De repente acordamos do nada e sabemos que estamos na realidade e a fantasia opaca e indecifrável como um sonho morto acaba. Gostava de ser nada e não acordar, mas o ar solarengo invade todo o quarto e predisponho-me a abrir os olhos. Levanto a pesada cabeça da ressaca e miro Quico debruçado sobre a janela mirando lá para fora. Existe alarido na plaza menor, quiçá provocado pela proximidade do mercado.
- Quico, que se passa? – o rapaz olha para mim, bufa uma madeixa que lhe tolda um olho e responde-me preocupado:
- O capitão Bartholomeu foi confessar-se e ainda não voltou.
- QUÊ! Ele foi fazer o quê? – Telles na cama a meu lado põe-se de pé abanando os ombros a Quico.
- Aquele verme, tanto cuidado para passarmos discretos e ele vai confessar-se a um padre espanhol pelas nossas vilanias, estamos tramados! – grita Estevez tornando a perguntar a Quico:
- Com mil trovões, saiu há muito? – O imediato não esperou pela resposta, envergou à pressa o gibão e abalou, eu segui-o escadas brancas abaixo vestindo atabalhoadamente a longa camisa de linho e os calções de folhos.
A plaza menor estava atulhada com as vendedeiras garridas com as suas cestas, as tendas das frutas exóticas, as cerâmicas avermelhadas, os pregões indecifráveis. Enveredamos apressadamente por uma rua estreita ladeada de baixas casas de milhentas cores e fomos desembocar lentamente à plaza maior onde, ladeada pela casa de los conquistadores e pela audiência estava a alta e magnifica catedral de Nuestra Senhora de La Purissíma Concepción com as suas colunas salamónicas em tons acobreados. Pelas escadarias Bartholomeu, satisfeito, de chapéu negro com penacho azul, trinca uma manga. Estevez puxa por mim e fomo-nos ocultar por detrás da picota, uma alta coluna que celebra a conquista das Américas pelos castelhanos:
- Filho da mãe, já se confessou, sigamo-lo a ver o que acontece! - E assim o fizemos, Bartholomeu ao longe parecia satisfeito, pesquisando as tendas e falando portanhol com os locais e até com a soldadesca. Passeou ao calhas pelos bairros de São Roman e Guadalupe e foi desaguar ao cais onde pesquisava as vendedeiras do peixe, e foi aqui que vimos chegar o alcaide escoltado por dez soldados armados. Ele mira-os e não esboça nenhuma ténue resistência. O diabo do padre castelhano tinha-o denunciado. A guarnição espanhola põe-lhe em cima um jugo e a populaça e a canalha sabendo que ele era pirata e que saqueava navios espanhóis põem-se a atirar fruta podre e tomates. Estevez enervado faz o mesmo pegando num tomate podre do novo mundo do chão poeirento avermelhado:
- FILHO DA MÃE, NÃO SABES TAR CALADO, TOMA LÁ A TOMATADA! – eu, igualmente enervado, aproveito e faço o mesmo seguindo a turba: é para passarmos despercebidos. Rio-me à gargalhada aproveitando para atirar umas maçãs ao nosso valente capitão Bartholomeu Beirão . Seguimos a populaça endiabrada até à cadeia que ficava mesmo em frente da nossa estalagem e reunimo-nos no quarto com o coração nas mãos devido ao medo de Bartholomeu cativo nos denunciar.
- Não nos vai denunciar, ele é uma velha cepa rija.
- Sim mas a tortura faz falar os homens. O melhor é pôrmo-nos na alheta.
- Na alheta? queres fugir para o interior desconhecido? Somos mariolas, só conhecemos o mar, é lá que nos safamos, temos é que gamar um barco e bazar.
- Sim - concordamos todos.
- Mas antes temos que fazer um pequeno serviço.
Olham com cara de curiosos para mim.
Por estes lados, como no alto mar, todos fazem a sesta. Daí a catedral deve estar deserta, mas já há um ano que não entro numa igreja e parece-me que o espectro magro e negro de padre Ramon está lá dentro admoestando-me: Montês Malheiro que raios vais tu fazer? Miro a tremelicar a enorme catedral defronte da escadaria, admiro as suas duas imponentes torres abobadadas de cor amarelada e relembro a conversa no quarto para arranjar alento:
- Afinal ele não respeitou o segredo de confissão! Ao diabo com o padre
- Sim ao diabo, porque não o enviamos ao diabo?
