Capítulo 6

Minha família tinha um comércio que funcionava no andar de baixo da nossa casa. Começou como uma pequena mercearia, vendendo produtos alimentícios de primeira necessidade. Apenas uma vendinha de bairro mesmo, mas que sempre nos ajudou a manter as contas em dia. Depois de um tempo, Miguel, meu padrasto, expandiu o espaço e colocou algumas mesinhas. Passamos a vender também bebidas e petiscos rápidos. Tinha sido uma boa ideia, visto que sempre tinham alguns homens conversando aleatoriedades e bebendo, ainda que fosse segunda-feira de manhã. Mas também tinha sido uma má ideia, visto que sempre tinham alguns homens conversando aleatoriedade e bebendo, ainda que fosse segunda-feira de manhã.

Nossa venda não estava nem perto de ser um sucesso empresarial, ou mesmo de ser suficiente para sustentar uma família de oito pessoas. Mas como eu e meus dois irmãos estávamos desempregados, conseguíamos nos revezar para cuidar do estabelecimento. As manhãs eram minhas.

Por isso, quando Matt me mandou uma mensagem falando que seu advogado queria me ver para assinarmos o contrato, eu passei meu endereço e pedi que ele viesse até a venda. Eu não precisaria pedir para me substituírem – o que evitaria perguntas que eu não queria responder, minha família não nos veria, e os nossos bêbados de estimação nunca se importavam com nada que acontecia ao redor – contanto que seus copos permanecessem cheios.

Porém, eu não poderia imaginar que o tal do advogado não viria sozinho.

- Matt! – Exclamou espantada. Seus olhos automaticamente me buscam na direção da voz e me encontrando atrás do balcão. – O que você tá fazendo aqui? – Não disfarço a surpresa.

- Desculpa, eu tive a impressão de que a gente tinha marcado uma reunião... – ele soa um pouco irônico.

- Eu tive a impressão de que tinha marcado uma reunião com ele – aponto para o homem ao lado de Matt, imaginando que ele seja o advogado.

- Podemos nos sentar? – Matt aponta com a cabeça para uma das mesas redondas de plástico.

Aquele é o exato momento em que me dou conta do quanto aquilo parecia uma péssima ideia. Matt nunca deve ter se sentado em uma mesa de plástico na vida! O terno italiano sob medida que ele usava, provavelmente era alérgico ao contato com plástico. Provavelmente o mesmo desconforto que senti ao ser inserida no seu mundo de gente rica, naquele clube, ele deveria estar sentindo agora.

- Sente-se – digo, porque não tem mais nada que eu possa fazer a respeito.

Observo Matt puxar a cadeira com destreza e soltar o botão do seu blazer antes de se sentar. Suas pernas parecendo cumpridas demais para permanecerem embaixo da mesa amarela. Era tudo tão destoando do habitual que até mesmo os bêbados se interessaram pelo que estava acontecendo, olhando curiosamente para os dois homens.

- Você vai se juntar a nós? – Ele fica me encarando.

- Claro!

Finalmente saio de trás do balcão, desejando ter pensado em vestir algo melhor do que jeans e camiseta. E não qualquer camiseta. Uma camiseta de Harry Potter extremamente surrada, de tanto que eu usava.

- Ella, esse é o doutor Munhoz, meu advogado. Ele redigiu nosso contrato. Eu gostaria muito de oficializar tudo hoje, então, leia e assine, caso esteja de acordo.

- Claro.

Estou tão desconfortável com a situação que tento manter meus olhos nas mãos do doutor Munhoz, observado cada um dos seus movimentos enquanto ele abre a sua pasta de couro e tira três vias do mesmo contrato, me empurrando delicadamente as folhas.

- Uau, é um contrato logo... – observo a quantidade de folhas.

- Achei melhor deixar tudo muito bem esclarecido.

- Certo...

Eu não falo “língua de advogado”, então não é muito fácil para mim ler e entender tudo o que está escrito ali. Ainda assim, me concentro na primeira folha e começo a ler vagarosamente...

