Montês Malheiro, filho renegado uma família da baixa nobreza minhota, foi criado por um preceptor jesuíta espanhol em Santarém onde aprendeu que roubar aos ricos não é pecado mas sim serviço a Deus. Cedo saiu do ninho para se transformar em contrabandista, escravo e finalmente embarcar como pirata rumo ás Antilhas onde a bordo dum corsário holandês dedica-se a saquear os galeões espanhóis carregados de oiro das Américas. Após um naufrágio, miraculosamente é salvo pela soldadesca portuguesa que o colocam no lugar do meio-irmão que acabara de falecer. Serve em Goa onde vive inúmeras paixões e resiste ao implacável cerco imposto pelo Maratha. Decepcionado com o amor e a vida deambula pelas praças indianas e serve em Ceilão. De volta a Lisboa torna-se espadachim e escrivão e, ao serviço de uma dama, tentam tramar o mais irascível vilão português, o temível coronel Noronha Mascarenhas.
Ler maisO Templo de Parvati com as suas altas chaminés rendilhadas de fumo negro da morte estava deserto pela aurora, com as mãos a tremer com o saco de serapilheira húmido e nauseabundo avanço vacilante pelo pequeno canal de lajes brancas que atravessa o lago, entro subindo as escadas esburacadas de laterite embrenhando-me na escuridão asfixiante e sentindo-me no fundo do poço. O chão era constituído por milhões de ratazanas que me levam através das colunas de corpos até ao centro no templo, onde face à estátua azul da Deusa da ceifa da vida com seus colares de cabeças, uma pira de carvão arde e incinera os sacrifícios. Tremo ao pegar na perninha do primeiro feto, amarrado a ele vem o segundo, os dois encurricados, rubros, sem vida, projectos de futuros passados…. perguntava-me, mas eu já os queimei? depois lembrei-me que es
Era o dia de feira no areal de Ponte de Lima… …e as tendas de lona branca que discorriam até ao rio abrigavam-nos do vento gélido vindo dos lados da Galiza. Detenho-me por momentos acocorado na cerca a admirar os alinhados, castanhos e fortes bois com aqueles cornos enormes, relembrando as esqueléticas e beges vacas da Índia e pensando ; que desperdício… - Hei, boiadeiro, quanto é uma rês? - 500 reis, Meu senhor. Vou deambulando ao calhas, inspeccionando e perguntando os preços dos cântaros de barro, das cestas de vime, das couves, grelos e nabos do Inverno, do arroz, trigo e milho armazenado em vasilhas, até da própria lenha pergunto o preço curioso e chegando à conclusão que é bem mais barato a vida aqui em cima que na metropolita Lisbonna à beira Tajus. Compro umas laranjas, dou uma a um puto cigano inquirindo-o: - Conheces os Malheiros? – ele encolhe-me os ombros. Miro acima do areal, di
Três meses volveram, e uma casa extramuros aluguei, o amor não é eterno, mas as minhas mágoas são… Estava anestesiado mirando estático da janela do prédio branco de dois andares, as ocultas quintas frondosas dos ricos, e mais abaixo a grande lagoa e um braço do Mandovi e aqui tão perto os campos alagados das várzeas e a baixa muralha norte mesmo colada a nós, linda vista! Linda vista em que eu fui feliz durante três meses. Acho que nunca estive tão triste como em toda a minha vida, e não me lembro de me sentir tão melancólico e desesperançado, nem mesmo no rio Farim na Guiné quando era escravo. Observo lentamente as esmeraldas trepadeiras desenhadas na parede subindo pelo tecto…o contador de gavetas com bicharocos coroados… a enorme arca ferrada de tons avermelhados…a cadeira com valiosos entalhes de marfim..e por fim a larga cama de ébano onde a princesa Urvasi acaba de mudar a gaze fresca das frontes da febril Fe
Corríamos escuridão adentro pelo matagal. Estranhei não haver luar, sem luar como é que o maratha pensa em fazer alguma coisa hoje à noite? Todavia das ruínas do templo de Pattadakal os hipnóticos mantras continuam a ser entoados e os pirilampos na mesma pairavam indicando-nos o trilho das várzeas dos crocodilos que com os seus faíscantes olhos miravam-nos confundindo-nos com gazelas. Ocultamo-nos abraçados pelos bambus e palmares e vimos o braço do Mandovi alumiados por milhentas tochas! - Veja o que eles estão a fazer, mestre?! Impossível! - Estou mocado com ópio, por isso tens que me dizer o que vês. Senão ainda vejo elefantes a voar. - digo-lhe recostando a minha cabeça na erva quente e húmida e fechando os olhos. - Mestre, acorde, não adormeça. – alerta-me Izmirla pegando-me nos ombros e obrigando-me a abrir os olhos, estremunhado, tento ver, e céus! Eram enormes barcaças que estavam a ser puxadas, do outro lado da margem, por escravos com longas cordas
