4. Nunca esquecerei

Alexander:

Quando morri, pensei que ficaria preso para sempre no porão do colégio porque toda vez que tentava sair dali, não conseguia. Era angustiante e eu pensava que nada poderia ser pior. Estava errado!

Brittany e meu pai me “puxavam” para a casa com seus lamentos e eu ficava ora aqui, ora no porão do colégio. Não sabia onde era pior estar, no lugar onde fui assassinado ou em um lar onde via meu pai e minha “irmã” definhando por mim. Eu tentava consolá-los, mas eles não podiam me ver, sentir ou ouvir, já que eu não passava de um maldito fantasma.

Um dia, os vi partir e senti meu coração se partir em mil pedaços. Que engraçado! Um morto com coração… Isso está errado. Eu não devia sentir mais coisa nenhuma, mas continuei sentindo. Quer dizer, algumas coisas… Posso me jogar escada abaixo que não quebrarei nem um osso e nem sentirei uma dorzinha sequer. Mas se eu me lembrar de minha antiga vida, sentirei uma dor profunda.

Não sei o que fiz para merecer isso. Onde está Deus ou o diabo? O céu e o inferno? Qualquer coisa seria melhor que viver sendo ignorado pelo resto da vida… Ou da minha pós-vida. Merda. Eu não aguento mais isso. Só queria perder a consciência e desaparecer, tornando-me nada.

Parece que uma eternidade se passou desde que morri e que minha família me abandonou. Começava a me acostumar com meu eterno e enfadonho castigo quando vi que outras pessoas estavam se mudando para cá. Senti um misto de alegria, dor e raiva. 

ALEGRIA porque essa casa novamente se encheria de vida. 

DOR porque ninguém me ouviria, por mais que eu gritasse. 

RAIVA porque eu estava morto e não sabia quem foi o desgraçado que me matou.

 Vi uma garotinha meiga, com cabelo castanho, usando uma blusa amarela, uma saia azul e calçando sandálias pretas. Ela estava com um urso de pelúcia na mão e passou diretamente por mim. Senti uma energia boa quando a garotinha me tocou. Isso fez com que eu me sentisse vivo por um segundo. Foi tão maravilhosa a sensação que não resisti e a segui.

 Ela entrou no antigo quarto de Brittany e encostou a porta, esperando que sua irmã mais velha viesse procurar por ela. Me aproximei dela e toquei em sua cabeça. Eu estava certo de que ela não sentiria, mas, mesmo assim, a toquei. Ela era tão pura, tão doce… Me lembrava a Brittany quando éramos crianças. Para meu espanto, ela virou-se repentinamente, procurando visualizar algo.

— Quem está aqui? — Ela perguntou.

Quase não acreditei! Ela havia me sentido? Finalmente, alguém havia percebido a minha presença!

— Não tenha medo… Eu não vou machucar você. — Disse a garotinha com uma segurança que me surpreendeu. Ela não estava com medo. Mesmo sendo tão pequena… Não estava com medo de mim.

Toquei seu rosto e ela sorriu.

— Oi, anjo da guarda? — Ela disse. — Quer brincar comigo?

— Você… Pode me ver? — Perguntei a ela.

Ela riu.

— Mas é claro… E ouvir, também.

— Ah, meu Deus! — Eu cai de joelhos diante dela, emocionado. — Qual o seu nome?

— Emilie. — Ela respondeu.

— O que está fazendo, pirralha? — Perguntou uma outra garota ao entrar de repente no quarto.

— Kim? — Disse Emilie se voltando a ela.

— A Andréa está te chamando. Vai ver o que ela quer. — Falou Kimberly.

Emilie se voltou a mim e disse baixinho:

— Não vai embora. Eu já volto. — Em seguida, saiu correndo.

Kimberly balançou a cabeça e disse:

— Se, pelo menos, o amigo imaginário dela fosse um colegial gostosão…

Quase morri de rir com aquele comentário. Colegial eu era… Gostosão? Não sei. Ouvi papel sendo rasgado e segui o som até chegar em meu quarto. Uma garota estava rasgando meus pôsteres. Mas que abusada!

— Mas que merda você está fazendo? Pare! Idiota! — Eu gritei furioso, mas ela não me ouviu.

Me enfureci ainda mais. Quem ela pensava que era? Aquele era o meu quarto! Ela não tinha direito de fazer aquilo. Se pudesse chamar a atenção dela de alguma forma…. Quem sabe assustá-la para que desse o fora dali. Encarei a porta, desejando com todas as minhas forças que ela se fechasse e para minha felicidade, ela se fechou com uma batida.

A garota amassou o último pôster e o jogou no chão, antes de se aproximar da porta.

