Personagens:
Abhilasha – Lacaia hindu de Fernão Guedes Monteiro
Al-de-tar-we – Campeão indiano no cerco a Goa
Alexandre Mattos Saldenha – Capitão dos mosqueteiros de Goa
Amélia Sá Monteiro – Filha mais nova dos Monteiro de Candolim
Aranha – Companheiro de Lisboa de Montês
Bartholomeu Beirão – Famoso pirata conhecido como Bartholomew Português. Que escreveu o código pirata.
Bordallo – Pirata do galeão voador
Canhoto - Um dos homens que depositou o recém-nascido capitão Malheiro no adro da Sé de Viseu.
Capitão Montês Malheiro - Soldado, pirata, aventureiro, espadachim…
Capitão Ribera dos Arcabuzeiros
Chimonga – Aprendiz de Rafaello
Bota-fogo – Famoso galeão de guerra da marinha portuguesa
Dama Branca de Avillez – Senhora de Moçambique que procura vingança de Noronha de Mascarenhas.
Delgado Lopo – Alferes de Goa
Deolinda – Filha de Dama Branca de Avillez
Diogo – Marinheiro pirata de Bartolomeu
Di Boka – Piloto guineense ao serviço de Rafaello
Dong – Empregado no opiário de Fei Li
Estevão Malheiro – Pai de Montês Malheiro
Estevez – Pirata do galeão voador
Fei Li – Amante macaense de Montês
Fernão Guedes Monteiro – Senhor abastado de Goa
Fernão Távora Redondo – Genro de Dama Branca de Avillez
Filipa de Castro – Nome falso de Dama Branca de Avillez
Frei Bernardo – Tipógrafo de Lisboa
Gallocristo - Genovês portador do mapa do tesouro de Ali Pascha
Galeão Voador– galeão do corso de Van Gekookt depois navio pirata de Bartholomew Português
Gonçalo de Taborda – Cirurgião do galeão voador
Gonçalo Trestemires – Soldado de Goa
Hansen – Canhoteiro do galeão voador
Isabel Sá Monteiro – Esposa de Fernão Guedes Monteiro
Izmirla - Criado hindu de Fernão Guedes Monteiro de Candolim
Jaquim – Rapaz-de-bordo do galeão voador
Joanna Vasconcellos – Nome falso de Dama Branca de Avillez
João Botelho – Soldado de Goa
Lopo – Rapaz-de-bordo do galeão voador
Malapata – Espadachim castelhano ao serviço de Noronha de Mascarenhas
Manuel Malheiro – Soldado a bordo do bota-fogo, meio-irmão de Montês
Martim Valentim – Sargento da companhia de Montês Malheiro em Goa
Maria – Puta de Lisboa
Maria Chanfrada – Mulher-pirata a bordo do galeão voador
Mastim – Soldado da companhia de Goa
Melineide – Criada de Dama Branca de Avillez
Mendo Fernão – Pirata do galeão voador
Mátchu – Pirata africano ao serviço de Bartholomeu
Mongonunza – Marinheiro guineense ao serviço de Rafaello
Montenegro – Espadachim castelhano ao serviço de Noronha
Montoya Velásquez – Capitão da companhia de Goa
Noronha de Mascarenhas – Temível coronel arqui-inimigo de Montês
Osório – Um dos homens que depositou o recém-nascido capitão Malheiro no adro da Sé de Viseu.
Padre Ramon – Perceptor de Montês, acolheu-o e criou-o da melhor maneira espartana possível.
Princesa Urvasi de Agassaim – Noiva de Montoya
Putardo – Campeão português de Goa
Quico – Criado-de-bordo do galeão voador
Rafaello Martino – Comerciante e contrabandista veneziano
Ranho – puto de Lisboa
Richofen Von Munch – Canhoteiro alemão de Goa
Rosa de Arantes – Mãe de Montês Malheiro
Samir – Berbere negreiro
Santarino – Espadachim castelhano ao serviço de Noronha
Santísima Trinidad – Galeão espanhol carregado de oiro das Américas
Tancredo – Mendigo na Alcáçova de Santarém
Telles – Canhoteiro do galeão voador
Tomás Estevão o Velho – Pregador jesuíta de Goa
Tonho – Sacristão bêbado da Alcáçova de Santarém.
Van Gekookt – Capitão do galeão voador
Van rufiing – Homem-de-armas do galeão voador
Viseu, Ano da graça de 1610
Dois vultos de capas negras, pendidas sobre os chapéus ocultando os rostos, calcorreiam nervosos, receando ser vistos, o adro da Sé na noite mais fria do ano. O som dos botins martelando a calçada gélida espantam os rafeiros, que se afastam sem ladrar.
Um deles relança o olhar sobre o magnífico paço episcopal, mas inibe-se de dizer algo ao outro, que traz protegido pela grosseira fazenda preta, um recém-nascido adormecido envolto em mantas.
Param frente à fachada maneirista da Sé, com as duas imponentes torres medievais que a ombreiam e guardam, admirando os nichos das estátuas dos santos e de Maria coroada no topo. Um vulto faz o sinal da Cruz, o outro, exausto e enregelado, suspira aliviado pela sua demanda estar a chegar ao fim:
- Já chega Osório! Já chega de cavalgar com o rebento estrada fora! Ainda por cima no Inverno, cum raio! Deus me perdoe, mas deixemo-lo aqui!
- Sim, tamos fartos, ele disse-nos o mais longe possível, e é o mais longe possível para nós, já chega! Dir-lhe-emos que o deixamos em Castelo Branco, ou Alentejo, ou no raio dos Algarves, se for caso disso!
- Falta uma hora para as beatas madrugadoras chegarem e o sacristão pulguento abrir a pesada porta. Com sorte encontram-no vivo. – diz o vulto negro subindo a ampla escadaria e depositando o rebento, adormecido e agasalhado, junto à porta.
