O cheiro de tinta e verniz impregnava o ar, misturando-se ao som suave das cerdas de um pincel deslizando sobre a tela. Selene inclinava-se sobre sua última peça, uma paisagem bucólica do século XIX, enquanto ajustava os detalhes de uma árvore. A perfeição em cada folha era mais do que um reflexo de seu talento; era a sua obsessão. Arte era o único lugar onde ela se sentia verdadeiramente viva.
O mundo real, com suas expectativas sufocantes e compromissos vazios, parecia distante quando estava em seu estúdio. Ali, entre os quadros antigos e o brilho fraco de lâmpadas amareladas, ela se refugiava. Até que o telefone tocou, interrompendo sua concentração. — Selene Grey, restauradora — atendeu, a voz prática, porém carregada de cansaço. Do outro lado, uma voz grave e pausada respondeu. — Senhorita Grey, meu nome é Lucien Draven. Tenho um trabalho que pode lhe interessar. Selene apertou os olhos. Ela já havia lidado com todos os tipos de colecionadores: desde os excêntricos obcecados por autenticidade até os magnatas dispostos a pagar fortunas por uma assinatura famosa. Mas havia algo naquela voz que a deixou inquieta. — Qual o tipo de peça? — perguntou, tentando soar indiferente. — Um retrato. Século XVII. Está em péssimo estado, mas único. A palavra "único" fez seu coração saltar. Restaurar algo raro era como trazer a história de volta à vida, resgatar uma memória há muito perdida. — Onde está a peça? — Em minha propriedade, na vila de Blackthorn. É um pouco afastada, mas posso enviar um carro para buscá-la. A menção de Blackthorn trouxe memórias vagas de histórias que ouvira na infância: uma vila isolada, envolta em mistérios e lendas sombrias. Apesar disso, o tom confiante de Lucien a desafiava. — Eu precisaria avaliar a obra antes de aceitar o trabalho. — Claro, senhorita Grey. Aguardarei sua chegada amanhã ao entardecer. Antes que pudesse protestar, a linha foi encerrada. Selene ficou parada, o telefone ainda em sua mão, olhando para o vazio. Algo naquela conversa a incomodava, mas a promessa de um retrato do século XVII era irresistível. No dia seguinte, o carro preto enviado por Lucien parou em frente ao seu estúdio. O motorista, um homem de rosto inexpressivo e vestes impecáveis, abriu a porta para ela sem dizer uma palavra. A viagem foi longa e sinuosa. A estrada parecia se perder em florestas densas, cujas árvores se curvavam sobre o caminho como sentinelas ancestrais. Enquanto o crepúsculo avançava, Selene sentiu uma inquietação crescente. A paisagem parecia se transformar em algo saído de um pesadelo barroco. Quando finalmente chegaram à mansão, Selene prendeu a respiração. A construção era imensa, de pedra escura, com torres góticas que rasgavam o céu avermelhado. A casa parecia viva, uma presença pesada que a observava enquanto ela subia os degraus da entrada. Lucien a aguardava no salão principal. Ele era alto, com cabelos escuros que caíam em ondas sutis, vestindo um terno impecável que parecia pertencer a outra era. Mas eram seus olhos que chamavam atenção: um azul profundo, quase sobrenatural. — Seja bem-vinda, senhorita Grey. Espero que tenha tido uma viagem confortável. Selene hesitou, sentindo que aquelas palavras eram apenas uma formalidade vazia. — Obrigada. Gostaria de ver o retrato. Lucien sorriu, um gesto que parecia quase predatório. — Claro. Venha comigo. Ele a guiou por corredores mal iluminados, repletos de móveis antigos e tapetes que abafavam seus passos. Cada canto parecia esconder algo, como se sombras tivessem vida própria. Ao entrar no estúdio onde o retrato estava guardado, Selene prendeu a respiração. A pintura estava coberta por um tecido pesado, mas mesmo assim, algo na atmosfera do quarto parecia vibrar. Lucien puxou o pano, revelando o retrato. Era um homem jovem, vestindo roupas típicas do século XVII. Seus cabelos eram tão negros quanto a noite, e seus olhos... aqueles olhos. Selene nunca tinha visto algo assim em uma pintura. Eles pareciam vivos, quase acusadores. Ela sentiu como se o retrato estivesse olhando diretamente para sua alma. — Ele é impressionante, não acha? — Lucien perguntou, com a voz baixa, quase um sussurro. — Quem é ele? — Selene balbuciou, incapaz de desviar o olhar. — Um ancestral meu, Damian Draven. A história de sua vida foi... turbulenta, para dizer o mínimo. Selene sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O retrato estava danificado: manchas escuras cobriam partes do rosto, e a moldura dourada estava corroída pelo tempo. Ainda assim, a intensidade da obra era inegável. — Ele precisa de muito trabalho, mas posso restaurá-lo. Vai levar semanas. Lucien inclinou a cabeça. — Eu não tenho pressa, senhorita Grey. Este retrato esteve aguardando o momento certo por séculos. A forma como ele disse