Parte 1...
O céu cinzento mostra que a chuva não vai parar tão cedo. Ao longe um clarão é visto, seguido de um trovão que chega até a incomodar os ouvidos de Mike Reeves, que dirige com cuidado entre as ruas, observando as casas que passam, todas fechadas.
A chuva forte cai na cidade por três dias seguidos e todo mundo procura abrigo em suas casas. O trânsito fica lento e mais perigoso, pedindo mais atenção.
Mike estica a cabeça pelo vidro da janela, olhando a casa de seus pais lá fora, quase sem coragem de sair do carro. Tinha esquecido de pegar um guarda-chuva e um casaco. Agora se arrependia.
Suspirou balançando a cabeça, se maldizendo por ser tão esquecido consigo mesmo. Abriu a porta e assim que seu pé tocou o chão, sentiu um arrepio de frio com o vento forte que soprou para dentro.
Saiu de vez e puxou a gola da camisa para cima, olhando as árvores que balançavam de um lado para outro com a lufada de vento. Se encolheu e deu passos largos na direção da casa. Abriu o portão pequeno de ferro decorado e deu uma corridinha até os degraus.
Pisou no primeiro degrau já com a barra da calça encharcada. Cerrou os dentes e estremeceu. Nessa época do ano Spring Sun ficava a maior parte do tempo debaixo de nuvens cinza, escondendo o sol que ele adorava.
Quando bateu na porta seu rosto estava frio e molhado. O cabelo preto estava empapado e ele tentava aquecer o corpo se movimentando balançando de um lado para outro.
A porta se abriu e sua mãe arregalou os olhos ao vê-lo assim. Depois fez uma cara que ele conhecia há anos. A mesma de quando ele era pequeno e fazia algo errado. De crítica materna.
— Mike... O que é isso, menino?
Ele sorriu. Tinha trinta e um anos e a mãe insistia em chamá-lo de menino. Deu um pulinho e fez um som de frio, se balançando de novo. Ela ficou de lado para ele entrar.
— Meu filho, você está todo molhado - fechou a porta — E porque não entrou logo?
— Esqueci de pegar a chave.
Ele seguiu direto para a cozinha procurando se aquecer, pois sabia que a mãe deveria estar com o fogão aceso. E acertou.
Parou em frente do fogão e tirou a panela de cima, esticando as mãos por cima do fogo para esquentar os dedos finos.
— Meu filho, você vai ficar doente - ela vai até ele e fica ao lado, cruzando os braços — Você não perde a cabeça por estar grudada ao pescoço - disse ironicamente.
Mike sorriu. Sua mãe é daquelas que paparicam os filhos em qualquer época. Mesmo hoje que são todos adultos, ainda assim ela os trata como se fossem pequenos.
Para ele sua mãe continuava tão linda como a via quando era só um menino. Agora seu cabelo era mais curto, ia até os ombros apenas e algumas mechas mais claras começavam a se mostrar. Charlotte Reeves estava agora com cinquenta e sete anos, mas para ele mantinha a juventude de sempre, com seu sorriso largo e seu modo carinhoso de ser.
— Eu estava com fome, mãe - ele justificou.
— Mas poderia ter vestido pelo menos um casaco.
Ela andou até a lavanderia, ao lado da cozinha e voltou com uma toalha rosa felpuda.
— Aqui, se enxugue - esticou a toalha — Está limpa e cheirosa.
Ele pegou a toalha e esfregou no rosto, sentindo o cheirinho bom do amaciante de rosas que ela mais gostava de usar. Depois passou no cabelo, diminuindo um pouco o frio que chegara em seu corpo.
Charlotte recolocou a panela em cima do fogo e abriu o armário, pegando os pratos para arrumar a mesa. Mike sentiu o cheiro bom da comida caseira de sua mãe, que sempre o fazia comer mais do que queria.
— Você está muito magro, Mike. Não tem comida na sua casa?
Ele deu uma risadinha. Lá vinha ela de novo. Na verdade até tinha, mas ele ficava tão concentrado em outras coisas que muitas vezes acabava esquecendo mesmo de preparar algo para comer.
— Não sou magro, mãe. Esse sempre foi o meu corpo.
— Vá tirar essa camisa molhada antes que pegue um resfriado - abanou a mão — Humpf... Onde já se viu... Um homem adulto que esquece de comer - arrumou os talheres ao lado do prato.
— Onde está o pai?
— Hum - ela torceu a boca em reprovação — Deve estar quase chegando. Teimoso como ele - balançou a cabeça — Dois dias reclamando de dores nas costas e sai com esse tempo.
— Mas onde foi?
— Até o rancho, ajudar com algo que quebrou - abanou o pano de cozinha para o alto — Não sei o que é, nem perguntei. Sair com esse tempo. Vocês nunca me ouvem.
Mike sorri. A mãe continua a querer que seu velho pai fique parado em casa, como se isso fosse possível.