- Alá lá para Abravezes onde existe uma taberna sempre aberta de noite. - Sumiram-se então como gatos furtivos na noite escura e fria procurando o aconchego duma lareira quente e dum bom tinto. O rebento ficou só, emerso no sono dos inocentes despreocupado. A geada inclemente começa a penetrar nos cobertores e quando seus pezinhos começam a sentir na pele o desconfortável frio um choro lancinante eclode. Passado pouco tempo a pesada porta da Sé abre-se e um sacristão atarracado e friorento observa-o e recolhe-o para dentro onde, miraculosamente, o recém-nascido cessa de chorar. Terá sido do cheiro forte do incenso? Das velas que tremem nos nichos laterais aconchegantes dos santos? Do alto teto abobadado granítico e escuro? Não sabemos, nem nunca o saberemos e, decerto, ele também não se lembrará…
Quinze anos volvidos, Alcáçova de Santarém
Foi uma dor aguda e lancinante que me arrancou da frígida vigília e me fez vir à tona da dura realidade empedrada. Miro o meu pé na escuridão levemente apunhalada pelas longínquas velinhas acesas no nicho do orago da pequena praça. A ratazana, oleada e negra do tamanho de um coelho vê-me, com aqueles olhos faiscantes e desaparece pela familiar fenda. Levo a mão ao pé dorido, tinha-me ferrado bem no espaço entre o dedo grande e o outro; levanto-me combalido e assustado por estar em risco de apanhar peste. Miro a grossa porta de carvalho com espigões de ferro, evito pisar os outros dois mendigos adormecidos, torno a bater forte na porta pela quinta vez esta madrugada adentro:
- Padre Ramon! Padre Ramon! Deixai-me entrar, por piedade! Uma ratazana mordeu-me o pé! Estou quase a desmaiar! - Tancredo levanta a cabeçorra desgrenhada e careca e avisa-me enfadado por eu o retirar dos braços do Morfeu:
- Ele não te abre a porta, deixaste-te apanhar hoje a roubar! – depois torna a repousar o rosto na dura pedra que nos serve de leito. Não desisto de bater desesperado e a sentir um caudal de sangue a resvalar para o granito, mas respiro de alívio quando ouço uns passos apressados de dentro e a porta rangedora abrindo-se com esforço. Pego nas socas e no manto aos farrapos, meto-me por entre a exígua abertura obrigando os ossos a afunilarem.
Padre Ramon, do alto dos seus dois metros, de sotaina negra até aos pés, tenebroso e de longa chave de ferro na mão, mirava-me de alto a baixo com desdém, não me diz nada de boca encurvada para baixo e selha carregada e começa a andar pela nave central. Sigo-o cabisbaixo fazendo o sinal da Cruz para o meu lado direito, onde num nicho tendo por guarda um fresco deteriorado dum rei mouro a atacar uma cidade, repousa o túmulo de Rodrigo Afonso, um bastardo como eu, mas um bastardo abonado…
Executamos uma ténue vénia frente ao alto sacrário e dirigimo-nos a um anexo lateral. Lá, padre Ramon ordena que eu meta mais uma canhota para avivar a salamandra. O fogo era reconfortante…
- Senta-te neste banquinho e mostra-me o pé! – mostrei-lhe então a mordedura da vil rata, o sangue tinha estancado e apresentava-se agora coagulado. O jesuíta negro pega num cântaro de cerâmica branca e deita-me aguardente de casca de carvalho alentejana para a ferida aberta:
- Uhhhhhh!! – guino de dor.
- Pela santa mãe, isto é um desperdício de boa pinga! – depois levanta-se do duro leito e põe o tição de ferro nas brasas da salamandra. Engulo em seco.
- Bom, temos que esperar, iremos rezar um terço enquanto o ferro fica rubro. – chiça, eu que esperava fechar os olhos e dormir, rezar agora não estava mesmo nos meus planos.
- Começas tu ou começo eu? - Encolho os ombros, Ramon começa de olhos fechados e mãos no velho terço que trouxe de San Sebastian:
- Pai nosso que estais no céu….
Cinquenta Avé-Marias e cinco Mistérios depois, padre Ramon pára e olha o tição enfiado pela abertura metálica rendilhada da salamandra. Retira o mesmo olhando a ponta incandescente do ferro.
- Já está no ponto. – diz satisfeito. – Temos que queimar a ferida, Montês Malheiro, não queres cortar o pé todo, pois não?
Fico boquiaberto a vê-lo a puxar-me o pé para cima do banquinho.
- Espere padre. – consigo esticar-me para ir buscar a aguardente à mesinha, bebo um trago que me revolve as tripas e mordo o cinto de couro que ele me dá. Primeiro, metodicamente, torna-me a regar a ferida com aguardente. Dor gradativa subindo a espinha e desaguando nos ouvidos, depois é que foi, pega no tição bruscamente, amarra-me o tornozelo e ordena-me para aguentar a dor do inferno, queima-mo e a mesma bloqueia-me os sentidos e fico suspenso no limbo, é incrível como dum ponto pequeno a dor se torna tão grande e lancinante, a moer…. a moer….a moer, o cheiro a carne queimada enche o ar, meu pé é libertado, encolho-me a chorar no chão frio. Padre Ramon põe então uma manta em cima de mim, deita-se no leito e enche tabaco holandês na chaminé do seu longo e fino cachimbo de marfim.
Adormeço choroso, muito lentamente, com o pé de fora da manta e tendo por baixo a laje na igreja mais fria de Portugal, ou deverei dizer, a laje mais fria da província portuguesa de Espanha?
- Montês!
- Sim mestre.
- O que é que te ensino sempre? parece que te esqueceste! – repito a lenga-lenga:
- Roubar sempre aos ricos e nunca ser apanhado, isso não é pecado, mas sim serviço a Deus.
- Quem são os filhos da puta que minam tudo?
- Os padres e os nobres.
- Quem mantém a sociedade a andar?
- Os burgueses e o povo.
- Quem é o representante do demónio na Terra?
- O rei.
- Alguma vez te ensinei estas coisas?
- Não… Nunca, arderíamos os dois na fogueira.
- Quais são os ratos mais vis do mundo a seguir aos portugueses?
- Os castelhanos.
- E os mais espertos?
- Os vascos, pois claro.
- E os mais práticos?
- Os holandeses.