aquelas palavras fez Selene se sentir como uma peça em um jogo que ela não entendia. — Então eu aceito. Vou começar amanhã de manhã. Lucien sorriu, mas algo em sua expressão parecia escondido, como se soubesse algo que ela ainda não sabia. Quando Selene foi conduzida ao quarto onde passaria a noite, ela teve a sensação de que estava cruzando um limite invisível. Ao fechar a porta, olhou para o espelho antigo no canto do quarto e, por um breve momento, pensou ter visto o reflexo do retrato ali. Apagou a luz, mas não conseguiu dormir. O rosto de Damian Draven, com seus olhos penetrantes, estava gravado em sua mente. E, mesmo que ela não soubesse explicar por quê, sentia que, ao aceitar aquele trabalho, havia aberto uma porta que talvez nunca pudesse fechar novamente.A madrugada em Blackthorn tinha um peso peculiar. As horas pareciam se arrastar, enquanto o silêncio preenchia os espaços como uma presença quase física. Selene passou a noite inquieta, virando-se na cama, os olhos fixos no teto, tentando ignorar o frio que parecia se infiltrar pelas paredes do quarto.Apesar do conforto da cama, havia algo naquela mansão que não permitia o descanso. Quando o primeiro feixe de luz atravessou as pesadas cortinas, ela desistiu de lutar contra o sono ausente. Levantou-se e vestiu uma roupa simples, amarrando os cabelos em um coque para iniciar o trabalho.Lucien já a aguardava no estúdio. Ele estava junto à lareira, uma taça de vinho em mãos, como se a madrugada também não lhe trouxesse paz.— Bom dia, senhorita Grey. Dormiu bem? — Ele sorriu, mas sua voz carregava uma nota de ironia.— Dormir nunca foi meu forte — respondeu, mantendo o tom profissional.Lucien inclinou levemente a cabeça, os olhos avaliando-a de forma quase imperceptível.— Entendo. O r
A manhã seguinte chegou com uma neblina densa que envolvia a mansão Draven. O mundo lá fora parecia inexistente, perdido entre o véu cinzento. Selene desceu até o estúdio, tentando afastar os ecos do sonho perturbador da noite anterior. Ela se repetia que era apenas sua mente pregando peças, fruto de cansaço e do ambiente estranho.No entanto, quando abriu a porta do estúdio, algo a fez parar. O retrato parecia mais vibrante, como se alguma cor nova tivesse surgido durante a noite. Era impossível. Ela tinha guardado todos os seus materiais no dia anterior.Selene aproximou-se devagar. O olhar de Damian no retrato parecia mais vivo, mais intenso. Ela sentiu como se aqueles olhos estivessem conscientes de sua presença.Respirando fundo, afastou os pensamentos irracionais. Era apenas sua imaginação, disse a si mesma. Com movimentos automáticos, montou seu equipamento de trabalho e começou a limpeza meticulosa de uma das áreas mais delicadas da pintura.Enquanto trabalhava, uma sensação d
A noite caiu com rapidez sobre a mansão Draven, envolvendo o local em uma escuridão que parecia viva. Selene permaneceu em seu quarto, o corpo tenso e a mente repleta de perguntas. Não conseguia ignorar o que Lucien havia dito: "Damian escolheu você."Escolhida para quê? E por que ela sentia que algo dentro dela, uma parte que não compreendia, já sabia a resposta?Ela tentou distrair-se, caminhando pelo quarto, analisando as mobílias antigas e os detalhes ornamentados do ambiente. Havia uma grande janela que dava para os jardins envoltos na penumbra. Do lado de fora, o vento soprava entre as árvores, produzindo sons que pareciam sussurros distantes.Sentando-se na beira da cama, Selene respirou fundo, tentando acalmar sua mente. A lógica dizia para ir embora, abandonar o retrato e a mansão. No entanto, algo a mantinha ali, um fio invisível que a prendia cada vez mais.Decidida a descobrir a verdade, pegou um casaco e saiu do quarto. Sabia que não conseguiria dormir. Sua curiosidade er
A madrugada encontrou Selene ainda acordada, sentada na cama de seu quarto. Apesar das cortinas fechadas, a luz pálida da lua entrava em filetes, criando sombras alongadas no chão. Seus pensamentos giravam em círculos, tentando decifrar o que havia acontecido no estúdio.Damian Draven. Um nome que agora parecia carregar um peso próprio, impregnando o ar à sua volta. Selene não podia negar o fascínio que sentia por ele, mesmo sabendo que aquilo era perigoso. A mansão Draven parecia estar se transformando em uma extensão de sua presença, viva com sua energia.Sem conseguir mais suportar a inquietação, levantou-se. Se havia algo que ela aprendera sobre si mesma, era que não conseguia ignorar um mistério.Os corredores da mansão estavam mergulhados em escuridão. Selene carregava uma pequena lanterna, cujos feixes fracos mal conseguiam iluminar o caminho. Cada passo que dava parecia ecoar, reverberando nas paredes como se a casa estivesse escutando.Seu destino era a biblioteca. Se havia a