Um mês de sortidas, assédios e fome decorreu…e a imagem ténue de Fei li não me larga… Estamos de novo reunidos na Torre da mesa oval com os capitães e os sargentos da companhia: - Caros confrades, as provisões estão-se a acabar e a monção tarda a chegar. Dizem os prisioneiros que, vindo a monção, o maratha se verá obrigado a retirar, dado que não terá condições de continuar um cerco. Ontem, mediante tortura, um rane confessou que o maratha ainda tem um ultimo truque na manga, algo que nunca tinha sido usado nas actuais artes da guerra, mas não nos soube dizer o quê. - informa-nos alferes Delgado Lopo andando nervoso e com as mãos atrás das costas em volta da mesa onde os capitães estavam sentados. Nós os sargentos, encostados nas pedras da parede à volta da mesa apenas ouvíamos com autorização para cachimbar à vontade, fei li, minha feilizinha… - Urge então urdirmos um estratagema para descobrirmos esse tr
- Apaguemos o fogo, está lua cheia e os Monteiro gostam de caminhar ao luar iluminador dos caminhos. - Dos caminhos dos crocodilos, dizes tu, o fogo afugenta os répteis e os tigres. – avisa Montoya - Tigres tão perto das casas? – pergunta medroso João Botelho - Não é dos tigres que tenho medo. O fogo põe-nos visíveis ás vistas dos ranes que atacam em grupo e das suas flechas ervadas [1] e nós apenas somos cinco a contar com o criado armado. – complemento, eles olham para mim surpreendidos com a minha sabedoria. - Então? na choça só podemos ouvir e dormir… - Chiça, eles nunca mais aparecem, estamos aqui espetados na escadaria há duas horas. – desabafa desalentado Montoya. Por fim o pesado portal de espigões abre-se e lá de dentro um criado monhé de turbante, justilho, calças de seda afuniladas, armado com tulwar e tabar[2] aparece inspecionando-nos, reverenciando-nos e pedindo que acabemos com o fogo. - Eu bem disse
Não havia tempo e todos dos dias eram iguais, ou melhor havia tempo e calor asfixiante, tempo que nunca mais acabava à medida que a cabeça latejava e explodia na madeira carcomida quente. Não sentia o corpo e por consequência não sentia a alma, eu era uma sucessão de momentos e imagens fugazes no tempo e padre Ramon puxava-me a orelha violentamente por eu roubar o merceeiro e arrastava-me e encarcerava-me num armário escuro onde os monstros puxavam-me os pés. Acordo para a realidade e essa puta babilónica molha-me e morde-me os pés, chiça! são os lagostins no fundo da caixinha que entram com a maré, apago-me outra vez e a mordidela da ratazana voltava e levava eu atrofiado a mão ao pé ensanguentado, uma e outra vez….uma e outra vez….uma e outra vez…. - Acudam, tirem-me daqui por piedade, que mal fiz eu para merecer tamanha pena? - Mas os soldados no porto não me ligam com cara triste. Água… água cristalina… a boca seca. Suor que me que
No dia em que vimos do atulhado cais o Virgem Maria zarpar, tomamos de assalto, a coberto da noite, uma ágil escuna pertença dum abastado comerciante de cacau, deitando o adormecido vigilante ao mar com a goela cortada. Pela noite adentro seguimo-los ao longe vendo as suas pequeninas luzes, mas sobreveio um nevoeiro que nos deixou ás cegas. Ainda pensei que iríamos assaltá-lo como tínhamos feito com o Santa Trinidad mas o capitão não mandou descer os botes de abordagem e assim ficamos à espera que o nevoeiro levantasse, e, quando isso aconteceu, as sombras dos altos mastros do enorme galeão começaram a surgir ténues:- Preparar abordagem! Desfraldem o velacho, a mezena, o estai!!!– grita O Capitão e todos começamos a armar os mosquetes, enquanto os mariolas desfraldavam as velas. Eu como ainda era rapaz-da-pólvora, encho a boca de fogo d
De repente acordamos do nada e sabemos que estamos na realidade e a fantasia opaca e indecifrável como um sonho morto acaba. Gostava de ser nada e não acordar, mas o ar solarengo invade todo o quarto e predisponho-me a abrir os olhos. Levanto a pesada cabeça da ressaca e miro Quico debruçado sobre a janela mirando lá para fora. Existe alarido na plaza menor, quiçá provocado pela proximidade do mercado. - Quico, que se passa? – o rapaz olha para mim, bufa uma madeixa que lhe tolda um olho e responde-me preocupado: - O capitão Bartholomeu foi confessar-se e ainda não voltou. - QUÊ! Ele foi fazer o quê? – Telles na cama a meu lado põe-se de pé abanando os ombros a Quico. - Aquele verme, tanto cuidado para passarmos discretos e ele vai confessar-se a um padre espanhol pelas nossas vilanias, estamos tramados! – grita Estevez tornando a perguntar a Quico: - Com mil trovões, saiu há muito? – O imediato não esperou pela resposta, enverg