Ando pela viela da comunidade, passos ligeiros, pernas finas, minhas sandálias gastas não são suficientes para impedir que meus pés toquem a água suja de esgoto a céu aberto que escorre dos barracos de vários moradores, ratos disputam espaço com cachorros, crianças, eu sou mais uma no meio de tantas, a cada passo o coração acelera nos ouvidos, a cada passo me aproximo do inferno, eu preferia não ter nascido ou ter nascido em outra família, mas quem protegeria meu pequeno se eu não existisse? Talvez esse seja meu propósito na vida, impedir que meu irmão passe por tudo que estou passando, ou pelo menos evitar parte do seu sofrimento.
O Tum... tum... tum... do meu coração não impede que eu escute o choro das crianças dos barracos, a música funk que a Jucélia escuta todos os dias, os gritos de socorro da vizinha que apanha do marido bêbado, mas da mesma forma que para mim, o socorro não vem para ela também.
Meu corpo tem algumas marcas, porém poucas superficiais, o negro da pele esconde algumas, mas as cicatrizes da alma essas nem a melhor maquiagem poderia esconder, eu queria ser igual aquele moleque que acabou de chegar da escola, e não estar chegando do sinal de trânsito sem um centavo no bolso, sei o que me aguarda lá e sei que é algo que eu não desejaria a ninguém.
Dez anos de idade, não lembro a data do meu aniversário, acho que são dez anos, meu corpo começa mudar eu sinto isso, tenho medo de chegar aos onze anos, a mãe da Bruna a vendeu aos onze, e entupiu o nariz de farinha com a Mara, minha mãe, na minha boca esse nome tem um gosto amargo, pior que fel, perdida em pensamentos não percebo que sou encurralada por Josué marido da Patrícia, o mesmo que bate nela todos os dias, a pele branca dela sempre aparece com marcas roxas, sinto um calafrio na alma, sei que ele não quer apenas me assustar, seu sorriso maligno e cheio de malícia me diz isso.
— Que tal a gente brincar um pouquinho ali atrás daquele muro hein Silvinha, vai ser muito divertido, vem.
Não me assusto, fico séria, cruzo os braços, mas não respondo.
— O gato comeu sua língua…
— Você conhece o Martinho Josué? Sabe o que ele faria com você?
Sou firme, não deixo que ele veja o medo tomando conta da minha alma, ele percebe que eu não sou tão inocente, para cair nesse papo de brincadeirinha, mas minha voz infantil não impõe respeito ou medo, pelo contrário, parece diverti-lo.
— Ele não precisa saber, vai ser divertido…vamos.
Ele agarra meu braço e tenta me arrastar, mas ao longe vejo um dos garotos do Martinho e começo a gritar chamando atenção, Josué finge que não escuta mas uma voz o paralisa, Martinho é o traficante da comunidade e todos sabem do seu ódio por pedófilos e estupradores, dizem que ele matou o próprio pai com requintes de crueldade após ficar maior e ter forças o suficiente.
— Eu fiquei sabeno que você é um covarde que bate na muié, até aí até tranquilo, na moral, mais tentá pegá uma criança…
Um rapaz de quinze anos, apelidado de rapadura fala calmamente, ele está parado numa pose despreocupada, nisso Josué me solta sabendo que assinou sua sentença de morte.
— Euu, nã-não estava fazendo nada, era apenas uma brincadeira, não é Silvinha, somos amigos… — Se explica rápido enquanto eu o encaro com o ódio que uma criança de dez anos pode sentir.
— Não era, não sou sua amiga. — Minha voz infantil sai um pouco mais fina, assustada.
— Vá pro seu barraco Sil, com ele a gente se resolve.
O garoto dá um assovio alto e um cara maior chega com dois Pitbulls e eu corro encontrando em duas esquinas depois ela, Mara, minha mãe, primeira vez que a chamei assim nunca vou me esquecer, tenho até hoje os vergões. Sou mais uma no meio de tantas outras, faço parte das estatísticas, e mesmo com a pouca idade percebo que sonhos são vãos, eles não fazem minha barriga parar de doer com o vazio, não fazem ela parar de me bater, muito menos me amar, então não sonho com uma vida melhor, uma família, mas eu sonho em ser alguém melhor que essa mulher estranha que eu deveria chamar de mãe.
Aqui nem a polícia vem, de vez em quando os bandidos usam nosso barraco como esconderijo ou depósito de armas, por algumas gramas de pó ela guarda as armas no teto de madeira puído do que um dia foi um barraco quase decente. De longe escuto o choro do meu irmão Escobar, homenagem ao seu herói, tenho medo, mas preciso cuidar como posso do meu irmãozinho de um ano, que deve chorar de fome, do lado de fora escuto os gritos dela que eu sei que dá para ouvir do outro lado da comunidade.
— Desgraçado deveria ter matado você assim como deveria ter matado a imprestável da sua irmã!
