo dar, Pedro ligando atrás de mim, deve está querendo que eu bata nele

— Minha mãe e seu pai estão te chamando na sala... Estão com cara de quem vai passar sermão enorme.

— Já tô indo…

— Ísis… Com certeza é sobre o Davi… — Ele me encara com a mesma expressão que as pessoas da minha sala me olharam enquanto eu arrumava a mochila — O que aconteceu lá?

— Ele só sumiu.

Fecho a porta, por que é tão difícil acreditar nisso? Pego meu caderno, guardo na caixa e a coloco em baixo da cama, ando até a sala, Maria, a mãe de Alexandre, conversa com Fani, meu pai mexe no celular sentado no sofá e me encara.

— Como foi seu dia?

Típico. Ele sempre quer que eu descreva meu dia, até chegar onde ele quer, por que não pode só ir direto ao ponto? Principlamente hoje, que todo mundo sabe o que aconteceu claramente.

— Uma merda.

Sinto o olhar pesado de Maria e de meu pai. Sempre esqueço que dentro dessa casa não se pode falar palavrão, chega até ser irônico, já que todos da família dizem que eu herdei a boca porca de papai. Alexandre aparece, agora com o cabelo arrumado, e diz que vai sair com Fani para algum lugar perto, Maria não o impede, apenas se junta a meu pai no sofá, eu me sento e os encaro.

— A escola nós informou sobre a morte do seu colega… e nós dois achamos que deveriam, conversar sobre o ocorrido. Você estava na hora em que ele sumiu, certo? — concordo com a cabeça — O que aconteceu lá?

— A porta de saída estava trancada, luz apagou e o quando acendeu tinha uma bomba de fumaça, a luz apagou novamente e ele simplesmente não estava mais lá...

— A Fani me mostrou uma mensagem que foi mandada para todos os alunos... — Maria variava entre apertar as mãos freneticamente e jogar o cabelo preto alisado para trás — E você brigou com aquele menino, o Pedro, pela manhã...

— O quê? — Disse, olhando de um para o outro, tentando entender exatamente o que queriam — Eu vim direto para casa. Pedro quebrou meu celular, então eu esperei o grupo do projeto, e depois vim para casa. E por sinal, acho que você deveria ir à escola, pai, Pedro quebrou meu celular…

— Mas em relação ao Davi, Ísis, você brigou com ele também?

— Não… Claro que não, ele nunca fez parte dos insuportáveis. — Os dois se entreolham — O quê? Acham que eu tenho algo com a morte dele?

— Não! — Maria quase saltou do sofá — Nós só queremos saber como você está se sentindo em relação a isso tudo… — Penso um pouco, talvez realmente não seja uma acusação

— Eu não conhecia o Davi, nós conversamos algumas vezes por causa do projeto de matemática… — Suspirei — Eu estou triste com isso… Ele parecia ser legal.

— Eu sei minha filha. — Meu pai tenta parecer o mais reconfortante possível

Ele sorri, segura na minha mão e se levanta, Maria faz o mesmo em seguida e os dois vão cochichando até a cozinha. Eu acho Maria legal, porem um pouco sonsa, se eu tivesse meu telefone, ia m****r uma mensagem para minha mãe, talvez ela soubesse me abordar direito, sem parecer uma acusação. Para falar a verdade seria um ótimo momento para minha mãe morar, pelo menos, na cidade vizinha, ela está no interior de São Paulo trabalhando no setor administrativo de uma empresa, eu preferi ficar com meu pai já que minha mãe não tinha nenhuma certeza de que esse emprego seria permanente ou que teria um lugar para ficar por lá. Continuo sentada no sofá em silêncio, até que Alexandre entra pela porta, nós estamos tentando equilibrar nossa relação, não da para falar que só porque nossos pais estão juntos nós nos amamos, mas também nada de ódio mútuo, ele sorri e me estende uma sacola de plástico com dois pastéis.

— De nada irmãzinha. — Ele ri irônico

— Eu sou mais velha que você. Quatro meses.

— Come seu pastel ai. — Alexandre pega o celular e depois me encara — O comitê de formatura quer fazer uma homenagem pro Davi depois do velório, a Valéria quer saber se você tem alguma contribuição… Alguma mensagem...

— Eles já tão pensando nisso?