- Quê, matá-lo? Matar um padre dá azar!
- Olha para nós, achas que temos tido sorte?
Subimos ocultando o rosto com os chapéus e mirando para todos os lados, a plaza mayor que por esta hora estava entregue aos cães vadios. Fechamos, a custo, a enorme e grossa porta e aferrolhamo-la. Lá dentro as enormes velas nos nichos laterais dos santos alumiavam as paredes surpreendentemente caiadas de branco.
As igrejas em Portugal eram bem mais cinzentas, soturnas e tristes. Fomos cautelosamente caminhando pela nave central admirando os dois portentosos candeeiros de velas suspensos, acercamo-nos do retábulo de talha dourada onde pontificando-o graciosa a Virgem vestida de azul julga-nos com o seu terno olhar celestial: perdoa-me, Madre, pelo que iremos fazer! Quico com o chapéu na mão acena-nos para um confessionário de madeira rendilhada que estava encostado à parede, meus companheiros dividiram-se de maneira a que não sejamos surpreendidos por ninguém. Telles passa-me o longo estilete de Maria chanfrada pedindo-me:
- A igreja está deserta, quero ouvir o filho da puta berrar. – engulo em seco empunhando-o e ocultando-o dentro do gibão. A suar e a tremer aproximo-me do confessionário vendo a sua batina e os seus botins de salto alto bicudos e ouvindo o seu leve ressonar. Abro a portinhola e sento-me num exíguo acento de veludo, o padre traidor acorda, perdoa-me Ramon e não me julgues!
- Perdoe-me padre porque pequei. – digo nervoso.
- O Senhor esteja no teu coração para confessares os teus pecados com espírito arrependido. – responde-me num tom coloquial e num português surpreendente
- Mas não são os meus pecados padre. – digo em surdina.
- No te oigo.
- No lo son mis pecados padre. – torno a sussurrar. – o padre, sem ouvir nada, encosta à janela rendilhada o seu ouvido à minha boca pecaminosa:
- Bartholomeu manda-lhe cumprimentos! - saco o estilete e zás, enfio-lhe tímpano adentro o ferro, atravessando-lhe a cabeça e saindo no outro ouvido. O tipo berrou a bom berrar como um porco que se lhe houvera cortado a goela, esbracejou saindo aos solavancos do exíguo confessionário e foi morrer nas lajes tremelicando do corpo e com certeza surdo. Todos fizemos o sinal da cruz, limpamos a honra do convento, que isto sirva de aviso e exemplo aos próximos bufos. Não contente retiro-lhe a custo o estilete ensanguentado e com a lamina de Maria corto-lhe uma das orelhas, dependuro-a num fio de couro no meu peito, perante o incrédulo olhar dos meus companheiros:
- É para dar sorte. – digo-lhes admirando tal macabro talismã.
Saímos por uma portinhola lateral sem dar nas vistas e fomos beber até cair…
Acordo de repente para o vómito da nossa própria inércia, e fora de mim esgrouviado ponho-me a observar a todos, mas não me achava, estava tão fora, tão ensandecido que não sabia quem era e todavia lembrava-me da última vez que me sentira assim, foi em Argel, no mercado dos escravos e tinha a mona partida em duas, para trás Montês Malheiro, tenta achar o fio, há já sei! Há um mês matei um padre, Bartholomeu está num navio-prisão ao largo e temos gastado todos os dobrões da estatueta inca a comer e beber e nas putas, todo o dia e toda a noite.
Vomito para o chão, mas era só água espumada. Recorda Montês, recorda os teus companheiros: Estevez dormia com duas crioulas desnudas na rede. Quico está estatelado de papo para o ar e uma estranha baba amarelada descai-lhe pela barba ruiva indo desaguar em veios pelo peito. A meu lado Lopo está com os olhos vidrados a olhar o infinito e parece-me que dorme, passo-lhe a mão pela visão, mas ele não esboça reação nenhuma, ainda bem que a sombra do tórrido quarto amarelado o protege, se adormecesse de olhos abertos na praia o sol por esta altura já lhe tinha queimado os olhos. Onde raios estão Telles e Mendo Fernão? Borrachos na própria caca ou com a goela atravessada numa rixa por um Machete. Faz algo, Montês, por amor de Deus! mexe-te, sai da porcaria em que estás atolado até aos cornos!