- E agora dorme e sonha com os anjos, Montês Malheiro. - Sorri amavelmente virando-se de lado. Eu viro-me também de lado tentando por a manta entre meu corpo e a laje fria, depois tento alhear-me da dor mas era impossível, era como um ferrão incandescente osso dentro. Sem vontade de rezar, fico vazio recosendo lentamente os retalhos esfrangalhados da minha vida negra, indigente e sem saída. Chiça!! Se estou assim aos quinze anos que fará aos vinte? A vida é miserável, a vida é uma puta de miséria…
O cantar longínquo do galo desperta-me estremunhado, mas a minha vontade era virar para o lado e dormir, nem sei porque ergo o pescoço gorduroso e observo a exígua abertura por onde o ar vai clareando, detenho-me a ouvir todos os sons de dentro da igreja, mas aparte do leve ressonar do padre Ramon não oiço nada, o que é estranho… Tonho, o sacristão, já deveria ter aberto a porta e o cheiro a incenso chegar-me-ia ao meu nariz. Levanto-me preocupado calçando as socas e vestindo os calções de folhos negros esfrangalhados, a correr irrompo pela nave central adentro habituando os olhos à obscuridade. Atravesso-a de ponta a ponta e dependuro-me na grossa corda apartando os pesados cortinados que deixam entrar a luz da aurora. Oiço, do lado de fora, elas a chegarem. Corro para o sacrário, qual é o meu espanto e pânico quando o mesmo estava aberto e dentro, não encontro o vinho nem as hóstias, procuro-as no ainda parcamente alumiado chão e ponho-me a imaginar o que teria sucedido: Tonho, no seu desespero madrugador pelo vil vinho tornou a forçar o sacrário e na fuga espalhou as hóstias pelo chão e a porta ainda não está aberta, e o sino não toca a rebate, e já oiço padre Ramon a levantar-se e apressadamente a vestir a batina. Desesperado, pego no cálice banhado a prata e atabalhoadamente retiro as hóstias do chão tentando sem sucesso desempoeirá-las. Algumas se quebram no meu desespero. As beatas, à porta da igreja, estranham a porta estar fechada e o sino não tocar. Ponho o cálice com hóstias em cima da mesa e corro a abrir a porta. Padre Ramon entra na nave e vê-me a correr desesperado, desferro-o o pesado portal e com custo abro-o lentamente. De seguida corro para tocar o sino, atiro-me ao cordame e badalo amaldiçoando Tonho que deverá estar a roncar numa viela imunda qualquer Scalabitana. As bestas entram e eu rezo para que elas não notem na sujidade e na poeira entranhadas nas hóstias quando as suas línguas malévolas e húmidas roçarem na pasta branca da farinha abençoada. Padre Ramon dirige-se para o altar e eu tomo a alva de Tonho dependurada desleixadamente na fronha do arcanjo São Miguel e atabalhoadamente envergo-a correndo para o altar a tempo de coadjuvar padre Ramon que me mira assustado como gritando: Tonho embebedou-se de novo?!
A missa, já com as betas abonadas, remediadas e pobres da cerca alta de Santarém começa como sempre começara há onze séculos neste mesmo local
In nomine Patris, et Fílii, et Spíritus Sancti…
Respiro de alívio por ter chegado a tempo e a ordem natural das coisas ter ficado reposta. À medida que virava as páginas no Livro Sagrado pousado no ambão de mogno trazido de lenhame[1] comecei a assumir uma cara de triunfo que se desvaneceu após a entrada de alguém que não tinha a ver com o nosso redor. Vestia-se como um burguês, com um excêntrico turbante azul veludo como os comerciantes italianos usam, calças aos folhos terminadas no joelho e atadas com fitas e sapatos de tacão alto de fivelas, casaca pelos joelhos abotoada na cintura com galões. Era estranha a presença dele ali, nem sequer se ajoelhou e fez o sinal da Cruz, apenas sentou-se a revirar as pontas oleadas do longo bigode negro para cima, dando-lhe o aspecto de dois cornos de touro negro ribatejano saídos debaixo do seu aquilino nariz. Mirava-me constantemente como avaliando-me e não respondia às orações. Que quereria ele? Parece que dorme enquanto padre Ramon debita o latim de Deus… Parece que admira as colunatas, a clarabóia, a arte do altar e do sacrário… Parece que vagueia pelas ondas de espuma do tempo…
Vade in pace et Dominus sit tecum
Ámen
As beatas pobres, ricas e remediadas foram lentamente saindo olhando com curiosidade acutilante o visitante estranho. Nós, arrumamos lentamente no sacrário o resto das hóstias consagradas e o resto do vinho que Tonho não emborcara. O estranho visitante levanta-se do banco e dirige-se a nós de rosto afável e sorridente. Usava, além do rocambolesco bigode, uma delineada barba entremeada de brancas. Abre os braços como um anfitrião acolhedor:
- Caríssimo Ramon Ekaitza!!!
- Rafaello Martino, meu caro!!! – abraçam-se os dois acaloradamente, de facto, Ramon nunca demonstrou tanto carinho por alguém, fico um bocadito enciumado e olho o chão tristemente.
- Ho ricevuto la tua lettera, vecchio marinaio, è questo il ragazzo? - marinheiro? Padre Ramon já foi marinheiro?! É este o rapaz? Que querem dizer com isto?!
- Tienes hambre? No hablaremos de negócios mientras no comicarmos en una taberna com una magnífica vista sobre el Tajo.
- È questo il ragazzo? – torna a perguntar mirando-me de alto a baixo como se avaliara um cavalo que haveria de comprar.
- Sí, este es el bribrón. – responde Ramon puxando-me violentamente a orelha.
Sem mais delongas, fechamos a igreja e dirigimo-nos, pelas apertadas vielas scalabitanas, para o natural anfiteatro altivo que se abria para o rio no alto do castelo. Encostado ao mesmo uma tasca que existia desde que eu me lembro de andar descalço a jogar à pelota pelas vielas com oito anos, abria-se com aquelas portas giratórias de frechas rendilhadas que se catapultam quando os bêbados são escorraçados ou as rixas são levadas para o átrio do pó. Entramos apartando as mesmas que se fecham rapidamente detrás de nós. A tasca estava parcamente alumiada com velas acesas derretidas nas mesas de carvalho baixas e porcas. A maioria dos clientes era soldadesca do castelo e campónios que de manhã enchem a barriga de vinho para as jornaleiras na lezíria mais abaixo. Procuramos uma mesa no canto mais distante por onde se viam o tajus por duas exíguas frechas. Sentamo-nos e Rafaello gracejou:
- Questa è la vista spettacolare del fiume che mi hai pro promesso?[2]
- Hum…Montês, vai ao balcão e pede pataniscas, vinho, broa e azeitonas e…queijo, vai rapaz, porque esperas? nossos santos estômagos roncam de fome! – ordena Ramon visivelmente bem disposto. Fiz o que me era pedido diligentemente. As palavras não me saíam da cabeça é este o rapaz? Torno-me a sentar e deponho a travessa das pataniscas e o jarro do vinho, uma moça de coifa branca, faces rosadas e de avental imundo trouxe as azeitonas, pão e queijo e pô-las em cima de uma tábua, começa-me a crescer água na boca. Padre Ramon abre os braços compenetrado e de olhos fechados:
- Abençoai Senhor os alimentos que vamos tomar, que eles renovem as nossas forças para melhor vos Servir e Amar.
