Era apenas mais um dia no qual Lia acordava sentindo-se um nada. Não era culpa dela, ela até tentava se amar, no entanto era impossível quando sua tia – com quem morava – fazia questão de dizer o contrário todos os dias.
Seus olhos estavam um pouco inchados por ter chorado a noite toda, – algo também corriqueiro em suas noites – aquela cor escura que sua mãe tanto amava e dizia ser os mais lindos olhos, não brilhavam mais. Entretanto, Lia sorria para todos e quem a via ajudando o próximo e sempre feliz, não imaginava a dor na alma que ela sentia sempre que estava sozinha.
Suspirando levantou-se para enfrentar um novo dia, apesar de tudo, agradecendo aos céus por ter acordado. Era uma boa menina.
— Já acordou, garota? — ela ouviu a voz de sua tia berrar na porta do porão onde dormia.
— Já sim, tia Martha. — respondeu com a voz triste.
— Termine o que tem para fazer e vá logo para a rua, os mais ricos estão indo a essa hora para o trabalho. — exigiu ela se afastando.
Lia suspirou segurando um choro dolorido, olhando para o lado em seu relógio que achara na rua, constatou que eram apenas quatro da manhã, estava uma madrugada fria e chuvosa, mas mesmo assim teria que ir pedir esmola para a tia, ou isso, ou a rua e a fome.
Terminando de arrumar a cama ela escovou os dentes e prendeu o cabelo com uma linha velha. Vestiu um moletom rasgado, uma calça jeans desbotada e subiu as escadas deixando para trás o porão velho que só não estava sujo por causa dela, que limpava todos os dias com restos de produtos de limpeza que achava no lixo.
Não suportava cheiro de sujeira.
— Rápido, menina! Estamos com fome! — Martha a apressou a sair.
Lia foi caminhando pelas ruas chorando, como sempre fazia. Sua pequena mochila estava nas costas com todos os seus documentos que fazia questão de carregar sempre consigo. O queixo batendo de frio e a boca na cor roxa estavam quase congelando.
Sua mãe havia morrido há dois anos e desde então ela passou a morar com a tia e os três filhos dela; Marcos, Mara e Mike. Sua vida tornou-se um inferno, Martha explorava-a mandando a garota pedir esmola todos os dias, ela sempre conseguia algo, mas era pouco para durar muito e então ficava com fome até trazer quantidades maiores de dinheiro ou doações. Sem contar as torturas psicológicas.
Odiava tudo que estava acontecendo, mas nada disso tirou sua fé em algo mais, ela sonhava em ter algo mais um dia, só não sabia como. Sentia-se fracassada também.
Aqueles sonhos clichês que todas as adolescentes tinham de encontrar um amor e ser feliz, viver um lindo romance, morreu nela quando seus primos diziam como ela era feia, seu cabelo ruim, muito magra e com quase nada de seios. Que homem nenhum olharia para ela como mulher a não ser alguém com interesse apenas em se divertir.
Pouco a pouco isso foi penetrando em seu psicológico deixando marcas e feridas, traumas e desconfiança em si mesma como mulher. Quando foi morar com a tia tinha dezessete anos, agora estava com dezenove, quase vinte em poucos meses e até então nunca havia tido um namorado se quer. Quem iria querer namorar uma mendiga feia e suja?
Nada mais importava para ela. Apesar de nutrir uma esperança bem lá no fundo de um futuro melhor, no momento não se importava se algum dia iria se casar, se apaixonar, ou fazer alguma faculdade, isso nunca mais seria importante para ela.
Por muitas vezes se odiava.
Dando mais alguns passos, ela ouviu miados baixos vindo da frente de uma fábrica em construção, atravessou a rua de pressa e se deparou com uma caixa de papelão molhada na beirada de uma caída onde jogavam os restos de escombros, estava muito escuro ainda, mas sua atenção só se voltou à caixa no chão.
Os miados ficaram mais altos e agitados quando os pequenos felinos perceberam a presença de alguém. Lia abriu com agilidade a caixa e sentiu o coração aquecer ao mesmo tempo que se despedaçar ao ver três gatinhos dentro do recipiente. Ela segurou o choro quando tocou em um deles e o sentiu tremer de frio, eram filhotes e alguém havia os abandonado.
