Capítulo 1

O início do mês de outubro era como qualquer outra época do ano em Los Angeles, com centenas de pedestres andando às pressas pelas calçadas, ignorando o barulho provocado pelo trânsito sem fim da cidade.

Naquela tarde, como em todas as outras, a preocupação daquelas pessoas era chegar logo aos seus destinos, certamente às suas casas, após um dia exaustivo de trabalho. No entanto, estavam mais apressadas do que de costume, pois temiam que caísse a chuva anunciada no céu, mesmo que essa ajudasse a reduzir um pouco do ar seco característico de Los Angeles.

Para Christopher Lang e Ramona Hale o expediente daquela segunda-feira ainda não havia encerrado. Era preciso que fossem ao necrotério, pois a legista havia ligado para o Departamento de Homicídios e solicitado a presença dos detetives, o que atenderam de pronto.

Lang e Hale formavam uma boa equipe, se davam bem e faziam um ótimo trabalho juntos. A parceria entre eles tinha pouco mais de um ano, mas suas famílias estreitaram laços de amizade. Ele era casado há mais de quatro anos com Olivia, que deixou de lado a carreira de fotógrafa para cuidar da casa, do marido e dos filhos que queriam ter, mas que até então não fora possível. A detetive Hale, por sua vez, depois de dois anos de namoro, casou com o procurador público Anthony, e não pensava em ter filhos tão cedo.

Ao chegarem no necrotério foram recebidos pelo assistente da legista.

— Detetives do Departamento de Homicídios, Christopher Lang e minha parceira Ramona Hale. Ladonna pediu para virmos — disse mostrando seu distintivo, gesto que sua parceira imitou.

— Boa tarde, detetives, sou Peter Marsh, o novo assistente da senhora Ortega. Ela está aguardando vocês na sala de necropsia, vou acompanhá-los até lá.

Enquanto seguiam pelos corredores, Marsh adiantou que se tratava de um casal que sofreu um acidente de carro, que saiu da estrada, capotou e se incendiou. Ambos acabaram mortos. Essas informações, no entanto, deixaram os detetives sem entender o porquê de terem sido chamados.

Ladonna Ortega era uma mulher robusta e de pele bastante clara, com seus mais de quarenta anos e vasta experiência, possuía fama de durona e antipática, mas era bastante eficiente, além de ser familiar aos dois detetives pelo tempo de trabalho em conjunto. Ao ver os detetives, adiantou-se a explicar o caso, chamando-os para perto.

— O homem foi identificado pelos policiais que atenderam ao chamado como William Tompson, tem vinte e cinco anos, não teve qualquer chance, ficou preso nas ferragens e morreu carbonizado. Como podem ver, não sobrou muita coisa dele — disse retirando o lençol que cobria uma das mesas e apontando para uma massa escura em torno de um esqueleto praticamente à mostra.

— Preso nas ferragens enquanto o seu carro é tomado por chamas, desesperador! — observou Lang, visivelmente compadecido pelo trágico destino daquele homem, que como se via na mesa, não havia mesmo sobrado muita coisa. — Mas ainda não entendi o que tem a ver com o nosso departamento.

— É a esposa dele. Barbara Tompson, vinte e três anos, que como podem ver, sobrou mais dela do que dele — disse levantando o lençol branco que cobria um corpo queimado e disforme. — Ela sofreu queimaduras de terceiro grau por todo corpo.

— Ela conseguiu sair do carro, mas não teve tempo de se afastar o suficiente — constatou Ramona.

— É o que parece — respondeu a legista em tom de dúvida. — O corpo dela foi encontrado exatamente ao lado do carro queimado e os resultados dos exames dos pombinhos mostra que há resíduos de propanona no corpo dela.

— Acetona? — indagou Lang, ao que Ladonna consentiu com a cabeça.

— Acha que alguém pode ter jogado acetona no corpo dela, e que por ser inflamável, a fez incendiar junto do carro? Acha que o acidente foi provocado por alguém? — perguntou Ramona surpresa.

— Talvez — respondeu secamente. — Pode ser pior do que isso. Barbara estava grávida, a julgar pela dilatação do útero, de trinta e duas semanas, mas não há nenhum feto!