O código, o código! Tento levantar-me mas as pernas estão trémulas, concentro-me, relaxo e torno a tentar, lentamente as pernas obedeceram ao meu pensamento, dirijo-me a um velho armário e da estante retiro uma familiar pasta de couro onde em seu interior os sete pontos da pirataria que não desbotaram estão inscritos no pergaminho, visto-me à pressa sentindo a cabeça a latejar e a zumbir, o calor asfixiava-me o ímpeto. Há! afinal sempre compramos botas, acabo de as calçar e desço para a rua calcetada enfrentando o sol pujante com os olhos semicerrados. Numa tenda nativa garrida compro uma manga que vou descascando lentamente, a frescura do fruto amacia-me o corpo quente ressacado e dorido.
Era aqui… era algures por aqui… finalmente encontro o templo y convento de San Francisco com a torre sineira característica do nuevo mundo encimando um edifício baixo em estuque branco, quase alaranjado. Entro pelas largas portas de cantaria em arco. Aqui funciona uma oficina de impressão. Entro sem pedir licença no scriptorium. Um freire com as mãos sujas de tinta, copiava dum rolo de papiro um livro antigo, pondo nas linhas rígidas do prelo, os caracteres góticos de ferro. Mira-me por detrás daqueles óculos encavalitados no seu nariz, enfadado por eu o estar a interromper:
- Vossa graça que deseja? – na mesma aquele tom coloquial de padre, monocórdico, distante, severo, imperturbável, tens sorte freire, não te vou vazar o tímpano.
Deposito a pasta de couro no balcão informando-o respeitosamente:
- Isto é o código pirata que Bartholomeu Português escreveu antes de ser capturado, fazei com ele o que achardes conveniente - o freire arregala as fartas sobrancelhas, mira se os dois noviços aprendizes que laboravam atrás ouviram a nossa conversa, pega discretamente na pasta de couro e esconde-a.
Preparo-me para sair quando o franciscano na despedida olhou para mim com cara estranha, quase mística:
- Vossa graça, tente fazer tudo que a dama lhe pedir. – dito isto torna ao seu labor. Indiferente retorno à rua e decido banhar-me no mar, deambulando ao calhas por San Roman e pelos bairros das casas coloniais baixas e coloridas de Guadalupe, compro um abacate aos índios, dispo-me até ao despudor e banho-me nas eternas águas quentes, retornando à grande mãe.
Por momentos debaixo de água enquanto o ar se esvaziava dos pulmões para o sangue, pensei em deixar-me levar, em deixar-me ir, mas afinal já passei por dois naufrágios, duvido muito que vá morrer no mar, a terra me espera para acabar comigo e a ela retorno, secando ao sol e acabando com o fresco e delicioso abacate. Fecho os olhos recebendo na pele tostada o forte sol da manhã, ao longe o alaúde dum negro se fazia ouvir trazido pelo vento:
Os dobrões estão-se a acabar
E mais tarde ou mais cedo
Temos que voltar a roubar…
Desperto com um ronco no estômago e decido regressar para os meus companheiros de má vida para o almoço no meio do mundo…
Comíamos feijão vermelho com carne moída apimentada e milho, empurrada com Bacarona com limão quando batem à nossa porta violentamente, pregando-nos um susto.
- Calma, deve ser Juanito.
- Entrai, mestiço dum raio! – grito. Ele entra espavorido e vendo as canecas de barro com Bacarona pede-me de joelhos e encarecidamente para sorver o néctar. Depois de um refastelado gole e antes que ele me peça para comer ordeno-lhe:
- Que raios se passa, Juanito?
- Senõr, el capitan Bartholomeu el português ha apunhalado un guardia e ha escapado a nado del navio-prisão.
- A nado? Mas ele não sabe nadar. – constata estupefacto Estevez deitando a mão à cabeça e retirando o suado lenço que lhe informa a mesma.