— Não vai sair daqui até que eu queira! — Eu visualizei  a porta sendo trancada à chave.

— Ei, Emilie? — Ela gritou batendo à porta com força.

— Vai aprender a não mexer nas coisas dos outros, sua mimada! — Eu fiz a porta do closet se abrir lentamente.

Ela se virou devagar, assustada, e disse algo esquisito que me fez rir:

— Os duendes são os ratos e os ratos são os duendes.

Ela fechou os olhos com força e algo estranho aconteceu. Não sei explicar como, mas em um piscar de olhos, ela apareceu dentro do closet. Como ela fizera aquilo? Quem ou o Quê ela era?

— Não! Não! — Ela falou ao abrir os olhos e perceber onde estava agora.

Fechei a porta do closet, ainda sem entender o que acabou de acontecer.

— Socorro! Alguém me ajude, por favor? Me tirem daqui! — Ela gritou enquanto batia à porta com força.

Me aproximei da porta, me perguntando como ela fez aquilo… Tinha sido ela, não tinha? Sabia que não tinha sido eu e como estávamos só nós dois, só poderia ter sido ela.

— Por favor? Me tire daqui! — Ela pediu.

— Esse é o meu quarto! Nunca mais entre aqui! Entendeu? — Eu disse, mesmo achando que ela não me ouviria, então recuei.

Nesse instante, ela bateu à porta e gritou por socorro, desesperada. Acho que ela me ouviu. Preferi não dizer mais nada, pois ela já estava aterrorizada. 

Mas que idiota! Por que estava com tanto medo? Eu não havia feito nada demais. Apenas abri e fechei algumas portas, e daí? Desde quando isso era assustador? Os vivos são tolos, sempre temendo os mortos quando, um dia, se juntarão a nós. 

Kimberly veio correndo e aquela altura, a porta já estava destrancada. Ela abriu o closet e disse:

— O que houve?

A garota alternou olhares entre o closet e a “irmã” e fugiu como um rato assustado. Vi Kimberly balançar a cabeça e dizer que a outra era maluca.

                                       † † †

Luciana desceu as escadas e quando ia sair da casa, esbarrou em Luíza.

— Lucy? O que houve? Por que está chorando, querida? — Perguntou Luíza.

— Não foi nada. — Luciana abaixou a cabeça e enxugou suas lágrimas nas mangas de sua camiseta.

— Não me diga que a Kim implicou com você de novo?! —Disse Luíza.

— Não. A Kim me salvou daquela coisa no armário. — Disse Luciana.

— Que coisa no armário? — Perguntou Luíza.

— Não é nada. Foi só um rato. Sabe que morro de medo de ratos. — Luciana esboçou um sorriso nervoso.

Luíza pegou Luciana gentilmente pelo braço e a levou até um cômodo vazio e encostou a porta. Então, a soltou e a encarou.

— Seja sincera, Lucy… Você voltou a ter visões?

— Não. — Luciana negou.

— Lucy… — Luíza sabia bem quando ela mentia.

— Por favor? Não conte nada a mamãe? Ela vai me obrigar a tomar aqueles comprimidos que me deixam como um zumbi. — Falou Luciana.

— Eu não vou falar nada, mas o que combinamos, hein? Você me contaria sempre que visse algo sobrenatural. — Falou Luíza cruzando os braços.

— Eu sei. Me desculpe? É que você contou a minha mãe na última vez e eu… — Luciana desviou o olhar.

— Você estava se machucando. — Disse Luíza lembrando-se da vez em que entrou no banheiro e flagrou Luciana tentando cortar o pulso.

— Não fui eu! Você sabe disso! “Ela” me obrigou. — Luciana sussurrou com medo de atrair aquela coisa mais uma vez para a sua vida.

— E ela voltou? — Perguntou Luíza preocupada.

— Eu não sei. — Respondeu Luciana nervosa e contou em detalhes o que aconteceu no quarto.

Luíza acompanhou Luciana de volta até o quarto. Luciana agarrou o braço esquerdo de Luíza com força enquanto ela abria a porta do closet.

— Sim… Tem uma energia estranha nesse quarto. — Disse Luíza olhando ao seu redor. — Há sentimentos fortes aqui, de tristeza e revolta. O antigo dono desse quarto não era uma pessoa feliz.

— Bravo! — Disse Alexander com sarcasmo enquanto aplaudia a cena.

— O corretor nos assegurou que ninguém tinha morrido aqui.— Falou Luciana.

— Corretores dizem qualquer coisa só para venderem uma casa. — Falou Luíza. — Eu vou investigar isso. Prometo. Mas por hora, você não pode ter medo. Precisa enfrentar isso.