- Ámen. – atirei-me logo a uma patanisca enquanto o forte e gordo Rafaello me deitava para a caneca vinho puro tinto ribatejano perante o aceno afirmativo de Ramon, deixam-me beber vinho e não água, isso é sinal que entrei na idade adulta, nem sei se deva estar feliz ou triste. Durante algum tempo comemos em silêncio acalmando as nossas vazias barrigas…na terceira malga de tinto o tempo e a conversa processa-se lenta como a corrente do rio vinda de Espanha:
- Vecchi tempi questi mio marinaio… - Comenta Rafa
- Já agora, como estan maneta e Binnaz? – pergunta Ramon.
- Mortos.
- De quê?
- Gonorrea.
- Balthasar, eunuco, Meia-leca, Abdul, Fallad?
- Sarna castelhana[3]
- Andrea, Nikola, Boskovic, Mihajlo, Andropoulos….
- Esuli, ucciso com sciaboles, …è la vita, è il destino sapete bene la vita de uno pirata barbaresco[4].
- Se sei… - Marinheiro… Pirata barbaresco… O padre Ramon é um poço de surpresas. Penso boquiaberto.
- Rapaz fecha a boca que te entra uma mosca. – grita Rafaello. Atirando-me uma côdea para dentro do meu gargalo, quase asfixio e de cócoras expulso tossindo o pão, levanto-me sem a amável ajuda dos meus senhores continuando a ouvir a cativante conversa:
- Sorpreso, ragazzo, com a historia dil tuo precettore? Queres ouvi-la? eu conto-te em poucas linhas de tinta de pena de ganso e em português. - emborca mais vinho tinto, aclara a voz enquanto Ramon, quase indiferente, dava longas, lentas e pausadas cachimbadas….
- Reinava o velho magno Carlos I em toda a Hispânia e todos andavam de gorjeira. O jovenzito Ramon… - aponta efusivamente o mesmo. - …austeramente criado em San Sebastian, vai de estival visita a uma sua tia na aprazível praia de Blanes…
- Não, puerto de Cadequés. - corrige Ramon.
- Sim, vai visitar uma tia a Cadequés. Era Verão, estava quente e o jovencito Ramon Ekaitza caminhava solitário pelas praias, quando, de repente, umas mãos fortes amarram-lhe os ombros e enfiam-lhe um saco de serralheira rosto adentro. É assim levado por uns salteadores mar fora perante o pânico das criadas. Triste sina… capturado e vendido em praça pública em Bugia e entregue ao serviço de uns piratas barbarescos onde é posto a limpar o convés… Mas depressa subiu a contramestre
- Não! Mestre-de-armas – torna a corrigi-lo Ramon entretido com a cachimbada e bem disposto.
- Sim, mestre de armas, depois de ter mostrado o seu valor numa abordagem de franceses…
- Não, de holandeses.
- Ou seja - diz Rafaello já irritado continuando : - Nesse tempo já nos conhecêramos e já tínhamos decidido não ligar à religião e saquear cidades cristãs debaixo do comando dos temíveis irmãos Barbarossa….- Rafaello continuou contando a história… Ramon foi um corsário no Mediterrânico, ele e Rafaello serviram os irmãos Barbarossa, os mais temíveis piratas berberes no Mediterrânico durante quinze anos, saquearam cidades, violaram moçoilas, deixaram portos a arder, execuções sumárias, enfim…e depois, pelo que me apercebi, Ramon decidiu deixar tudo e entregar-se à vida de Deus dando a sua fortuna aos jesuítas de Madrid e tornando-se ele mesmo um retirando-se depois para Portugal, onde segundo ele diz é o último paraíso da inércia no mundo cão. No final da história toda a tasca aplaudiu de pé. Após esse efusivo aplauso tornamo-nos a sentar, manhã ia longa…
- Agora tens uma galeota e geres um negócio legal - confirma Ramon
- Legal de quê? De contrabando? - riem-se à gargalhada tornando a emborcar mais vinho.
- Descerei il fuime com a noite de volta a Lisbonna – remata Rafaello, os dois olham-me sérios.
- Levarás o ragazzo . - como?!
- Mas padre Ramon, eu não quero ir ! - Ramon casqueteia-me a nuca, argumenta com lágrimas nos olhos:
- Vais partir. - começo a chorar, ele continua também choroso:
- Solto-te, parte para a aventura, é altura de partir ou preferes ficar aí descalço e sujo sempre a badalar o sino de alcáçova? - ponho-me em silêncio a pensar.
- Queres acabar como o Tonho? um bêbado sem eira nem beira! Não andei a ensinar-te a ler, a escrever e a aprenderes latim estes anos todos para nada!? Irás partir, tornar-te um homem porque é assim a lei da vida e a lei de Deus, - faz o sinal da cruz. Uah! Deus deve ser Vasco!
- Deixarei o meu testamento, juntamente com a tua história, no arquivo dos jesuítas em Coimbra, se algum dia quiseres reclamar o que é teu! – fico a olhar para ele sem saber o que dizer. Rafaello toma o meu braço:
- Vamos rapaz. – Ramon oferece-me o seu esguio cachimbo de marfim, tomo-o em choque sendo arrastado por Rafaello.
- Vamos rapaz, quando o dia raiar quero estar a pôr o pé no cais de Lisbonna. – ordena-me Rafaello ainda em português. Atabalhoadamente descemos pelo inclinado caminho de terra batida para o porto de Alfange, lá por entre ânforas enormes de barro e tonéis de vinho vi o surgir de um mastro de uma galeota que, com uma ordem bradada de Rafaello de içar a vela, ficou pronta para zarpar. Subimos pelo passadiço até que somos recebidos no tombadilho por uma tripulação toda negra, o que, aliado à dança dos fogaréus, provocou em mim um arrepio na espinha.
- A minha tripulação, ou parte dela! – acena orgulhoso Rafaello. – Todos ex-escravos da Guiné. – Empurra-me para o meio do tombadilho, lá, começaram todos a rodear-me com aquele cheiro intragável a catinga envoltos em ásperas mantas de lã bruta igualmente negras. As suas órbitas brancas brilhavam na escuridão como lobos rodeando a frágil presa, um deles pergunta a Rafaello:
- Dun i este galu ki fedi a Anduriña?[5]
- E’il mio nuovo apprendista. – responde rispidamente Rafaello ao negro. Começam todos a cheirar-me como uma matilha que tem que aceitar um novo membro.