- Ella! – A voz de Sophia chega em mim antes mesmo de eu poder vê-la.

- Sophia, não corre! – A voz de Bruno me atingi logo depois.

- Merda! – Eu puxo a caneta das mãos do advogado e assino as três vias rapidamente. – Guarda isso, rápido! – Entrego duas vias de volta, enquanto pulo de pé e guardo a minha no cós do jeans, cobrindo com a camiseta. – Sophie! – Eu me abaixo para abraçar a garota. – O que você tá fazendo aqui?

- Sophia! – Bruno, um dos meus irmãos mais velhos, chega segundos depois. Sua respiração ofegante. – Eu disse para não correr.

A garota mostra a língua para ele e faz uma careta, antes de se voltar novamente para mim.

- Posso beber uma coca? – Pede.

- Pode! – Seguro-a pela mão e a guio até o balcão, a levantando e colocando-a sentada em dos bancos altos. – Mas só se você ficar quietinha aqui. A mana tá trabalhando, tá?

- Tá bom! – Ela concorda, animada. – Coca, coca, coca!

- Ella... – O tom de voz de Bruno não esconde sua curiosidade. – Quem são aqueles homens?

- Clientes – respondo, sem nem ao menos olhar naquela direção.

- Que... tipo de clientes?

Eu sabia o que Bruno estava pensando. Ele conhecia Amanda e sabia o que ela fazia – ela não tinha a menor vergonha, então todo mundo sabia. Ele também sabia que ela vivia me propondo emprego. E então, de repente, eu aparecia repondo todos os remédios de Sophia e com um iPhone de última geração. No dia seguinte, dois homens engravatados, que claramente não pertenciam a esse tipo de ambiente, apareciam na nossa venda. Não era difícil acompanhar a sua linha de raciocínio. E ele não estava exatamente errado. Ainda assim, eu preferia não expor essa parte da minha vida para a minha família.

- Do tipo que que pedem dois copos de suco de laranja. Vai fazer, enquanto pego a coca da Sophia.

- Coca! – A garotinha grita empolgada, alheia ao clima pesado.

- Tudo bem – Bruno concorda, entrando na cozinha.

Rapidamente sirvo dois baurus nos pratinhos mais novos que consigo encontrar e levo até a mesa, fingindo se tratar de um pedido. Sirvo.

- Não é prudente assinar um contrato sem ler – Matt me repreende.

- Confio em você.

- Não deveria. Você mal me conhece.

Não deveria mesmo. Mas que escolha eu tinha? Primeiro que eu já tinha gastado boa parte do que Matt me deu em remédios e adiantando os pagamentos da cirurgia da minha irmã – e disso minha família nem sabia ainda! Segundo que provavelmente eu mal entenderia o “juridiquês” daquele contrato. E terceiro... por algum motivo que eu ainda não conseguia entender, eu queria estar perto de Matt.

- Já foi – digo por fim.

- Ella! – Bruno me chama, com os dois copos de suco de laranja.

Vou até o balcão para pegá-los sob os olhares curiosos do meu irmão, e volto até a mesa, ignorando Bruno.

- Quero te ver amanhã de manhã. No meu escritório dessa vez.

- Tudo bem – minto. Não estaria nada bem. Não teria como escapar de pedir que Bruno me substituísse e isso levantaria ainda mais desconfianças. – Me manda o endereço.

- Eu te mando o motorista, Ella.

- Ah… ok – digo, desconcertada, enquanto me afasto em direção ao balcão novamente.

Finalmente abro o freezer em busca da coca cola de Sophia. Abro a latinha, enfio um canudo e entrego nas mãos da menina.

- Vamos pra casa, Sophie. Vamos deixar o Bruno trabalha, ok?

- Tá bom! – a garota concorda, se jogando do banquinho.

- Não vá encher o saco dos clientes – murmuro para Bruno.

Arrisco um último olhar em direção a Matt quando passo pela mesa e me surpreendo ao encontrar seu olhar de volta em mim. Sinto minhas bochechas corarem.

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