- Aparentemente señor ha usado jarras de vinho como bóias atadas unas a las otras com cordas. – diz incrédulo o mestiço.
- Porra, este capitão é surpreendente.
- Espantoso.
- Será que nos virá procurar? – pergunta Telles
- Lembras-te dos planos dele antes de sermos capturados
- Sim, capturar uma escuna e fazermo-nos ao mar…
- Bartolomeu vai nos levar à desgraça, - digo sentencioso. Um silêncio atroz apoderou-se de todos.
- Aproveitemos então esta comida e este bom vinho, se conheço bem o capitão, dentro de dois dias estaremos em alto mar. – espreguiça-se Estevez não muito preocupado. Despachamos o índio e continuamos o repasto cientes que voltaríamos à honesta actividade ultramarina.
A noite encontrou-nos na Rosita, como sempre fazemos, a cachimbar um bom tabaco das Antilhas e a beber desalmadamente com o regaço dumas mestiças no nosso colo. Vejo aproximar-se de mim um entroncado negro de África, envergando apenas umas bermudas listradas, e por momentos pensei que fosse Monga que viesse buscar a minha alma.
- O menino é Montês Malheiro?
- Não, Montês Malheiro sou eu. – diz Estevez tentando proteger-me. O negro entrega então um pedaço de pergaminho ao imediato. Ele passa-mo a mim desalentado
- Já sei porque foi para ti o recado, eu não sei ler…
- Chiça:
Espero-vos, canalhas, à meia noite na praia dos arbustos, a mesma praia que nos Recebeu há um mês atrás
assinado: Bartholomeu Beirão
O pensamento não me saía da cabeça: Bartolomeu vai nos levar à desgraça. Bebo dum só gole uma jarra inteira de Bacarona. Peguei numa mestiça e levei-a lá para cima.
Munidos de archotes tentamos achar a praia da desconsolação, estava como no paraíso nestes últimos dias, esquecido de mim, mas o destino torna a bater-me à porta replicando: então Montês Malheiro, toca a sair do ninho, cá te espero, meu filho! Vamos voltar à carga… À nossa frente é só escuridão que vai ganhando forma à medida que Telles aponta o bacamarte:
- Quem vem lá?
- Meu nome é Mátchu, o mesmo de há bocado. - O gigante negro assume-se, Telles baixa o bacamarte:
- Venham sem alarido. – embrenhamo-nos no matagal ouvindo as ondas noctívagas perto. As luzes trémulas da baía de Campeche iam ficando para trás à medida que o obsessivo calor aumentava. Chegamos, após caminhar um pouco, a um círculo de negros e nativos todos alumiados com tochas sob a vigilância de um luar traiçoeiro. Relembro a mesma sensação da catinga nas narinas no distante porto de Santarém na galeota de Rafaello: parece tudo tão longe…no meio do círculo, como um fantasma que regressa dos mortos, mais magro, indigente, zarolho e desgrenhado, Bartholomeu recebe-nos de braços abertos apertando-nos efusivamente, bebia rum artesanal por um odre e isso notava-se no seu bafo:
- Meus caros camaradas, agradeço-vos imenso pelas vossas árduas tentativas que efetuaram para me salvar da prisão. – diz cambaleante e irónico o nosso capitão. – mas passado é passado e agora o que interessa é o futuro e o futuro é risonho, meus rapazes! – Aponta com o archote a sua recém contratada tripulação:
– Vejam os meus meninos, fui-os recrutar à custa de muitos riscos, às plantações do interior de cacau e do palo tintureiro, em vez da vida explorada que levavam prometi-lhes saque fácil e nunca ter amos, prometi-lhes o paraíso e agora são foragidos da coroa espanhola e estão à espera de uma vida de pirataria e lucro fácil, e puta ma foda é mesmo isso que iremos dar-lhes! – diz confiante.