- Sta borrifar di medi[6].
- Pudera! TUTTI AL LAVORO! Mestre zarparemos agora! – rapidamente todos desgrudaram de mim. O comandante encosta-me à amurada:
- Fica aí sossegado e ouve e aprende!! – amarro-me assustado à mesma vendo-os a laborar à luz dos archotes.
- Soltar amarras! Vocês aí, manganões, estiquem a vela. Alumiem a proa, Mongonunza! Prepara a corda dos côncavos! – ordena Rafaello num português irrepreensível. Lentamente escorrego pela amurada até à popa onde o piloto está amarrado ao leme, vê-me com aqueles olhos brancos sob um fundo preto e exclama:
- Ken subu tu riu de dia sibi descu de note[7]. – pisca-me o olho, nervoso e a suar das estopinhas, e eu tento decifrar a frase, quando consigo penso para os meus botões: uau ! deve ser um grande piloto! Lentamente a galeota deixa o sonolento cais dos fogaréus… Parto Tejo abaixo vendo a minha vida e a segurança das muralhas scalabitanas toda deixada para trás rumo ao desconhecido forçado, um nó da garganta forma-se e esgana-me. Aperto forte o cachimbo de Ramon, o único pai durante estes quinze anos de mendicidade.
Lentamente seguimos imersos no escuro com Mongonunza a medir os côncavos do rio e o piloto de nome Di Boka a perscrutar a escuridão apenas levemente apunhalada pela generosa tocha na proa. De quando em vez, quando falhava a luz da lua, eram arremessadas flechas incendiárias para jusante, grande memória devia ter tido o piloto para fazer a viagem de noite, memória de contrabandista e bandoleiro.
Passados longos momentos em que deslizávamos nas serenas e escuras águas, Rafaello sentado no castelo de popa com mais três marinheiros chama-me. A eles me acerco tentando manter o equilíbrio num solo de madeira em andamento. O italiano pára de cachimbar e pergunta-me:
- Ramon ensinou-te a esgrimar?
- Sim, com um pau.
- Vamos lá ver isso. – Agilmente, dá um salto para o tombadilho tomando dois paus enfaixados na base do traquete. Atira-me um às ventas. Amarro-o com determinação, o ítalo separa as pernas e põe-se en garde empunhando o pau em riste. Igualmente faço o mesmo pondo a mão livre detrás das costas para ganhar equilíbrio. Em posição de assalto ficamos encarando-nos. Os negros alumiam mais o tombadilho dando gritos de encorajamento aos duelistas. Rafaello ataca em estocada batendo o pé da frente em cada movimento de ataque, defendo-me da ponta do varapau três vezes seguidas desviando-o à gauche e à droite e recuando até à amurada da embarcação. Lá empurram-me de volta para o meu assaltante que com a sua mão livre enfaixa-me o braço, faz-me um traço com o pé e golpeia-me na nuca. Atontado replico-lhe:
- Não sei dar golpes baixos nem sei lutar com as pernas.
- Mum…- Rafaello põe-me de pé: – Irei ensinar-te a lutar à pirata.
- Chimunga dá-me a faca. – mostro-me amedrontado.
- Relaxa, miúdo, vou-te ensinar uns truques. - Toma com a mão o meu pescoço na nuca, baixa-me a cabeça e levanta o joelho estancando-o no meu nariz.
- Assim partes a cana do nariz a um gajo. – depois levanta-me bruscamente os braços, amarra-me e na base da nuca simula que me espeta um punhal.
- Aqui é morte certa. – de repente torce-me o braço e fico de joelhos a arfar:
- Aiiihhhh! – faz pressão na minha coluna
- Assim fica o gajo sem andar..- torna a dar-me mão e a pôr-me de pé.
- Mongonunza!
- Si capitan.
- Exercita-o!– aturdido e com o chão de tábuas de madeira a mexer sou atirado para Chimunga para exercitar as minhas primeiras lições de combate de marinheiro, contrabandista e, quiçá, pirata.
Vianna do Castello, três meses depois…
Chovia a potes quando entramos nas três marias por umas portas giratórias de frechas rendilhadas que me faziam lembrar a já distante tasca de Santarém.
Lá dentro, enquanto recolhia a minha lona protectora e a de Rafaello, tive a impressão de já ter vivido este momento, como se entrara infinitamente com alguém mais velho numa tasca obscura imersa ao longo dos escuros tempos, como se andássemos sempre a repetir o mesmo fado…vezes sem conta:
- Rapaz senta-te ali! – miro uma esquina com uma baixa mesa emporcalhada de ceras das velas desfeitas que ardiam ao centro da mesma. Dirijo-me até lá ouvindo as vozes dos clientes que me pareceram ser russos, suecos, alemães e alguém distante fala italiano. Rafaello dirige a atenção para lá, juntamente com as pernas. Eu, cansado e roto, sento-me na obscura mesa, observando a tasca igual a tantas outras deste Portugallo à beira mar enterrado. Discorro desinteressadamente ao longo das enormes pipas alinhadas até ao tecto de madeira sustentado por colunas de granito frisado. O meu capitão regressa com alguém velho de barbas grisalhas até ao peito e calções aos folhos apertados no joelho, parecia um homem que parara no tempo em que perdêramos Don Sebastião na Batalha de Alcácer Quibir, ainda usava uma incómoda gorgeira dos nossos avós e um gorro emplumado do tempo em que éramos grandes. Faz-me uma espalhafatosa vénia a que eu estranho.
- Bonna sera! – era italiano e fedia a suor e vinho..
- Sedersi, sit voi il mio bene Gallocristo!! –aparto-me para ele se sentar, enquanto que Rafaello toma um incómodo escabelo mirando com curiosidade o italo já tocado com o vinho.
- Montês, traz um jarro de vinho do caro e três malgas, e, já agora, broa e chouriço para comicarmos. – levanto-me sem perder de vista os dois e encosto-me ao frio balcão pedindo alto ao atarefado tasqueiro:
- Um jarrito de tinto e três malguitas. – o taberneiro dá-me o jarro branco de cerâmica de riscas azuis. Tomo o tintol e borrifo-o para o chão onde um cão vadio que roía um osso cheira a mistela.