— Uma hora ele vai ter que ser enterrado…

— Mas com toda essa confusão, já querem pensar nisso? Pelo menos, sei lá, deixassem a poeira abaixar.

— Cada um está levando de um jeito, mas você tem algo para falar?

— Não. O que eles querem que eu diga? Para falar a verdade, eu acho que isso nem deveria acontecer, deixa um ou outro amigo dele falar e pronto. — Mordo o pastel com vontade

— Pedro está me ligando de novo…

— Ele quebrou meu celular e agora quer falar comigo!? Me da aqui.

Atendo a ligação, alguns segundos de silêncio dos dois lados das linhas e Pedro logo se pronuncia.

— Ísis, eu preciso falar contigo.

— Porra vei, tu destrói meu celular, me trata como se eu fosse uma assassina e agora quer falar comigo!?

— Me escuta desgraça, na Quinta que vem, no intervalo da tarde, me encontra lá na quadra.

— Vai sonhando, você já não tinha qualquer chance de se reconciliar comigo e hoje perdeu até a canche que não existia.

Desliguei o celular e o joguei sobre a mesa, Alexandre parece pensar um pouco, e então solta.

— Qual é o motivo desse ódio todo mesmo?

— Nenhum exato.

— Mas vocês já foram amigos?

— Extremamente próximos, mas o Pedro tem essa personalidade meio desestabilizada, na época que os meus pais se separaram, estava acontecendo algo com ele também, as coisas desandaram por aí. Ele virou esse valentão, eu defendo os meus e é isso.

— Os seus são somente o Luís, no caso.

— Ainda bem que você sabe.

— Ísis, é verdade que o Luís e o irmão do Pedro…

— Sim, mas o que tem a ver?

— É por isso que o Pedro odeia ele…

— Claro que não, é mais chatice do Pedro, quando o Luís e o Victor terminaram foi super de boa, o Pedro nunca, nunca mesmo, deixou de apoiar o irmão, por incrível que pareça.

— É que o Marco fala coisas absurdas sempre…

— O Marco é um idiota, você mesmo vive falando que ele diz coisas feias sobre a Fani, e ela é sua namorada.

— Ele parou com isso.

— Sei… — Reviro os olhos

— Uma última pergunta. Você acha que foi o Pedro que matou o Davi? — Alexandre morde o pastel disfarçado sua pergunta

— Eu… Não faria sentido… Eu não sei… Não estava pensando nisso…

Termino de comer o pastel e volto para meu quarto. Uma pontinha de curiosidade bate sobre meu peito, mas a afasto, não tem motivo para ir saber o que o Pedro quer, no mínimo ele vai fazer alguma merda pro meu lado. Ligo o notebook de novo, não tenho saco para nada, nem para conversar com Luís, abro o F******k e apenas fico rolando a página inicial, mais posts sobre Davi, metade deles não o conhecia, a outra metade também não, estou imersa naquele momento, as horas passam, estou ficando com sono, olho no relógio, passa da meia-noite, não tenho mais nenhum motivo para ficar acordada, arrumo a cama e penso em sair do F******k quando uma notificação aparece, alguém postou alguma coisa direcionada a mim e me marcou em três fotos. Clico na notificação, quando termina de carregar tomo um susto e quase jogo o notebook no chão. Que porra é essa! Que porra é essa! Que porra é essa!

Não estou nada calma, meu corpo treme, me aproximo de novo, tentando manter a calma para ler a mensagem em letras maiúsculas que vem em cima da foto.

“POR QUE VOCÊ ME MATOU?

O QUE EU FIZ PARA MERECER ISSO?

NÃO EXISTE MAIS CLUBE DOS SEM SEGREDOS JÁ QUE VOCE AINDA NÃO ASSUMIU QUE ME MATOU!”

O que me choca mais é a foto, a uma explosão de comentários e começo a procurar o perfil dos outros. Todos tem o mesmo post. Miguel, Emanuel, Janaína e eu, todos estamos sendo acusados da morte de Davi, pelo F******k do mesmo. Todos temos o mesmo post, as mesmas palavras e a mesma foto tirada de um ângulo horrível, em cima de uma maca de metal, com um fino lençol cobrindo até um pouco abaixo dos ombros, o rosto foi pego de lado, o cabelo cacheado continua ali, o nariz pontudo e a boca fina também, não resta nenhuma dúvida, aquele é o corpo de Davi.

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