— Não. Nem pensar. — Falou Luciana balançando a cabeça.

— Isso aí. Ela entendeu o recado! — Falou Alexander sorrindo, satisfeito.

— Seguinte, Gasparzinho… — Disse Luíza. — Você está morto e não precisa mais desse quarto, então, não deve se importar se a Lucy ocupá-lo a partir de agora. Hum? E nada mais justo, já que pagamos por essa propriedade.

— Nem ferrando! — Alexander bateu a porta. — Vocês não podem chegar se achando as donas do pedaço! Esse é o meu quarto e não aceito que uma patricinha venha aqui, arranque meus pôsteres e pinte tudo de rosa. Ainda estou aqui e vou ficar para sempre.

— Vai precisar de mais que isso para me assustar. — Luíza riu ao ver a porta se fechando com uma batida. — Acho melhor se comportar ou eu o mando para um lugar tão horrível que você vai se arrepender por não ter sido um fantasminha camarada. E não duvide que realmente possa fazer isso porque sou uma bruxa de verdade!

— Ui! Que medo! — Falou Alexander. — Tremi nas bases, agora.

Luíza fechou os olhos e disse baixinho um tipo de prece celta. Alexander riu, mas ao ser jogado para longe por uma forte energia invisível, entendeu que Luíza não estava brincando. 

Uma espiral negra surgiu no teto, mas só foi visível para Alexander. A espiral negra parecia um tornado e tentava sugar Alexander para sua escuridão. Ele se agarrou com força nas grades da janela, mas a espiral puxou o seu corpo como um ímã. Alexander encarou o buraco negro, assustado, e viu rostos cadavéricos girando rapidamente enquanto imploravam por clemência. Eram as almas atormentadas que habitavam o Umbral, o lugar para onde os suicidas, monstros e pessoas ruins iam.

— Entendemos a sua condição… — Disse Luíza a Alexander. — E queremos conviver com você de forma pacífica. Você não pertence mais a esse plano e deve partir para a luz. Sei que é difícil aceitar, mas esta é sua realidade, agora.

— Eu não vou partir antes de descobrir quem fez isso comigo. — Falou Alexander se agarrando com mais força as grades da janela, que agora eram visíveis balançando.

— Se quiser ficar, fique. Mas terá de conviver pacificamente com todos os habitantes dessa casa. Você concorda? — Disse Luíza.

— Acha que isso está funcionando? — Perguntou Luciana insegura. — Pela forma como as grades da janela estão tremendo, acho que ele continua furioso.

— Apenas confie, querida? Tenha fé. — Falou Luíza ainda de olhos fechados.

— Está bem. Eu topo. Mas faça essa coisa parar. Por favor? —Falou Alexander não aguentando mais segurar as grades.

O portal para o Umbral se fechou no exato momento em que Alexander soltou das grades. Ele caiu no chão.

— Lucy… — Disse Luíza abrindo os olhos.

Luciana a encarou.

— Vamos, mocinha? Faça a sua parte! — Disse Luíza impaciente.

— Ah! — Luciana riu sem graça. — Então, né?

— Bruxas! Malucas! — Falou Alexander se levantando do chão e ajeitando sua jaqueta.

— Me desculpe por ter rasgado seus pôsteres? — Falou Luciana encarando as janelas, imaginando que o espírito estava ali. — Eu não sabia que… Você, seja quem for, ainda estava aqui. Foi mal. Se eu soubesse, não teria feito isso.

— Depois a gente queima umas ervas e acende umas velas para purificar o lugar, mas agora vem? Vamos ajudar a sua mãe com a mudança. — Falou Luíza a Luciana.

— Se vocês acham que isso termina aqui e assim, estão enganadas. Não perdem por esperar. — Falou Alexander as observando saírem do quarto.

                                     † † †

Pensando que Jeremy, na verdade, fosse Jake, Harriet não quis desgrudar dele com medo de que fosse embora. Ela cozinhou para os dois e Jeremy aproveitou para descobrir mais coisas, conversando com ela. Harriet era ingênua e falava pelos cotovelos quando se sentia à vontade.

— Você vai voltar para o colégio, não vai? Não é mais a mesma coisa desde que você se foi. — Falou Harriet.

— E… Os outros sentem a minha falta? — Perguntou Jeremy.

— Eu não sei. — Disse Harriet chateada. — Lorena continua a mesma de sempre. Já o Kentin… Bem… Acho que ele nunca se importou muito com você.

— E por que acha isso? — Perguntou Jeremy se perguntando quem era Kentin.

— Sinceramente? Ele não gosta de garotos. — Falou Harriet.