- Deste verde não, do outro… do caro. – o taberneiro, de cabelo ralo ensebado, dentes cariados , selha carregada, mira-me de alto a baixo com cara de poucos amigos. Recolhe o jarro enquanto eu pego nas três malgas igualmente brancas e tingidas de mal lavadas dos clientes anteriores. Espero enquanto ele enche outro jarro duma pipa relançando sempre o olhar no meu capitão. Os dois italianos ao fundo da sala riam na tasca do porto mais cosmopolita do norte de Portugal….Subitamente recordo-me de Ramon, como estará ele na fria alcáçova sem mim para o ajudar? Uma tristeza aguda irrompe no meu peito, tento apartá-la cheirando o tinto nobre do planalto quente alentejano. Retorno à mesa, sento-me e sirvo-os perante o linguajar deles perceptível para mim. trocavam recordações já não novas para mim. Ambos tinham sido contrabandistas no Mediterrânico, travaram batalhas, tiveram amantes, no fundo a mesma conversa com Ramon…
Adormeço de cabeça deitada na dura mesa e sonhei ou com o nada ou com as entranhas do mar. De repente, abro os olhos estremunhado e limpo à larga manga de linho branco o fio de baba que me escorre pelo queixo, quantas horas se teriam passado? As velas estavam baixas e a tasca semi-adormecida entretinha-se com dois ou três fregueses a roncar empoleirados nas incómodas cadeiras. No balcão não estava ninguém, as três marias deve ser uma daquelas tascas que devem estar abertas toda a noite a receber os madrugadores camponeses, os noctívagos pescadores e os ressacados marinheiros de todo o mundo na sua conexão com o norte da Europa. Ramon contara-me que os dois homens que me deixaram no adro da Sé de Viseu depois refugiaram-se numa tasca toda a noite e contaram ao taberneiro toda a minha história…mas agora enquanto tiro a remelas dos olhos conseguia perceber a conversa dos dois italos encharcada com sete jarros de vinho goela abaixo:
- O grande sultão Ali Pashá navegava sempre o seu mais estimado tesouro móvel sempre atrás das suas quarenta galés.
- Ah é? E que tesouro era esse? – pergunta curioso e com a língua a arrastar Rafaello a Gallocristo:
- Era uma galera carregada com o seu tesouro em moedas e jóias e o seu harém guardado por escravos arménios. Se o tesouro afundasse, afundavam os arménios agrilhoados aos remos da sorte, que a guardavam juntamente com a sua vida.
Ora, depois de perdida a Batalha de Lepanto a favor dos cristãos, a galeota fugiu para a ilha de Syros tal como o combinado com Ali, só que o grande sultão afundou-se com as bogardas das galeaças venezianas e os escravos, fartos de esperarem, libertaram-se dos grilhões, levaram o harém e fugiram para a liberdade mas deixaram o tesouro, dado que para eles era maldito e ditara a morte do seu tirano chefe. Partiram livres e sem riquezas para os quatro cantos do mundo…
- Ou seja, o tesouro ainda está escondido em Syros? – pergunta, ávido, Rafaello arregalando as espessas sobrancelhas.
- Em Syros não, noutro sítio. – conclui, sério e desesperançado, Gallocristo.
- Que achas disto Montês? –
- Eu? Histórias da carochinha! Eu não acredito em nada! – disse-lhe, com sinceridade, encarando de frente o genovês.
- Isso não me surpreende. - replica - Sempre que conto a história a alguém capaz de me fretar um barco ninguém se acredita e todos caçoam de mim chamando-me velho bêbado.
- Tu sabes ir lá? – pergunta Rafaello tentando acender o seu cachimbo. Gallocristo retira da sua gasta e velha bolsa de couro um pergaminho enrolado, limpa a mesa com a manga do seu gibão e cuidadosamente desenrola-o:
- O último dos escravos arménio deu-me isto em Lampedusa. – miramos em redor a ver se alguém seguia a nossa conversa, chegamos as velas mais perto do mapa para alumiar os azimutes, era um conjunto de ilhotas abaixo de Chipre, aponta com as suas unhas sujas de imundice a mais pequena, com uma pequena enseada…
- Existe uma pequena gruta nesta enseada tapada por pedregulhos, é lá que está o tesouro. - Mostra-nos uma pequena gema. Começo-me a rir e espero que meu mestre e capitão faça o mesmo…mas para meu espanto ele não se ri e eu via cada vez mais longe a nossa viagem a Bavaria[8] para transportar bacalhau da Noruega a esfumar-se perante a cabeça gananciosa de Rafaello.
Dois meses volvidos… MarMediterrânico
O mar picado balançava para cima e para baixo, cada vez que descíamos a pique afundando-nos no mar escuro e revolto, as ondas entravam-nos nas narinas inundando o tombadilho. Todos os tripulantes amaldiçoavam capitão Rafaello por os ter feito embarcar rumo a uma quimera da desgraça…
Estava, juntamente com Mongonunza, amarrado com cordas à amurada, prontos com nossas facas em punho para cortá-las se aquela abissal onda negra nos virar a galeota e aparentemente é isso que vai acontecer.
- Chiça mininu! Vami ser engulidos! – o monstro subiu, recortado contra um céu escuro e revolto. Primeiro a galeota acompanhou a crista depois a onda massiva em fúria abateu-se sobre nós, despedaçando as vergas e os mastros e fendendo o casco.
De repente, sem ter tempo de levar a lâmina ao cordame, mergulhamos ficando sem ar, ainda tento cerrar a corda debaixo na anarquia caótica líquida de barris, cordame, velas, estilhaços de madeira imersa, mas algo pesado e rombo fende o meu crânio. Creio que vejo um cavalo negro nadando no fundo, rio-me perante tal visão mas rapidamente a traqueia é preenchida com água e a mioleira quer explodir sem ar.
Quinze dias volvidos…
Argel…
Era uma espécie de curral e estávamos todos alinhados e agrilhoados. Havia de tudo, brancos, pretos, berberes, até chineses vejam lá, mas todos pareciam iguais. Estávamos tão sujos, indigentes e maltrapilhos que os brancos eram negros e os negros eram mulatos. Formávamos um corredor humano de miséria, estancado entre altas cercas de madeira, em cima dessa longa e alta cerca corroída pela salinidade do mar, nossos algozes de haiks brancos envolvendo-lhes o negro rosto e armados de espigões e chicotes iam-nos espicaçando e obrigando-nos a andar para a frente.
