Minha família tinha um comércio que funcionava no andar de baixo da nossa casa. Começou como uma pequena mercearia, vendendo produtos alimentícios de primeira necessidade. Apenas uma vendinha de bairro mesmo, mas que sempre nos ajudou a manter as contas em dia. Depois de um tempo, Miguel, meu padrasto, expandiu o espaço e colocou algumas mesinhas. Passamos a vender também bebidas e petiscos rápidos. Tinha sido uma boa ideia, visto que sempre tinham alguns homens conversando aleatoriedades e bebendo, ainda que fosse segunda-feira de manhã. Mas também tinha sido uma má ideia, visto que sempre tinham alguns homens conversando aleatoriedade e bebendo, ainda que fosse segunda-feira de manhã.
Nossa venda não estava nem perto de ser um sucesso empresarial, ou mesmo de ser suficiente para sustentar uma família de oito pessoas. Mas como eu e meus dois irmãos estávamos desempregados, conseguíamos nos revezar para cuidar do estabelecimento. As manhãs eram minhas.
Por isso, quando Matt me mandou uma mensagem falando que seu advogado queria me ver para assinarmos o contrato, eu passei meu endereço e pedi que ele viesse até a venda. Eu não precisaria pedir para me substituírem – o que evitaria perguntas que eu não queria responder, minha família não nos veria, e os nossos bêbados de estimação nunca se importavam com nada que acontecia ao redor – contanto que seus copos permanecessem cheios.
Porém, eu não poderia imaginar que o tal do advogado não viria sozinho.
- Matt! – Exclamou espantada. Seus olhos automaticamente me buscam na direção da voz e me encontrando atrás do balcão. – O que você tá fazendo aqui? – Não disfarço a surpresa.
- Desculpa, eu tive a impressão de que a gente tinha marcado uma reunião... – ele soa um pouco irônico.
- Eu tive a impressão de que tinha marcado uma reunião com ele – aponto para o homem ao lado de Matt, imaginando que ele seja o advogado.
- Podemos nos sentar? – Matt aponta com a cabeça para uma das mesas redondas de plástico.
Aquele é o exato momento em que me dou conta do quanto aquilo parecia uma péssima ideia. Matt nunca deve ter se sentado em uma mesa de plástico na vida! O terno italiano sob medida que ele usava, provavelmente era alérgico ao contato com plástico. Provavelmente o mesmo desconforto que senti ao ser inserida no seu mundo de gente rica, naquele clube, ele deveria estar sentindo agora.
- Sente-se – digo, porque não tem mais nada que eu possa fazer a respeito.
Observo Matt puxar a cadeira com destreza e soltar o botão do seu blazer antes de se sentar. Suas pernas parecendo cumpridas demais para permanecerem embaixo da mesa amarela. Era tudo tão destoando do habitual que até mesmo os bêbados se interessaram pelo que estava acontecendo, olhando curiosamente para os dois homens.
- Você vai se juntar a nós? – Ele fica me encarando.
- Claro!
Finalmente saio de trás do balcão, desejando ter pensado em vestir algo melhor do que jeans e camiseta. E não qualquer camiseta. Uma camiseta de Harry Potter extremamente surrada, de tanto que eu usava.
- Ella, esse é o doutor Munhoz, meu advogado. Ele redigiu nosso contrato. Eu gostaria muito de oficializar tudo hoje, então, leia e assine, caso esteja de acordo.
- Claro.
Estou tão desconfortável com a situação que tento manter meus olhos nas mãos do doutor Munhoz, observado cada um dos seus movimentos enquanto ele abre a sua pasta de couro e tira três vias do mesmo contrato, me empurrando delicadamente as folhas.
- Uau, é um contrato logo... – observo a quantidade de folhas.
- Achei melhor deixar tudo muito bem esclarecido.
- Certo...
Eu não falo “língua de advogado”, então não é muito fácil para mim ler e entender tudo o que está escrito ali. Ainda assim, me concentro na primeira folha e começo a ler vagarosamente...
- Ella! – A voz de Sophia chega em mim antes mesmo de eu poder vê-la.