- Mas, meu capitão, serão de confiança, os negros não são de se fiar. – replica o imediato Estevez. – o capitão vai-lhe aos colarinhos quase o queimando com o archote:
- E tu, leal Estevez, és de se fiar? Deixaram-me a apodrecer naquele navio-prisão e agora exijo reparação. Iremos gamar uma escuna e iremos saquear outro galeão espanhol cheio de oiro. O Virgem Maria fará escala nos próximos dias em Campeche e nós vamos saqueá-lo. Agora já sei que o erro foi operar com grandes navios. Agora, com uma escuna, é mais fácil manobrar e atacar os grandes navios, tudo será mais simples…- diz sonhador e com os olhos vidrados - …será à maneira barbaresca, como fazem no Mediterrânico, uma escuna ágil, uma abordagem fácil. - Dá-me um vazio na barriga, e a ideia de que Bartolomeu vai nos levar à desgraça voltava como um martelo.
No dia em que vimos do atulhado cais o Virgem Maria zarpar, tomamos de assalto, a coberto da noite, uma ágil escuna pertença dum abastado comerciante de cacau, deitando o adormecido vigilante ao mar com a goela cortada. Pela noite adentro seguimo-los ao longe vendo as suas pequeninas luzes, mas sobreveio um nevoeiro que nos deixou ás cegas. Ainda pensei que iríamos assaltá-lo como tínhamos feito com o Santa Trinidad mas o capitão não mandou descer os botes de abordagem e assim ficamos à espera que o nevoeiro levantasse, e, quando isso aconteceu, as sombras dos altos mastros do enorme galeão começaram a surgir ténues:- Preparar abordagem! Desfraldem o velacho, a mezena, o estai!!!– grita O Capitão e todos começamos a armar os mosquetes, enquanto os mariolas desfraldavam as velas. Eu como ainda era rapaz-da-pólvora, encho a boca de fogo d
Não havia tempo e todos dos dias eram iguais, ou melhor havia tempo e calor asfixiante, tempo que nunca mais acabava à medida que a cabeça latejava e explodia na madeira carcomida quente. Não sentia o corpo e por consequência não sentia a alma, eu era uma sucessão de momentos e imagens fugazes no tempo e padre Ramon puxava-me a orelha violentamente por eu roubar o merceeiro e arrastava-me e encarcerava-me num armário escuro onde os monstros puxavam-me os pés. Acordo para a realidade e essa puta babilónica molha-me e morde-me os pés, chiça! são os lagostins no fundo da caixinha que entram com a maré, apago-me outra vez e a mordidela da ratazana voltava e levava eu atrofiado a mão ao pé ensanguentado, uma e outra vez….uma e outra vez….uma e outra vez…. - Acudam, tirem-me daqui por piedade, que mal fiz eu para merecer tamanha pena? - Mas os soldados no porto não me ligam com cara triste. Água… água cristalina… a boca seca. Suor que me que
- Apaguemos o fogo, está lua cheia e os Monteiro gostam de caminhar ao luar iluminador dos caminhos. - Dos caminhos dos crocodilos, dizes tu, o fogo afugenta os répteis e os tigres. – avisa Montoya - Tigres tão perto das casas? – pergunta medroso João Botelho - Não é dos tigres que tenho medo. O fogo põe-nos visíveis ás vistas dos ranes que atacam em grupo e das suas flechas ervadas [1] e nós apenas somos cinco a contar com o criado armado. – complemento, eles olham para mim surpreendidos com a minha sabedoria. - Então? na choça só podemos ouvir e dormir… - Chiça, eles nunca mais aparecem, estamos aqui espetados na escadaria há duas horas. – desabafa desalentado Montoya. Por fim o pesado portal de espigões abre-se e lá de dentro um criado monhé de turbante, justilho, calças de seda afuniladas, armado com tulwar e tabar[2] aparece inspecionando-nos, reverenciando-nos e pedindo que acabemos com o fogo. - Eu bem disse
Um mês de sortidas, assédios e fome decorreu…e a imagem ténue de Fei li não me larga… Estamos de novo reunidos na Torre da mesa oval com os capitães e os sargentos da companhia: - Caros confrades, as provisões estão-se a acabar e a monção tarda a chegar. Dizem os prisioneiros que, vindo a monção, o maratha se verá obrigado a retirar, dado que não terá condições de continuar um cerco. Ontem, mediante tortura, um rane confessou que o maratha ainda tem um ultimo truque na manga, algo que nunca tinha sido usado nas actuais artes da guerra, mas não nos soube dizer o quê. - informa-nos alferes Delgado Lopo andando nervoso e com as mãos atrás das costas em volta da mesa onde os capitães estavam sentados. Nós os sargentos, encostados nas pedras da parede à volta da mesa apenas ouvíamos com autorização para cachimbar à vontade, fei li, minha feilizinha… - Urge então urdirmos um estratagema para descobrirmos esse tr