A miragem do mar brilhante e fresco contrastava com a minha sede, não me lembro de beber água, aliás não me lembro de vir aqui parar após o afundamento. Deito a mão ao longo golpe aberto na nuca mas perante a sensação da possibilidade do osso do crânio estar fracturado desisto.
Mongonunza assegura-me que depois do afundamento da galeota de Rafaello fomos resgatados das águas da morte por piratas barbarescos que nos puseram a andar milhas e milhas na areia escaldante e que nos vão vender como gado neste porto.
Não me lembro de nada, sei apenas que nasci em Santarém e que servi Rafaello um mercador veneziano, mas depois não me lembro de mais nada nem do meu nome, tento lamber a boca gretada para refrescar os lábios mas o corpo já não consegue produzir mais humidade, recebo uma chicotada no tímpano e empurro o agrilhoado à minha frente para andar, olho para trás para Monganunza, o único vinculo do passado e ele pisca-me o olho assegurando-me que está tudo bem.
Sol…sol que me queima as têmporas e o mar ao longe tão brilhante e refrescante… Finalmente e a muito custo desembocamos num amplo curral poeirento, acho que oiço ao longe por entre a confusão e as ordens dos algozes um imã a entoar uma reza. Tento me lembrar de alguma mas não consigo, o golpe no crânio lateja e pus fétido descai de lá, descendo-me lentamente num fio gorduroso pela testa, nariz e queixo; o sabor da minha mioleira é acre mas traz humidade e sorvo-a.
No fundo estou a comer-me a mim mesmo para sobreviver. Reparo nas robustas traves erguidas acima das nossas cabeças. Estavam assentes em cima de amplos passadiços onde os nossos potenciais compradores avaliam-nos.
Tinham todos aspecto de comerciantes com faustosos turbantes de seda com bordas douradas e envergando grandes caftans coloridos e brancos até aos pés que os protegem do sol e do calor inclemente. Alguns, abrigados em guarda-sóis de madeira e de linho, borrifavam-nos por piedade com chá fresco de hortelã.
Sinto algumas gotas a molharem-me os lábios e dou-me por satisfeito por ter saboreado o paraíso fugazmente…A água aqui é paraíso e tenho a tola rachada e não sei quem sou.
Um berbere gordo de barba ruiva, turbante branco, olho azulão, vestindo um jaleco bordado e protegido por um guarda-sol, avalia-nos com o dedo indicador e o polegar, carregados de anéis, no queixo. Creio que nota na minha compleição física, debita algo para o escravo que lhe carrega a sombra, grita para os algozes cá em baixo que se aproximam de nós apartando os outros presos à chicotada, dou a mão a Mongonunza que aterrado, de olhar arregalado, vê o algoz a bater-lhe na cabeça ordenando-me que me largue. Eu amarro-me às pernas robustas do negro gritando para cima para o meu comprador:
- NÃO VOU SEM ELE, Ó DEMONIO RUIVO! – o berbere bebe o chá calmamente por um copo de vidros coloridos e diz algo ao escravo do género:
- Burtugaal[9] .
O escravo, que lhe carrega a sombra e a bandeja, acena afirmativamente. Cá em baixo, pontapeiam-me as costas e os rins ordenando-me para eu largar Momgonunza que me aconselha:
- Larga-me, Montês, é melhor para todos. – mas eu não largava a única coisa que me ligava ao passado.
O berbere diz algo aos algozes, eles param de me bater e amarram-me a mim e ao Monga e levam-nos para uma espécie de pelourinho onde nos dependuram pelos braços. As longínquas orações agora tornam-se mais nítidas juntamente com a ardência solar e os estridentes guinchos das gaivotas. Dependurados aguardamos que o berbere e seu escravo desçam dos palanques e se acerquem de nós, miseráveis. O berbere, de jaleco bordado, manda o escravo de cor negra examinar-me os dentes. Não ofereci resistência senão apanhava. Levanta-me, também, lentamente a pila para ver os colhões para não comprarem gato por lebre. Fazem o mesmo ao resistente Monga, depois a barafustar manda chamar o lanista abalando dali. O escravo, de olhos rasgados negros, dá-nos de beber, através dum odre de ovelha o fresco refresco de menta, despede-nos com um olhar triste e resignado.
- Montês Malheiro, creio que acabamos de ser comprados. – sentencia-me o guineense. Nem sei se deva chorar ou rir-me.
[1] Ilha da Madeira
[2] Esta é a espectacular vista do rio que me prometeste?
[3] Sífilis
[4] Reformados, mortos com sabres de abordagem, enfim, tu sabes bem a vida de pirata barbaresco
[5] Donde é este galo que cheira a andorinha?
[6] Está cheio de medo.
[7] Quem subiu o rio de dia sabe desce-lo de noite
[8] Holanda
[9] Português.
