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No Limiar da Noite
No Limiar da Noite
Por: Cristina Figueiredo
Capítulo 1: O Chamado do Retrato

O cheiro de tinta e verniz impregnava o ar, misturando-se ao som suave das cerdas de um pincel deslizando sobre a tela. Selene inclinava-se sobre sua última peça, uma paisagem bucólica do século XIX, enquanto ajustava os detalhes de uma árvore. A perfeição em cada folha era mais do que um reflexo de seu talento; era a sua obsessão. Arte era o único lugar onde ela se sentia verdadeiramente viva.

O mundo real, com suas expectativas sufocantes e compromissos vazios, parecia distante quando estava em seu estúdio. Ali, entre os quadros antigos e o brilho fraco de lâmpadas amareladas, ela se refugiava. Até que o telefone tocou, interrompendo sua concentração.

— Selene Grey, restauradora — atendeu, a voz prática, porém carregada de cansaço.

Do outro lado, uma voz grave e pausada respondeu.

— Senhorita Grey, meu nome é Lucien Draven. Tenho um trabalho que pode lhe interessar.

Selene apertou os olhos. Ela já havia lidado com todos os tipos de colecionadores: desde os excêntricos obcecados por autenticidade até os magnatas dispostos a pagar fortunas por uma assinatura famosa. Mas havia algo naquela voz que a deixou inquieta.

— Qual o tipo de peça? — perguntou, tentando soar indiferente.

— Um retrato. Século XVII. Está em péssimo estado, mas único.

A palavra "único" fez seu coração saltar. Restaurar algo raro era como trazer a história de volta à vida, resgatar uma memória há muito perdida.

— Onde está a peça?

— Em minha propriedade, na vila de Blackthorn. É um pouco afastada, mas posso enviar um carro para buscá-la.

A menção de Blackthorn trouxe memórias vagas de histórias que ouvira na infância: uma vila isolada, envolta em mistérios e lendas sombrias. Apesar disso, o tom confiante de Lucien a desafiava.

— Eu precisaria avaliar a obra antes de aceitar o trabalho.

— Claro, senhorita Grey. Aguardarei sua chegada amanhã ao entardecer.

Antes que pudesse protestar, a linha foi encerrada.

Selene ficou parada, o telefone ainda em sua mão, olhando para o vazio. Algo naquela conversa a incomodava, mas a promessa de um retrato do século XVII era irresistível.

No dia seguinte, o carro preto enviado por Lucien parou em frente ao seu estúdio. O motorista, um homem de rosto inexpressivo e vestes impecáveis, abriu a porta para ela sem dizer uma palavra.

A viagem foi longa e sinuosa. A estrada parecia se perder em florestas densas, cujas árvores se curvavam sobre o caminho como sentinelas ancestrais. Enquanto o crepúsculo avançava, Selene sentiu uma inquietação crescente. A paisagem parecia se transformar em algo saído de um pesadelo barroco.

Quando finalmente chegaram à mansão, Selene prendeu a respiração. A construção era imensa, de pedra escura, com torres góticas que rasgavam o céu avermelhado. A casa parecia viva, uma presença pesada que a observava enquanto ela subia os degraus da entrada.

Lucien a aguardava no salão principal. Ele era alto, com cabelos escuros que caíam em ondas sutis, vestindo um terno impecável que parecia pertencer a outra era. Mas eram seus olhos que chamavam atenção: um azul profundo, quase sobrenatural.

— Seja bem-vinda, senhorita Grey. Espero que tenha tido uma viagem confortável.

Selene hesitou, sentindo que aquelas palavras eram apenas uma formalidade vazia.

— Obrigada. Gostaria de ver o retrato.

Lucien sorriu, um gesto que parecia quase predatório.

— Claro. Venha comigo.

Ele a guiou por corredores mal iluminados, repletos de móveis antigos e tapetes que abafavam seus passos. Cada canto parecia esconder algo, como se sombras tivessem vida própria.

Ao entrar no estúdio onde o retrato estava guardado, Selene prendeu a respiração. A pintura estava coberta por um tecido pesado, mas mesmo assim, algo na atmosfera do quarto parecia vibrar.

Lucien puxou o pano, revelando o retrato.

Era um homem jovem, vestindo roupas típicas do século XVII. Seus cabelos eram tão negros quanto a noite, e seus olhos... aqueles olhos. Selene nunca tinha visto algo assim em uma pintura. Eles pareciam vivos, quase acusadores. Ela sentiu como se o retrato estivesse olhando diretamente para sua alma.

— Ele é impressionante, não acha? — Lucien perguntou, com a voz baixa, quase um sussurro.

— Quem é ele? — Selene balbuciou, incapaz de desviar o olhar.

— Um ancestral meu, Damian Draven. A história de sua vida foi... turbulenta, para dizer o mínimo.

Selene sentiu um arrepio percorrer sua espinha. O retrato estava danificado: manchas escuras cobriam partes do rosto, e a moldura dourada estava corroída pelo tempo. Ainda assim, a intensidade da obra era inegável.

— Ele precisa de muito trabalho, mas posso restaurá-lo. Vai levar semanas.

Lucien inclinou a cabeça.

— Eu não tenho pressa, senhorita Grey. Este retrato esteve aguardando o momento certo por séculos.

A forma como ele disse aquelas palavras fez Selene se sentir como uma peça em um jogo que ela não entendia.

— Então eu aceito. Vou começar amanhã de manhã.

Lucien sorriu, mas algo em sua expressão parecia escondido, como se soubesse algo que ela ainda não sabia.

Quando Selene foi conduzida ao quarto onde passaria a noite, ela teve a sensação de que estava cruzando um limite invisível. Ao fechar a porta, olhou para o espelho antigo no canto do quarto e, por um breve momento, pensou ter visto o reflexo do retrato ali.

Apagou a luz, mas não conseguiu dormir. O rosto de Damian Draven, com seus olhos penetrantes, estava gravado em sua mente.

E, mesmo que ela não soubesse explicar por quê, sentia que, ao aceitar aquele trabalho, havia aberto uma porta que talvez nunca pudesse fechar novamente.

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