A cada minuto que passava ela perdia ainda mais a fé na humanidade. Quem seria capaz de abandonar animais indefesos? Ela não conseguiu conter as lágrimas de empatia pelos bichinhos inocentes que não miavam tanto mais com suas carícias. Ela era apaixonada por animais.
Poderia muito bem levá-los para sua casa, mas lembrou-se de que nem mesmo ela era bem vinda e já vivia em dificuldade, que dirá três gatos filhotes. Sua tia os mataria e obrigaria ela a comer. Ela sabia disso pois certa vez a obrigou-a comer uma panela de arroz queimado porque ela simplesmente se descuidou ao ajudar um dos primos com as roupas no varal.
Ficou passando mal por vários dias e sem comer também.
A menina ficou tanto tempo pensando que acabou não percebendo um carro vindo em alta velocidade em sua direção, seu coração deu um salto quando ela finalmente notou o farol forte em seus olhos e pulou para um barranco ao lado com a caixa agarrada ao corpo, no intuito de livrar-se de ser atropelada e também aos gatos.
Colocou a mão sobre o peito tentando acalmar as batidas quando estava caída no meio de várias pedras, ela pensou que fosse morrer. Sentiu o braço doer e algumas fisgadas nas costas e costelas, mas estava viva ao menos.
Não que isso soasse muito significativo para ela. Afinal, do que valia sua vida?
Suspirou e levantou-se com dificuldade batendo uma mão na outra para limpa-las. Foi difícil para que subisse pelo barranco, tentou uma, duas, três vezes e quando o mato no qual ela segurava, rompeu-se, ela começando a sucumbir gritando, foi quando sentiu uma mão calejada segurar a sua, cobrir para ser mais precisa. Era uma grande mão.
Calafrios percorreram todas as suas correntes sanguíneas, não entendendo naquele momento o que era aquilo que a deixou flutuando, como se fosse o melhor toque que já recebera na vida.
O estranho arrepio percorreu sua espinha até a nuca quando foi puxada para cima com apenas um impulso. Erguendo os olhos avistou um grande homem com o dobro do seu tamanho. Lia o encarou instantaneamente encantada com o rosto bonito à sua frente, sentiu um calor incomum e tentou se lembrar se já havia visto tal beleza antes e não conseguiu.Ele simplesmente parecia uma obra de arte de tão bonito. Vestido num terno preto de camurça fina muito elegante, parecia até mesmo um modelo. No entanto as roupas estavam desgrenhadas, a camisa aberta e gravata borboleta sem nó, não que isso o tornasse menos bonito, pelo contrário só realçou sua beleza humana. Seus olhos castanhos escuros – muito escuros – não tão grandes, as sombrancelhas intocáveis, os lábios desenhados, a expressão dura e máscula a deixou um tanto sem fôlego.Ele por sua
Lázzaro não podia negar que sentiu uma forte e estranha conexão com aquela menina, a qual ele nunca tinha visto antes, era apenas uma menina em sua visão, todavia o seu corpo traiçoeiro e mulherengo não pensou da mesma forma ao ficar excitado tocando somente centímetros da pele macia e quente de Lia.Por outro lado logo tratou de repreender-se. Era uma mendiga, andarilha ou até mesmo garota de programa. O que uma moça "decente" estaria fazendo na rua uma hora daquelas e sozinha se não fosse algo desse tipo? Fora que suas roupas rasgadas também entregavam o estado crítico de pobreza em que a menina vivia.Indignou-se quando percebeu que estava pensando tempo demais em Lia Hamilton enquanto dirigia de volta para casa, ainda engolindo a dúvida de não saber o porquê dela estar lá, sozinha, na rua, de madrugada... Sentia-se quase preocupado, e outra vez indignou-se
Lázzaro Bartholomeu tentou passar adiante, não era problema dele, mas uma força maior e incompreensível, o fez dar ré. Parando o carro perto da garota, abriu o vidro e sentiu um nó na garganta ao ver o estado em que ela se encontrava.— Senhorita Hamilton? — chamou-a que olhou imediatamente limpando as lágrimas com o coração batendo rapidamente.— Ah, olá senhor Bartholomeu. — o cumprimentou soluçando em uma tentativa vã de disfarçar a crise de choro.— O que ainda faz aqui? — indagou Lázzaro com o olhar confuso.— Eu já estava indo para casa. Terminei agora o... O trabalho, mas... — tentou dizer mas uma onda de lágrimas novamente se esvaiu dela.— O que houve? Alguém te machucou? — a impaciência e preocupação disputavam em sua voz.— Sim.