Andamos, andamos como nunca andamos. Somos cerca de trezentos robustos prisioneiros e a maioria irá para as galés dos turcos como remadores agrilhoados. Libertados dos grilhões ninguém ensaia uma fuga para o inferno escaldante. Nosso mestre berbere de nome Samir vai agastado em cima dum dromedário… Passamos por algumas praças marroquinas portuguesas, tais como Mazagão e Arzila onde assentávamos arraiais na nossa demanda pelo sul. Via esperançado os muros guarnecidos de bocas de fogo e ainda gritava para lá dizendo que tinha sangue luso. Os meus algozes riam-se. - Porque raios se estão a rir eles? - Monga só me respondia: -Só se pagarem um resgate por ti, dado que o mestre não te venderá a não ser para as galés dos turcos, e qual é o português que pagará um resgate por ti, acaso és nobre? - Não, Ramon disse que o meu sangue é da baixa nobreza minhota, sou um bastardozinho…. 90 dias sobre o Saara. O império Mali e o Be
De repente acordamos do nada e sabemos que estamos na realidade e a fantasia opaca e indecifrável como um sonho morto acaba. Gostava de ser nada e não acordar, mas o ar solarengo invade todo o quarto e predisponho-me a abrir os olhos. Levanto a pesada cabeça da ressaca e miro Quico debruçado sobre a janela mirando lá para fora. Existe alarido na plaza menor, quiçá provocado pela proximidade do mercado. - Quico, que se passa? – o rapaz olha para mim, bufa uma madeixa que lhe tolda um olho e responde-me preocupado: - O capitão Bartholomeu foi confessar-se e ainda não voltou. - QUÊ! Ele foi fazer o quê? – Telles na cama a meu lado põe-se de pé abanando os ombros a Quico. - Aquele verme, tanto cuidado para passarmos discretos e ele vai confessar-se a um padre espanhol pelas nossas vilanias, estamos tramados! – grita Estevez tornando a perguntar a Quico: - Com mil trovões, saiu há muito? – O imediato não esperou pela resposta, enverg
No dia em que vimos do atulhado cais o Virgem Maria zarpar, tomamos de assalto, a coberto da noite, uma ágil escuna pertença dum abastado comerciante de cacau, deitando o adormecido vigilante ao mar com a goela cortada. Pela noite adentro seguimo-los ao longe vendo as suas pequeninas luzes, mas sobreveio um nevoeiro que nos deixou ás cegas. Ainda pensei que iríamos assaltá-lo como tínhamos feito com o Santa Trinidad mas o capitão não mandou descer os botes de abordagem e assim ficamos à espera que o nevoeiro levantasse, e, quando isso aconteceu, as sombras dos altos mastros do enorme galeão começaram a surgir ténues:- Preparar abordagem! Desfraldem o velacho, a mezena, o estai!!!– grita O Capitão e todos começamos a armar os mosquetes, enquanto os mariolas desfraldavam as velas. Eu como ainda era rapaz-da-pólvora, encho a boca de fogo d
Não havia tempo e todos dos dias eram iguais, ou melhor havia tempo e calor asfixiante, tempo que nunca mais acabava à medida que a cabeça latejava e explodia na madeira carcomida quente. Não sentia o corpo e por consequência não sentia a alma, eu era uma sucessão de momentos e imagens fugazes no tempo e padre Ramon puxava-me a orelha violentamente por eu roubar o merceeiro e arrastava-me e encarcerava-me num armário escuro onde os monstros puxavam-me os pés. Acordo para a realidade e essa puta babilónica molha-me e morde-me os pés, chiça! são os lagostins no fundo da caixinha que entram com a maré, apago-me outra vez e a mordidela da ratazana voltava e levava eu atrofiado a mão ao pé ensanguentado, uma e outra vez….uma e outra vez….uma e outra vez…. - Acudam, tirem-me daqui por piedade, que mal fiz eu para merecer tamanha pena? - Mas os soldados no porto não me ligam com cara triste. Água… água cristalina… a boca seca. Suor que me que
- Apaguemos o fogo, está lua cheia e os Monteiro gostam de caminhar ao luar iluminador dos caminhos. - Dos caminhos dos crocodilos, dizes tu, o fogo afugenta os répteis e os tigres. – avisa Montoya - Tigres tão perto das casas? – pergunta medroso João Botelho - Não é dos tigres que tenho medo. O fogo põe-nos visíveis ás vistas dos ranes que atacam em grupo e das suas flechas ervadas [1] e nós apenas somos cinco a contar com o criado armado. – complemento, eles olham para mim surpreendidos com a minha sabedoria. - Então? na choça só podemos ouvir e dormir… - Chiça, eles nunca mais aparecem, estamos aqui espetados na escadaria há duas horas. – desabafa desalentado Montoya. Por fim o pesado portal de espigões abre-se e lá de dentro um criado monhé de turbante, justilho, calças de seda afuniladas, armado com tulwar e tabar[2] aparece inspecionando-nos, reverenciando-nos e pedindo que acabemos com o fogo. - Eu bem disse
Um mês de sortidas, assédios e fome decorreu…e a imagem ténue de Fei li não me larga… Estamos de novo reunidos na Torre da mesa oval com os capitães e os sargentos da companhia: - Caros confrades, as provisões estão-se a acabar e a monção tarda a chegar. Dizem os prisioneiros que, vindo a monção, o maratha se verá obrigado a retirar, dado que não terá condições de continuar um cerco. Ontem, mediante tortura, um rane confessou que o maratha ainda tem um ultimo truque na manga, algo que nunca tinha sido usado nas actuais artes da guerra, mas não nos soube dizer o quê. - informa-nos alferes Delgado Lopo andando nervoso e com as mãos atrás das costas em volta da mesa onde os capitães estavam sentados. Nós os sargentos, encostados nas pedras da parede à volta da mesa apenas ouvíamos com autorização para cachimbar à vontade, fei li, minha feilizinha… - Urge então urdirmos um estratagema para descobrirmos esse tr
Corríamos escuridão adentro pelo matagal. Estranhei não haver luar, sem luar como é que o maratha pensa em fazer alguma coisa hoje à noite? Todavia das ruínas do templo de Pattadakal os hipnóticos mantras continuam a ser entoados e os pirilampos na mesma pairavam indicando-nos o trilho das várzeas dos crocodilos que com os seus faíscantes olhos miravam-nos confundindo-nos com gazelas. Ocultamo-nos abraçados pelos bambus e palmares e vimos o braço do Mandovi alumiados por milhentas tochas! - Veja o que eles estão a fazer, mestre?! Impossível! - Estou mocado com ópio, por isso tens que me dizer o que vês. Senão ainda vejo elefantes a voar. - digo-lhe recostando a minha cabeça na erva quente e húmida e fechando os olhos. - Mestre, acorde, não adormeça. – alerta-me Izmirla pegando-me nos ombros e obrigando-me a abrir os olhos, estremunhado, tento ver, e céus! Eram enormes barcaças que estavam a ser puxadas, do outro lado da margem, por escravos com longas cordas
Três meses volveram, e uma casa extramuros aluguei, o amor não é eterno, mas as minhas mágoas são… Estava anestesiado mirando estático da janela do prédio branco de dois andares, as ocultas quintas frondosas dos ricos, e mais abaixo a grande lagoa e um braço do Mandovi e aqui tão perto os campos alagados das várzeas e a baixa muralha norte mesmo colada a nós, linda vista! Linda vista em que eu fui feliz durante três meses. Acho que nunca estive tão triste como em toda a minha vida, e não me lembro de me sentir tão melancólico e desesperançado, nem mesmo no rio Farim na Guiné quando era escravo. Observo lentamente as esmeraldas trepadeiras desenhadas na parede subindo pelo tecto…o contador de gavetas com bicharocos coroados… a enorme arca ferrada de tons avermelhados…a cadeira com valiosos entalhes de marfim..e por fim a larga cama de ébano onde a princesa Urvasi acaba de mudar a gaze fresca das frontes da febril Fe