Tenho vontade de sair correndo e ir morar nas ruas, mas o que me aguarda na rua é o mesmo ou talvez pior que o que me aguarda lá dentro. Aos sete anos de idade até que era mais fácil ganhar uns trocados no sinal de trânsito, alguns patrões querendo talvez uma redenção jogasse umas moedinhas, mas aos dez anos, o bico do seio apontando na blusa gasta, não oferecem nada além de cinco reais por uma hora.
Infância? Não sei o que é isso, muito menos inocência depois de ver a Mara com seus clientes, no sofá gasto da sala ou ouvir seus gemidos durante a noite inteira e ela contar para a sua amiga quanto de pó conseguiu com seu trabalho árduo, não há espaço para inocência.
Com minha pouca idade já pedi a Deus várias vezes para morrer, mas acho que ele por ser um velhinho não deve escutar, ela sabe que horas eu chego, parece que sente meu cheiro sujo de longe, não sei como ela ainda pode sentir cheiro com o cheiro podre de dentro do barraco, latinhas de cerveja para todo lado, a louça da pia oferece comida para as batatas e até os ratos, mas nunca sobra para mim, tenho sempre que arrumar um jeito de não morrer de fome.
— Então a putinha chegou... Passa, passa toda a grana, quero meu dinheiro, nem que você tenha que fazer programa... Sua puta dos infernos.
Seu grito é acompanhado de um tapa em meu ouvido que zumbe, ela me puxa pelos cabelos e eu espero o que não demora a chegar, já nem dói mais como antes, estou anestesiada, na segunda chicotada com os fios de energia, cobre roubado envolto por um plástico. Minha mente viaja para o sinal, um garotinho de cinco anos faz uma careta e com a inocência de uma criança bem cuidada pergunta aos pais.
— Mãe, por que ela não toma banho, a mãe dela não gosta de dar banho nela?
Já não me importo mais com os comentários, racismo é crime para aqueles cuja sociedade olham, eu sou invisível, me olham como se eu fosse uma ratazana grande e nojenta, deve ser por isso que ela me chama assim. Sete chibatadas, puxões de cabelo, tapas na cara, meu corpo é arremessado contra o chão, o Escobar continua chorando ao longe, não choro, não peço clemência, misericórdia nem a ela e nem a Deus, não vejo mais nada, a fome, e a dor me apagam, e antes da escuridão me abraçar, escuridão é bem-vinda, ela me tira desse lugar, a dor, nada mais importa.
— Tomara que tenha morrido, vou ligar pra Jucélia para saber o que fazer com o corpo dessa ratinha… Foram suas últimas palavras.
"Me sinto sufocar, balanço a cabeça e me vejo em um lugar totalmente branco, alguém segura minha mão e abre uma porta, assim que entramos passamos por algumas pessoas dormindo em um beco escuro e sujo, algumas crianças não tem com o que se cobrir, outras se cobrem com caixas de papelão, continuamos andando e a pessoa abre outra porta, e agora o cenário é diferente, é tudo muito limpo, branco e tem uma moça negra como eu sorrindo para um bebezinho em uma caixa transparente, ela está toda de branco e parece um anjo."
Acordo com a cabeça doendo, está muito frio, o corpo todo dolorido, as costas em brasas, por incrível que pareça aqui está mais macio que minha cama, abro os olhos assustada, mas não consigo me levantar, meu corpo queima. Abro os olhos e tudo é branco...
No canto vejo uma moça de branco , deve ser um anjo, será que no céu também tem dor?
A porta se abre e uma moça loira, muito bonita também de branco entra.
— Como está nossa paciente Rosa?
— A febre diminuiu.
A moça loira se aproxima e me sorri bondosa.
— Vejo que acordou.
Ela lê algo que está em suas mãos e sorri novamente, parece feliz em me ver, acho estranho, ninguém nunca fica feliz em me ver.
— Apesar da concussão cerebral nada de mais grave, aparentemente, você desmaiou de fraqueza, está me entendendo? Teve febre a noite inteira.
Permaneço calada, mas afirmo com medo de sua reação ao não receber uma resposta.