— Quer dizer que não encontrou o feto ou os restos dele na autópsia? — perguntou confuso. — Ela pode ter sofrido um aborto. — constatou Christopher.

— Não sou idiota, detetive. Identifiquei a gestação justamente após perceber uma incisão suprapúbica, o que está bastante imperceptível visto assim — disse inserindo o bisturi e dois dedos na região umbilical do cadáver. — As camadas de tecidos foram quase todas queimadas, menos a partir daqui, que vai até o útero da sua vítima, onde podemos perceber a incisão que falei, e olhe, ela foi feita por um profissional. Suponho que tenha sido feito por um bisturi com lâmina quinze. — Em resposta aos olhares surpresos dos detetives, explicou: — Os dois corpos foram trazidos para mim por volta das onze horas e estou com eles até agora. Nem Peter, nem ninguém mais teve tempo para colocar as mãos neles. A incisão foi feita antes de chegar aqui, ou melhor, antes dela ser queimada.

— Nenhuma chance de Barbara ter passado por um parto prematuro? — perguntou Christopher.

— Tem sim, desde que tenha sido em menos de vinte e quatro horas, e desde que o responsável pela cirurgia tenha se esquecido de costurar ou colar o útero e as camadas de tecido. O que acham? — falou com sarcasmo, encarando-os.

Os detetives se entreolharam perplexos, entenderam aonde a legista queria chegar.

— Meu Deus! O que fizeram com ela e com o seu bebê? — perguntou Ramona horrorizada com os seus pensamentos.

— Estamos vendo-a bem aqui, mas onde está o feto? — indagou Christopher, em seguida encarou a legista. — Você disse “ele”, acha que é um homem?

— Ninguém poderia fazer um procedimento assim tão próximo do carro, não aguentaria o calor. E uma mulher, no estado dela, não iria conseguir colaborar caminhando de um ponto para outro.

 — Alguém a colocou lá! Bem, pode ter sido carregada ou arrastada. Vamos descobrir. O que mais tem para nós?

— Aqui, por ora, mais nada, mas ao saírem peçam ao Peter as fotos da perícia, vocês vão gostar de tê-las para solucionar esse caso — disse entregando a eles os laudos.

— Obrigada, Ladonna.

— Obrigado.

— Por nada. Se puderem, quando descobrirem algo, me atualizem. O caso é intrigante! — disse se virando para dar continuidade ao seu trabalho.

Os detetives assentiram e se retiraram imediatamente, assim que chegaram ao escritório do assistente, Ramona foi direta ao assunto.

— Peter, precisamos das fotos — pediu para o médico que preenchia alguns documentos.

— Claro, estão aqui com as informações recolhidas pelos policiais. E olhem, talvez queiram falar com o casal que está lá na recepção. — Apontou para algumas cadeiras fora do escritório, onde haviam duas pessoas desconfortavelmente sentadas.

— Quem são? — Ramona perguntou apanhando o material entregue por Peter.

— Parentes da mulher. A irmã com o noivo, Kathy e James. Foram avisados do acidente logo que os policiais identificaram as vítimas. Eles estão aguardando para reconhecerem os corpos.

— Vamos falar com eles, obrigado.

Christopher tomou a dianteira se retirando do escritório e se aproximando do casal, acompanhado de sua parceira.

— Com licença, detetives Christopher Lang e Ramona Hale. Vocês são parentes de Barbara e William Tompson?

— Sim. Kathy Burks, sou irmã da Barbara e esse é meu noivo, James White. Tompson é o sobrenome do Will... — respondeu secando as lágrimas. — O que querem saber?

— No local do acidente só foi encontrado o casal, mas estamos averiguando a possibilidade de ter sido provocado por outra pessoa — respondeu o detetive.

— Estão investigando o acidente da minha irmã? Meu Deus, o que aconteceu? — perguntou Kathy assustada.

— Por enquanto estamos colhendo informações, é cedo para qualquer conclusão, mas é muito importante que vocês nos ajudem respondendo algumas perguntas — explicou Ramona.

— Claro, podem perguntar — concordou ela.

— A Barbara estava grávida?

— Sim, de seis meses, estávamos todos tão contentes, ia ser meu primeiro sobrinho, era um menino — disse entre lágrimas, ao mesmo tempo em que o noivo a abraçou, tentando confortá-la.