Lázzaro ficou lá, parado e intrigado por alguns segundos antes de entrar novamente no carro e continuar dirigindo sem rumo. Nunca fora um homem afetuoso, bondoso, caridoso e recíproco ou cheio de empatia. Nunca sentiu misericórdia por alguém, vontade de ajudar alguém como ele tinha vontade de ajudar Lia naquela hora.Talvez seja por isso que tenha tratado-a daquela forma, para que ela não confundisse as coisas e o visse como um bom samaritano, coisa que não era e estava longe de ser. Ou talvez ele simplesmente tenha agido como ele mesmo.Entretanto, mais uma vez ele balançou a cabeça e pensou: já tenho problemas demais.Ao chegar na porta de casa, Lia respirou fundo com o coração quase saindo pela garganta, as mãos suadas e corpo tremendo, já queria chorar de imediato pela reação que sua tia teria. Não custava nada tentar, ela precisava f
Acordando com uma brutal dor de cabeça, Lia ouviu os bipes dos aparelhos, instantaneamente também sentiu aquele cheiro único de hospital. Nada havia atingido o seu cérebro pois lembrava muito bem que tinha sido atropelada por alguém, apenas não teve chance de ver quem fora.— Oh, ela acordou. — disse o médico se aproximando da cama. — Bom dia, senhora Bartolomeu.— O que?! — foi a primeira pergunta espontaneamente confusa.— Está tudo bem, ele só vai fazer os últimos exames e saber se está realmente tudo certo com você. — Lia ouviu a voz de Lázzaro preencher seus ouvidos e quase sentiu-se derreter quando ele também se aproximou dela.É apenas uma voz Lia...Mal podia acreditar que ele estava lá, novamente em seu caminho. Tão bonito e elegante, até mesmo os fios do seu cabelo
Lázzaro estava tão aliviado que quase deu um abraço forte em Lia, mas conteve a emoção. Parou um segundo para analisar que nunca havia pensando antes em se casar, nunca teve a visão de casamento como algo sagrado ou importante em sua vida. Desta forma isso não seria tão difícil para ele, eram apenas papéis e uma situação na qual não haveria envolvimento físico ou emocional.Iria morrer em breve e por mais que esse pensamento o consumisse a alma, pois era um amante das coisas boas da vida, teria de se conformar e aproveitar ao máximo seus últimos dias.Nada mudaria, ele só teria Lia sob seu radar a todo instante por causa do dinheiro e mais nada. Continuaria sendo solteiro na prática e vivendo a vida como sempre viveu. Cuidando acima de tudo para que seu patrimônio e do pai rendesse muito mais e então deixaria quem sabe para um futur
Quando entraram no hall da grande casa rapidamente foram recebidos pelos empregos do homem, todos com olhares curiosos sobre a companhia do patrão que nunca levou nenhuma mulher para sua casa.— Levem essas bolsas para o melhor quarto de hóspedes, com banheira de preferência e a preparem. Façam isso rapidamente! — ditou suas ordens que foram obedecidas de imediato — Essa é Lia Hamilton e será amanhã a senhora Bartholomeu, dêem a ela tudo que pedir e obedeçam suas ordens como se fossem as minhas, entendido? — todos assentiram e se foram.Nádia a empregada que tinha interesses em seu patrão logo se viu com muita raiva e inveja da pobre garota. Os olhares de desdém que ela recebeu de todos foram tão dolorosos... No entanto já estava acostumada com isso todos os dias.— Onde está Magdalena? — o dono da casa perguntou.Magd
Lia estava indo para o quarto quando encontrou Magdalena no corredor acompanhada de Nádia.— Boa noite. — a moça cumprimentou as empregadas que olharam para ela com estranheza.Elas não responderam por alguns instantes fazendo Lia sentir-se acanhada.— Boa noite, senhora Bartholomeu. Deseja alguma coisa? — perguntou Magdalena.— Não, só estava passando para ir para o quarto. E podem me chamar de Lia apenas. — ela sorriu.— E decidiu cumprimentar nós duas? — Nádia indagou com um tom de ironia ignorando a última frase.— Sim. — respondeu com firmeza.— Uau...— Por que? As pessoas não dão boa noite para as outras aqui nessa casa? — a jovem perguntou.— Não. Quando não pretendem pedir nada nem nos olham.— Mas eu não sou assim. &mdas