Aldo Reeves era um homem alto, magro, de sessenta e dois anos, mas que tinha energia de um rapaz de sua idade. Era difícil que ficasse parado muito tempo em casa. Mesmo aposentado, ele continuava muito ativo.
— Vai, vai logo - abanava com força o pano — Pegue algo para vestir e deixe que essa roupa seque enquanto comemos.
Mike sai da cozinha e vai para seu antigo quarto, que dividia com os irmãos quando ainda moravam na casa dos pais. Parecia que eles ainda faziam parte da casa, embora já estivessem todos morando em suas próprias casas há um bom tempo.
Mas isso não era novidade para ele. Abriu o grande e velho guarda-roupas, agora amarelado pelo tempo. Ainda havia ali muita coisa que era dele e de seus irmãos. Charlotte fazia questão que deixassem algo, já que sempre estavam por lá vez ou outra.
Agora foi providencial isso. Trocou de roupa e se livrou do frio, pegando um velho casaco que estava pendurado. Aproveitou e usou o secador de cabelo no banheiro da mãe. Quando desceu de volta ela estava terminando.
Era engraçado como gostava de estar ali naquela cozinha. Uma reforma havia sido feita há alguns anos e já não era mais a mesma cozinha que ele crescera, mas ainda mantinha o mesmo calor humano de antes, quando ele e o resto da família ficavam conversando sem parar em volta da mesa grande.
Parte 2...Sua mãe sempre tinha sido uma ótima cozinheira, coisa que dividia com o pai, que também preparava pratos deliciosos, mas apenas em ocasiões especiais ou quando sua mãe lhe informava que não pisaria na cozinha.Era engraçado isso. Tinha boas lembranças da casa e sempre se sentia acolhido ao aparecer para ver os pais, nem que fosse apenas de passagem para saber se estava tudo bem com eles.O amor de seus pais era algo quase palpável. Mesmo quem não os conhecesse bem perceberia. Só de entrar na sala já se via um monte de fotos dos filhos, espalhadas por porta-retratos em cima da estante ou nas paredes. E em várias fases de suas vidas.Sentou e ficou observando enquanto a mãe continuava a mexer nas panelas, tagarelando um assunto atrás do outro. Era assim desde que ele se entendia como gente, quando começou a prestar mais atenção na mãe, que sempre era muito amorosa com a família que ela criara.O avental de agora já não era mais o mesmo, mas continuava cheio de coloridas flore
Parte 3...Ele coçou a cabeça começando a entender.— Ela ainda é jovem, mas passa muito tempo entre pessoas velhas e precisa de um bom emprego estável - pegou a mão dele — É uma moça muito calma e carinhosa, que tem muito jeito com animais. Seria ideal para sua clínica.— Não preciso de ninguém na clínica, mamãe.— Isso não é verdade - lhe apontou o dedo — Semanas atrás você disse que estava ficando até tarde no trabalho para organizar tudo porque estava sozinho.— E qual seria o problema dessa garota, mãe?Charlotte olhou para o marido e pediu que explicasse.— O acidente causou lesões no encéfalo - Aldo começou a explicar — Os médicos a deixaram em coma por algum tempo, como medida de ajuda, mas ninguém sabia com certeza se daria certo - bateu os dedos devagar na mesa — E quando ela saiu do coma, estava com muitos problemas motores e na fala, devido as lesões cerebrais.Mike apertou os lábios, mexendo a cabeça assentindo.— Mãe, a senhora sabe que sou sócio do Derek na clínica e in
Parte 1...Camila agradeceu ao motorista do táxi após ele lhe dar o troco pela corrida. Estava em frente à clínica veterinária onde faria uma entrevista para um possível emprego.Um emprego fixo e estável, que lhe daria um salário.Ela puxou o ar fundo, as mãos trêmulas e começando a suar. Engoliu em seco e desceu do carro devagar, mas de forma firme. Sentiu o vento forte que soprou seu cabelo castanho escuro e segurou na saia do vestido verde que havia escolhido para a entrevista.Não era nada caro, apenas um vestido solto e com um leve florido no tecido leve e confortável. Desde que tivera o acidente ela evitava usar roupas que a apertassem. Até isso havia mudado em sua vida.Estava entusiasmada e ao mesmo tempo nervosa. Havia recebido uma chamada de Charlotte Reeves que a avisou que seu filho Mike estaria esperando por ela para uma entrevista de emprego na clínica.Ficou feliz com isso e tentou controlar o nervosismo. Depois de tudo o que havia passado, seu médico a fez prometer qu