- Sophia, não corre! – A voz de Bruno me atingi logo depois.
- Merda! – Eu puxo a caneta das mãos do advogado e assino as três vias rapidamente. – Guarda isso, rápido! – Entrego duas vias de volta, enquanto pulo de pé e guardo a minha no cós do jeans, cobrindo com a camiseta. – Sophie! – Eu me abaixo para abraçar a garota. – O que você tá fazendo aqui?
- Sophia! – Bruno, um dos meus irmãos mais velhos, chega segundos depois. Sua respiração ofegante. – Eu disse para não correr.
A garota mostra a língua para ele e faz uma careta, antes de se voltar novamente para mim.
- Posso beber uma coca? – Pede.
- Pode! – Seguro-a pela mão e a guio até o balcão, a levantando e colocando-a sentada em dos bancos altos. – Mas só se você ficar quietinha aqui. A mana tá trabalhando, tá?
- Tá bom! – Ela concorda, animada. – Coca, coca, coca!
- Ella... – O tom de voz de Bruno não esconde sua curiosidade. – Quem são aqueles homens?
- Clientes – respondo, sem nem ao menos olhar naquela direção.
- Que... tipo de clientes?
Eu sabia o que Bruno estava pensando. Ele conhecia Amanda e sabia o que ela fazia – ela não tinha a menor vergonha, então todo mundo sabia. Ele também sabia que ela vivia me propondo emprego. E então, de repente, eu aparecia repondo todos os remédios de Sophia e com um iPhone de última geração. No dia seguinte, dois homens engravatados, que claramente não pertenciam a esse tipo de ambiente, apareciam na nossa venda. Não era difícil acompanhar a sua linha de raciocínio. E ele não estava exatamente errado. Ainda assim, eu preferia não expor essa parte da minha vida para a minha família.
- Do tipo que que pedem dois copos de suco de laranja. Vai fazer, enquanto pego a coca da Sophia.
- Coca! – A garotinha grita empolgada, alheia ao clima pesado.
- Tudo bem – Bruno concorda, entrando na cozinha.
Rapidamente sirvo dois baurus nos pratinhos mais novos que consigo encontrar e levo até a mesa, fingindo se tratar de um pedido. Sirvo.
- Não é prudente assinar um contrato sem ler – Matt me repreende.
- Confio em você.
- Não deveria. Você mal me conhece.
Não deveria mesmo. Mas que escolha eu tinha? Primeiro que eu já tinha gastado boa parte do que Matt me deu em remédios e adiantando os pagamentos da cirurgia da minha irmã – e disso minha família nem sabia ainda! Segundo que provavelmente eu mal entenderia o “juridiquês” daquele contrato. E terceiro... por algum motivo que eu ainda não conseguia entender, eu queria estar perto de Matt.
- Já foi – digo por fim.
- Ella! – Bruno me chama, com os dois copos de suco de laranja.
Vou até o balcão para pegá-los sob os olhares curiosos do meu irmão, e volto até a mesa, ignorando Bruno.
- Quero te ver amanhã de manhã. No meu escritório dessa vez.
- Tudo bem – minto. Não estaria nada bem. Não teria como escapar de pedir que Bruno me substituísse e isso levantaria ainda mais desconfianças. – Me manda o endereço.
- Eu te mando o motorista, Ella.
- Ah… ok – digo, desconcertada, enquanto me afasto em direção ao balcão novamente.
Finalmente abro o freezer em busca da coca cola de Sophia. Abro a latinha, enfio um canudo e entrego nas mãos da menina.
- Vamos pra casa, Sophie. Vamos deixar o Bruno trabalha, ok?
- Tá bom! – a garota concorda, se jogando do banquinho.
- Não vá encher o saco dos clientes – murmuro para Bruno.
Arrisco um último olhar em direção a Matt quando passo pela mesa e me surpreendo ao encontrar seu olhar de volta em mim. Sinto minhas bochechas corarem.