Corríamos escuridão adentro pelo matagal. Estranhei não haver luar, sem luar como é que o maratha pensa em fazer alguma coisa hoje à noite? Todavia das ruínas do templo de Pattadakal os hipnóticos mantras continuam a ser entoados e os pirilampos na mesma pairavam indicando-nos o trilho das várzeas dos crocodilos que com os seus faíscantes olhos miravam-nos confundindo-nos com gazelas. Ocultamo-nos abraçados pelos bambus e palmares e vimos o braço do Mandovi alumiados por milhentas tochas! - Veja o que eles estão a fazer, mestre?! Impossível! - Estou mocado com ópio, por isso tens que me dizer o que vês. Senão ainda vejo elefantes a voar. - digo-lhe recostando a minha cabeça na erva quente e húmida e fechando os olhos. - Mestre, acorde, não adormeça. – alerta-me Izmirla pegando-me nos ombros e obrigando-me a abrir os olhos, estremunhado, tento ver, e céus! Eram enormes barcaças que estavam a ser puxadas, do outro lado da margem, por escravos com longas cordas
Três meses volveram, e uma casa extramuros aluguei, o amor não é eterno, mas as minhas mágoas são… Estava anestesiado mirando estático da janela do prédio branco de dois andares, as ocultas quintas frondosas dos ricos, e mais abaixo a grande lagoa e um braço do Mandovi e aqui tão perto os campos alagados das várzeas e a baixa muralha norte mesmo colada a nós, linda vista! Linda vista em que eu fui feliz durante três meses. Acho que nunca estive tão triste como em toda a minha vida, e não me lembro de me sentir tão melancólico e desesperançado, nem mesmo no rio Farim na Guiné quando era escravo. Observo lentamente as esmeraldas trepadeiras desenhadas na parede subindo pelo tecto…o contador de gavetas com bicharocos coroados… a enorme arca ferrada de tons avermelhados…a cadeira com valiosos entalhes de marfim..e por fim a larga cama de ébano onde a princesa Urvasi acaba de mudar a gaze fresca das frontes da febril Fe
Era o dia de feira no areal de Ponte de Lima… …e as tendas de lona branca que discorriam até ao rio abrigavam-nos do vento gélido vindo dos lados da Galiza. Detenho-me por momentos acocorado na cerca a admirar os alinhados, castanhos e fortes bois com aqueles cornos enormes, relembrando as esqueléticas e beges vacas da Índia e pensando ; que desperdício… - Hei, boiadeiro, quanto é uma rês? - 500 reis, Meu senhor. Vou deambulando ao calhas, inspeccionando e perguntando os preços dos cântaros de barro, das cestas de vime, das couves, grelos e nabos do Inverno, do arroz, trigo e milho armazenado em vasilhas, até da própria lenha pergunto o preço curioso e chegando à conclusão que é bem mais barato a vida aqui em cima que na metropolita Lisbonna à beira Tajus. Compro umas laranjas, dou uma a um puto cigano inquirindo-o: - Conheces os Malheiros? – ele encolhe-me os ombros. Miro acima do areal, di
O Templo de Parvati com as suas altas chaminés rendilhadas de fumo negro da morte estava deserto pela aurora, com as mãos a tremer com o saco de serapilheira húmido e nauseabundo avanço vacilante pelo pequeno canal de lajes brancas que atravessa o lago, entro subindo as escadas esburacadas de laterite embrenhando-me na escuridão asfixiante e sentindo-me no fundo do poço. O chão era constituído por milhões de ratazanas que me levam através das colunas de corpos até ao centro no templo, onde face à estátua azul da Deusa da ceifa da vida com seus colares de cabeças, uma pira de carvão arde e incinera os sacrifícios. Tremo ao pegar na perninha do primeiro feto, amarrado a ele vem o segundo, os dois encurricados, rubros, sem vida, projectos de futuros passados…. perguntava-me, mas eu já os queimei? depois lembrei-me que es