Parte 2...Estava tentada a se virar e ir embora, mas seria falta de consideração com Charlotte que ajeitara essa entrevista e também falta de educação com seu filho, que tirara um tempo para recebê-la. Não podia ser assim, tinha que valorizar a boa vontade das pessoas.Sentiu um arrepio passar por seus braços e não era por causa do vento frio. Era por receio do que poderia acontecer ali. Não tinha certeza se seria capaz de administrar remédios para animais e menos ainda de ser capaz de tratar feridas ou fazer procedimentos mais pesados.Não era alguém que se ligava ao fracasso antes mesmo de realizar algo, mas era honesta com relação ao seu estado físico e emocional. Sua parte psicológica estava bem, ela era capaz de compreender seus dias e suas limitações, mas e os outros? Não queria causar problemas.Por outro lado ela queria ter um emprego fixo de novo e ter mais contato com outras pessoas. Isso a ajudaria muito em sua recuperação. E ainda tinha a vantagem de estar com animais que
Parte 1...Mike estava abaixado, olhando os pontos na barriga de uma gatinha que havia sido trazida pela dona às pressas. A gata não tinha raça definida, era uma vira-lata muito bonita, branca e amarela. A mulher a encontrara na rua, muito magra e a levou para casa. Agora morava em sua casa há dois anos e era muito apegada à sua nova dona e sua casa. Mas era uma gatinha muito danada e que mexia em tudo. Acabou engolindo um dos carretéis de linha que a mulher usava para suas costuras e começou a passar mal.Infelizmente foi necessário fazer uma cirugia de emergência, mas foi bem sucedida e agora a gatinha estava em recuperação. A dona poderia levá-la de volta dentro de quatro dias. Antes ela precisaria ficar em observação mais próxima e evitar fazer movimentos bruscos, então ele a colocara em uma pequena gaiola que limitava seus movimentos e também um colar cirúrgico em volta do pescoço para que não retirasse os pontos.Levantou e mexeu os ombros, sentindo a tensão do dia. Parecia qu
Parte 2...Não iria se sentir culpado por não ter sentido algo a mais por ela, por não ter corrido aquele arrepio gostoso na pele quando se tem uma conexão com outra pessoa. Não era um homem que embarcava em algo apenas pelo desejo momentâneo. E a clínica que só crescia lhe tomava bastante tempo de sua vida e tanto ele quanto o irmão estavam mais presos ao pensamento de fazer com que tudo corresse bem e a ideia de ambos era que se transformasse em uma referência na região e para isso eles trabalhavam muito e investiam também.Deixou a sala e foi até seu escritório para pegar a pasta de tarefas. Ele sempre revisava tudo que tinha feito antes de ir embora, para ter um arquivo de tudo o que era realizado durante o dia. Isso o ajudava a manter sua organização pessoal.Quando abriu a porta de seu escritório estancou no lugar, ao ver que havia uma garota sentada em seu sofá. Ela estava com as pernas cruzadas. Os sapatos pareciam de bonecas, em um tom leve de verde, assim como seu vestido f
Parte 3...Ok, isso era até um certo preconceito de sua parte, mas é o que geralmente se via. Não esperava que Camila Becker fosse uma garota assim, com esse rosto perfeito, olhos brilhantes e um sorriso suave que fez seu coração bater mais forte. E ele sabia que tinha um corpo bonito também, deu para perceber suas curvas na roupa folgada. E suas pernas torneadas lhe chamavam atenção o tempo todo, mas segurava o olhar em seu rosto ou ficaria estranho esse comportamento em uma entrevista de emprego. Então ela levantou e ele saiu de seu pensamento.— Bem, agora eu vou embora - alisou o vestido e sorriu, inclinando um pouco a cabeça de lado — D-deu pra notar... Que aqui é bem agi...tado e que o senhor pre-precisa de alguém diferente - ajeitou a bolsa no ombro.— O que? - ele franziu a testa — Não vai fazer a entrevista?Ela puxou o ar o encarando com um sorriso delicado.— O senhor sabe que eu... Eu tenho um proble...ma sério? - ele fez que sim com a cabeça — Então sabe que não posso aj
Parte 4...E isso o fez se sentir mal, pequeno até. Assim como ela, quantas outras pessoas não viviam por ái, espalhadas pelo mundo, sendo esquecidas pelas autoridades que não lhes dava oportunidades e mais ainda pelas pessoas comuns que se preocupavam apenas com seu próprio umbigo.Quantas outras Camila deveriam estar por aí agora, tentando sobreviver por terem a má sorte de sofrerem de alguma lesão, algum problema que as impedisse de participar de modo ativo da sociedade. Muitas com certeza eram abandonadas.— Desculpe perguntar coisas assim, mas preciso saber um pouco mais sobre você - sentiu vergonha de incomodá-la.— Não tem proble...ma. Fique à vontade. E-eu prefiro até.— Quando fica nervosa você tem uma reação mais forte, não é assim? - ela assentiu — E você consegue ler, escrever... Pegar recados... - se sentiu mal por essas perguntas ridículas.— S-sim - ajeitou a bolsa no colo — É um pouco com...plicado quando estou em... Em um dia ruim - gesticulou tentando explicar — Mi-m