“- Eu mando o motorista, Ella” – desdenhei, enquanto contava a história toda para Amanda.Obviamente eu tinha ligado correndo para a minha amiga. Eu não tinha a menor intensão de aparecer no escritório de Matt usando calça jeans e camiseta do Harry Potter. Mas, dito isso, eu não fazia ideia do que usar. Não era exatamente como se eu tivesse muitas opções.- Ele é fofo – respondeu ela, mexendo no meu armário.- Ah, claro. Vai ser muito fofo também quando o Bruno ou outra pessoa me ver entrando em um carro de luxo.- Mete o foda-se, Ella! Você não está fazendo nada de errado.- Eu sei! Mas você sabe que as pessoas não pensam assim...- Você deveria se importar menos com o que as pessoas pensam! – Ela briga. – Ninguém tá pagando suas contas! Aliás, o Matt tá.- Você sabe que eu não consigo ser como você!Amanda revira os olhos e volta a se concentrar nas minhas roupas.- Posso te emprestar algo, se quiser.- Não posso ficar te pedindo roupas emprestadas toda vez que for sair com ele, Man
- Ele te deu o cartão dele e disse pra você usar à vontade? Amanda ainda não acreditava que eu tinha pagado nosso almoço em um dos restaurantes que sempre quisemos ir – e nunca pudemos pagar – do shopping mais chique da cidade. E que agora estávamos indo até uma loja super renomada pedir para que “renovassem o meu guarda-roupas”. - Dá para acreditar? E o cartão é feito de ouro! - Deixa eu ver! Cadê? - Dentro do meu sutiã! – Digo, como se fosse óbvio. – Eu não vou correr o risco de perder ou de alguém me roubar. Tá seguro. - Super seguro. Até porque ninguém coloca a mão aí a muito tempo, né amiga? - Cala a boca! – Respondo, mas estou rindo. Entrelaço meu braço no de Amanda enquanto caminhamos olhando as vitrines chiques. Se eu já tinha vindo nesse shopping antes uma vez, era muito. Não era um lugar para mim. Não tinha lojas de departamento. Se eu olhasse para a direita tinha uma Chanel, se eu olhasse para a esquerda tinha uma Prada e se eu olhasse para frente tinha uma Lennox. Na
- Eu nunca mais volto naquela loja! – Lilly dizia revoltada. – Elas foram tão preconceituosas! – Ela baixa a voz para quase um sussurro. – Nunca passei por isso.Nós estávamos sentados em uma cafeteria no shopping. Por mais que Amanda e eu não tivéssemos almoçado há muito tempo – e tivéssemos pedido sobremesa, minha amiga fez questão de pedir três tipos de doces diferentes. Eu pedi apenas um chocolate quente. Estava nervosa e chocolate quente era uma bebida de conforto. Mas preciso admitir que me arrependi um pouco. Se aquele era o melhor chocolate quente que já provei na vida, imagina o resto do menu!- Eu estava com o cartão de crédito de outra pessoa, então...- Não a defenda! – Matt me cortou. – Não tem defesa.- Não tem mesmo! – Amanda concorda. – Ela foi uma idiota.- Não se preocupe, Ella, vou te levar em uma outra loja aqui perto que é maravilhosa! Eu gosto ainda mais dela, na verdade.- Ótimo, vocês já têm planos para até a hora do jantar, então... – Ele se levanta. – Vou vol
Enquanto nos éramos seguidas por três funcionários da loja carregando as compras para mim até o estacionamento, eu pensava que nunca tinha saído de uma loja com tanta sacola junto, nunca! Talvez nem se eu somasse todas as sacolas dos últimos dez anos da minha vida em compras, daria aquela quantidade.Isso em uma loja de departamentos já seria um absurdo, mas em um a multimarcas de grife... Por mais que Lilly não tivesse deixado eu ver a conta, eu tinha certeza de que valia uma fortuna.- Isso é um exagero... – sussurro para Amanda em um momento em que Lilly se distrai com o celular. – Lilly deve ter feito Matt gastar mais do que ele tá me pagando!- Deve? – Amanda dá uma risadinha. – Meu amor, é claro que ela fez!- Eu não consigo me sentir confortável com isso.- Relaxa! – Ela diz. – Isso é troco de bala para gente como os Lennox. Lilly deve fazer uma compra dessas todo mês.- Ainda assim... Não paro de pensar que esse dinheiro poderia ser muito mais bem gasto com outras coisas. Como