Jeremy engasgou com o suco.

— Tudo bem? — Harriet se levantou, mas Jeremy gesticulou para que ela continuasse sentada e ela assim o fez.

— Estou bem. — Falou Jeremy.

— Você está diferente…  Tão sério e pensativo. Nem parece o mesmo. Se tivesse um irmão gêmeo, pensaria que vocês trocaram de lugar. — Disse Harriet.

Jeremy ficou vermelho. Será que ela estava desconfiando? Droga.

— Mas você não tem irmão e isso só acontece nos filmes, então… — Harriet riu.

— É… Que ideia! — Jeremy riu tentando imitar a forma como seu irmão falava.

— E então, você vai voltar para São Marcos? — Perguntou Harriet.

— Sim. — Falou Jeremy sabendo que se meteria em problemas por se passar pelo irmão, mas disposto a tudo para saber o que realmente acontecera com Jake.

                                       † † †

À noite, Luciana ficou com medo de dormir naquele quarto assombrado e ficou encarando o closet, temendo que ele se abrisse e a puxasse para sua escuridão. Não conseguiu dormir. Levantou-se e pegou seu notebook. Quem melhor para afastar o medo, que o Sr. notebook e a Senhora internet? Ela precisava colocar seus fones, ouvir Avril Lavigne e jogar um Visual Novel.

— Aposto que está vendo pornografia! — Disse Alexander levantando-se do lado do closet e indo até onde Luciana estava. — Ah, não. — Ele riu ao vê-la jogando. — Não acredito que desperdiça sua internet com essa droga.

Alexander deu um beliscão no ombro dela.

— Ai! — Luciana passou a mão em seu ombro, estranhando.

Alexander foi puxado para um estreito portal de luz branca e apareceu em outro lugar. Olhou ao seu redor, surpreso. Sempre que era sugado para um daqueles portais de luz branca, era porque seu pai ou Brittany o haviam atraído ao pensar nele. Isso sempre acontecia com os mortos, de forma que não importava onde eles estavam, se um familiar ou amigo se lembrasse deles por muito tempo, eles eram atraídos até a pessoa.

Brittany estava sentada em sua cama chorando enquanto olhava uma foto de Alexander e se lembrava dele.

— Eu sinto tanta saudade, Alex.

— Eu também. — Ele disse se aproximando dela e tocando sua mão.

Brittany afastou a mão, assustada. Por um momento, ela poderia jurar que sentiu alguém tocando sua mão.

— É você, Alex? Está aqui? — Ela sorriu, emocionada.

Alexander sorriu e antes que tivesse a chance de tocar a mão dela mais uma vez, foi novamente puxado por um portal. Dessa vez, o portal tinha uma luz azul. Alexander voltou para seu antigo quarto.

— Mas? O que? — Falou ele irritado e entendeu a seguir o que aconteceu.

Luciana acendeu uma vela… Uma vela para ele. 

— Não! Por que você fez isso? Não tinha esse direito! — Em um momento de ira, ele derrubou os livros que estavam na estante.

Luciana se encolheu, assustada.

— Calma. Eu juro que não quero encrenca! Só queria me desculpar e… Essa vela é para você, em sinal de paz. Eu não deveria fazer isso porque… Eu vou ser sincera com você. —Disse ela tentando ser transparente e parecer amigável. — Eu morro de medo de espíritos, o que é ilógico, porque, algum dia, também serei só um espírito. Queria te pedir para ter paciência. Estamos sempre nos mudando. Logo, nós iremos embora e… Você terá seu quarto de volta. Ah, e… Vou arranjar novos pôsteres para você.

— Eu acho bom! — Falou Alexander indiferente.

Luciana pegou o travesseiro e o cobertor e se deitou no tapete, encarando a chama da vela.

— Legal… Uma vela só para mim. É melhor que chocolate. — Falou Alexander com desdém e se jogou na cama, encarando o teto.

Luciana cantarolou baixinho “I'm With You” de Avril Lavigne.

— Olhe? Ela conhece música de gente! — Falou Alexander e quando se sentou na cama, percebeu que Luciana chorava.

 Ele deitou-se novamente e começou a cantar também, a mesma música. Luciana sentiu uma energia de proteção e paz e fechou os olhos, adormecendo.

Alexander sentiu-se mais forte de repente e sentou-se e olhou para a vela, já, quase no fim. Finalmente, ele entendeu, que de fato, a vela era mesmo melhor que chocolate, porque lhe dava força e energia positiva.

— Valeu, tampinha. — Ele disse a Luciana

— De nada. — Ela respondeu, dormindo.

Alexander sorriu.

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