— Sentimos muito a sua perda! — declarou a detetive gentil.

— Obrigada. O que mais querem saber? — disse secando os olhos enquanto seu noivo a amparava.

— Quando foi a última vez que vocês os viram?

— Hoje de manhã, quando me despedi deles. Nesse final de semana eles estavam em casa, foi nosso noivado, ela disse que não perderia por nada... Somos de Sacramento, a Barbara casou e mudou para Los Angeles, mas nossa família toda é de lá.

— Sua irmã e o seu cunhado estavam bem quando saíram da sua casa? E a gestação estava... normal?

— Claro. Estavam todos bem ou eu não deixaria que eles voltassem hoje. E a gestação estava normal sim, mas o que tem a ver? Acha que sofreram o acidente porque ela passou mal por causa do bebê ou algo assim?

— Ainda não sabemos, Kathy, só precisamos confirmar se tudo estava em ordem na viagem.

— Tá. Eles foram para nossa casa no sábado, porque o Will trabalhou até tarde na sexta, e conseguiu a segunda, hoje, de folga. Saíram cedo de casa para ele poder descansar da viagem, para voltar ao trabalho amanhã — contou. — Já podemos ir ver se vão liberar os corpos?

— Só mais uma pergunta: eles falaram sobre alguém que tenha feito qualquer ameaça ou sabe de alguém que poderia fazer mal a eles?

— Não, claro que não. Parece mesmo que vocês acham que foram assassinados — observou Kathy.

— E quanto a você, percebeu algo estranho em sua cunhada ou concunhado? — perguntou Christopher se dirigindo a James, ignorando o comentário da noiva dele.

— Bem, desde que Kathy e eu estamos juntos, como moramos longe, vi poucas vezes a irmã e o marido dela, mas para mim, nesse final de semana eles estavam normais, pareciam bem e felizes! — respondeu James.

— Podem ir. É só seguir em frente por aquele corredor. Agradecemos pela atenção de vocês.

Com as informações necessárias em mãos, antes mesmo de chegarem ao carro de Christopher, ligaram para o departamento pedindo que enviassem uma equipe com peritos para o local do acidente. Dirigiram direto para lá. Embora já tivesse sido feita a perícia no local, a primeira equipe não buscava nada de diferente, somente documentar uma triste tragédia, mas agora, sabiam que precisavam ser mais detalhistas. Buscavam qualquer coisa: sangue pelas proximidades, qualquer sinal de que esteve ali mais alguém além do casal e também um feto.

O trecho da estrada em que ocorreu o acidente era em meio a uma área totalmente desértica, sem qualquer vegetação ou instalações humanas. Praticamente sem tráfego.

Enquanto analisavam o espaço, Christopher e Ramona discutiam hipóteses. Sabiam que o carro da vítima saiu da estrada, provavelmente estavam em alta velocidade e erraram ao fazer a curva, o carro capotou e explodiu. Ao redor dele não havia marcas a não ser do próprio carro acidentado. Se alguém esteve ali e se estava de carro, que seria o mais lógico, deixou-o na estrada e camuflou suas pegadas. Nas fotos que pegaram com Peter, viram o corpo dela ao lado do veículo, pela posição dele, estava claro que não era de alguém que se desequilibrou e caiu, ou mesmo de quem tentava se afastar do carro. Barbara foi colocada ali, e não havia sinais de que tenha sido arrastada, ela foi carregada. Não havia nada ali que pudesse ajudar, restava aguardar os resultados da perícia.

Três dias se passaram, os resultados haviam chegado e em nada colaborou com a investigação. O motivo do acidente não foi devido a nenhum defeito ou sabotagem no veículo. Era certo então que o motorista dirigia em alta velocidade e que perdeu o controle na curva e capotou, pelo impacto sofrido acabou vazando combustível, que chegando ao motor superaquecido pelas cinco horas em funcionamento, de Sacramento até Los Angeles, explodiu.

Até aí tudo tinha uma explicação. Mas alguém esteve lá e extraiu um feto de uma vítima de acidente de carro e a deixou para morrer queimada. Levantaram muitas hipóteses, mas sem quaisquer evidências e sem novas provas, não tinham como continuar.

Tinham o aval do chefe para encerrarem ali. Frustrados, foi o que fizeram.

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