Depois do jantar, o motorista de Matt me leva até em casa. Ou melhor, ele me leva até a casa de Amanda. Além de eu saber que não conseguiria entrar em casa com todas aquelas sacolas sem chamar atenção, também seria difícil explicar o fato de estar descendo de um carro chique. Então peço que ele estacione em frente a casa da minha melhor amiga, que fica há apenas cinco minutos de caminhada da minha casa, e aproveito para descarregar todas as compras lá. Fico apenas com a roupa que usarei na manhã seguinte, já que Matt queria me ver novamente, a qual camuflo dentro de sacolas de mercado. O restante das coisas, Amanda iria me levando aos pouquinhos, toda vez que fosse me visitar.Tento entrar em casa o mais sorrateiramente possível, por mais que pelo horário já fosse para todos estarem dormindo. O problema é que não estavam. Quando entro no meu qua
Fico feliz quando levanto na manhã seguinte e Bianca não está mais no quarto. Eu a tinha ignorado completamente quando ela jogou a cartada do Matt, mas se bem conhecia a minha irmã, sabia que mais cedo ou mais tarde ela voltaria naquele assunto. Ficava feliz que fosse mais tarde.Bianca trabalhava como secretária em uma empresa de advocacia, ela odiava o que fazia. Ainda assim, ela sabia que não podia largar, já que seu salário era uma renda complementar necessária para a nossa família. Ela entrava todo dia às nove horas da manhã, o que significava que tinha que sair de casa, no máximo, às oito. Isso me deu pelo menos uma hora para me arrumar, com a certeza de que não a veria.Quando desço até a cozinha para beber um copo de suco de laranja antes de sair de casa, encontro minha mãe cuidado de Sophia e Giovanna. Meu padrasto também já deve ter saído para trabalhar e Bruno deve estar na venda. Breno ainda deve estar dormindo.- Bonita! – Sophia aponta para mim, provavelmente se referind
- Preciso que finja que é meu chefe – alcanço Matt com alguma vantagem. Bianca vinha caminhando um pouco afastada de mim, apenas observado. Então, consigo ser direta quando o encontro, me esperando em frente ao spa.- Eu não sou?- Não desse jeito. No spa. Não me beija... – o empurro levemente quando ele tenta se aproximar.- O que está acontecendo, Ella?- Minha irmã tá desconfiada de... você sabe. – Faço um gesto com a cabeça na direção que ela estava. – Tá me seguindo.Ele ri.- A gente pode fingir que está junto para a sua família também – ele dá de ombros. – Seria menos problemático para você.- Matt... – É a minha vez de rir. – Você realmente se imagina sentado em uma mesa de plástico em um bairro de subúrbio para o almoço de domingo?- Talvez – ele mente.- Isso nunca daria certo. Por favor, só finja que é meu chefe no spa.- Se você prefere assim – ele indica a entrada com a cabeça. – Tanto faz.Sigo para dentro do spa enquanto vejo Bianca nos observando através da vitrine. Se
Não vou mentir, não foi difícil me adaptar a minha nova rotina. Era como as pessoas costumavam dizer, a gente se acostuma fácil com aquilo que é bom. Matt tinha deixado o motorista a minha disposição, pronto para me levar para onde eu quisesse no horário que eu quisesse. A única coisa que ele exigia era que jantássemos juntos todas as noites, casa vez em um restaurante chique diferente.Sempre aproveitávamos aqueles momentos para nos conhecer melhor, contar histórias do passado, falar sobre nossos traumas, ou nossos sonhos. Nossas conversas acabavam fluindo tão bem que vez ou outra eu me pegava pensando que em outra realidade realmente poderíamos ser amigos. Isso, é claro, se todo o nosso relacionamento não fosse pautado em cima de um contrato, muito dinheiro e dois mundos completamente diferentes colidindo.A parte ruim de tudo aquilo eram os segredos que eu precisava guardar da minha família. Bianca tinha se tornado bem mais tolerável quando cedi a sua chantagem e a coloquei de rece