Minha mão pequena bate no vidro escuro do carro, que brilha ao sol do meio-dia, um homem de sorriso maldoso e olhar malicioso, cabelos brancos bem penteados, aparece na janela.— Te dou tudo que quiser... É só entrar...Te dou até um banho, pra ficar...Com o tempo eu aprendi o que cada olhar significava, observando os homens que apareciam lá em casa então eu corro para o mais distante possível, mas quando percebo meus passos estão me levando de volta para o inferno não tenho nem como me arrepender, pois ouço gritos desesperados do Báh, sinto a sua dor. Estou em frente à porta que se abre com violência..."Sinto meu corpo sacolejar, e acordo suada, perdida, eu já deveria ter me acostumado, aos pesadelos vívidos em minha memória, que estão sempre lá, esperando um momento, um cochilo então ela invade meus sonhos e os transf
Mais uma vez a vida é uma cadela comigo, nunca vou me achar digna de ser feliz, pois ela me arranca tudo de bom que aparece em minha vida e mais uma vez me arrasta pela lama, aquela mesma lama fedida daquele barraco, não sei quantas rasteiras vou ter que levar para desistir de vez. Incontáveis, esses são os números de rasteiras que essa puta barata me deu. Quantas vezes tenho que me lembrar de suas últimas palavras para não voltar para a escuridão, me agarro a elas sempre que fraquejo, sempre que minhas pernas travam e meus pés tentam parar, quando eu só quero ficar em minha cama e nunca mais sair, eu me lembro.“Você é forte, Sil, nunca vi nada e nem ninguém mais forte que você, estarei lá por você aonde quer que esteja, levante-se e olhe sempre para a frente.“— Serei forte e Sil, aguentarei o máximo que puder, por vocês, meus fi
Chego em casa da faculdade, e passo direto para o escritório do meu pai, um espaço amplo onde ele põe em dia seus estudos, preciso conversar com ele, tenho que arrumar um emprego e também quero procurar um lugar para morar, afinal sou uma mulher de vinte e dois anos, não posso ficar a vida inteira em sua aba, e também sinto que estou atrapalhando seu namoro com a Andréa, ela sempre que me vê torce o nariz como se sentisse um mau cheiro, sei que ele está lá esse horário, mas antes de bater à porta escuto uma conversa alterada entre ele e a Andréa.— Você não pode continuar sustentando essa mulher John, isso não tem cabimento!Escuto a voz zangada do senhor John e me encolho diante dos gritos da sua resposta que não escuto bem.— Enquanto ela era menor, tudo bem... se ela fosse realmente sua filha eu até poderia aceitar, mas ela é uma mulher e está mais que comprovado que ela não é sua filha! — ela diz indignada.— ELA É MINHA FILHA SIM! — ele grita. — E ENQUAN
Ian MassarovNão importa quantas pessoas eu salve, não importa quantas já salvei, isso não vai me tirar a culpa, o peso que eu carrego, mesmo que eu extermine da face da terra todos os carniceiros que entram na vida das pessoas para destruí-las, nada disso me faz sentir mais digno. Não fui capaz de salvá-la, ela era só uma criança, sem proteção, à mercê do poderio de um homem adulto, se é que aquilo pode ser chamado de homem, quando me lembro da cena meu estômago se revolta e a bile sobe."Melhor sair daí''. Meu subconsciente aconselha, estou pilotando minha envenenada, uma PGM V8, ganho velocidade e meu coração acelera com a alta carga de adrenalina, não tenho lar, vivo no mundo, mas minha última parada é sempre o Brasil.Entro na casa, um clube que eu frequento em Los Angeles, tenho uma casa em Long Beach, a ver
Pés descalços, saltam uma, duas poças de lama, como se brincasse de amarelinha, mas em minha vida não há espaço para brincadeiras, meu corpo inteiro dói, já me acostumei a dor, feridas nos joelhos já não são mais uma novidade, procuro por algo que não sei o que é, num instante o cenário muda, ainda estou procurando algo, olho embaixo da pequena cama que um dia teve espaço para comportar meu corpo inteiro, hoje sou maior que ela, tenho que me encolher ao máximo para dormir nela, ouço a porta da frente se abrir num baque, seguida por um grito.— Sílvia, cadê você sua ratinha! Espero que tenha ido atrás do meu dinheiro, se eu não tiver um pouco de sossego você também não terá...Sua voz enrolada me diz que ela bebeu e fumou, sempre que ela fuma aquela coisa fedida ela me castiga até se cansar, ela me castiga até cansar mesmo nas poucas horas que está sóbria. Saio devagar do meu esconderijo, me arrependo assim que sinto duas mãos pegarem meu pescoço...— Acorda sua rat
Hoje estou mais ansiosa que os outros dias, é o dia da audiência do processo contra a doutora Andréa, por isso tive uma noite de cão. Cubro minhas olheiras com maquiagem, calço meu salto alto, já vestida, aviso meu pai que já chegou que estou descendo.— Bom dia filha, ansiosa para o que está por vir?! — Ele nem imagina que eu não dormi a noite inteira.— Bom dia pai, sim estou muito ansiosa, desde ontem para ser sincera.Ele me conforta— Vai dar tudo certo, você vai ver, estou do seu lado, a justiça está do seu lado, não há o que temer. Ela será julgada não só pela discriminação racial, mas também por desacato à autoridade, enfim a Rute também está cuidando disso. — ele fica vermelho ao falar da Tenente Rute, isso traz um sorriso aos meus lábios.&
Estou sentada no banquinho do bar observando a louca da Andressa, suada dançando com um cara alto e forte, ela rebola e se esfrega no rapaz que não fica para trás e aproveita para passar a mão em seu corpo, desvio minha atenção para outro casal que se agarra num canto do salão, permaneço no lugar, mas sou logo arrastada pela Andressa que tenta me ensinar os passos de uma dança, eu fico dura e não me solto.— Espera aqui que eu vou buscar uma pílula de coragem pra você, você vai se soltar rapidinho... — Ela grita no meu ouvido e sai empurrando as pessoas, minutos depois ela volta e antes que eu negue ela me olha com uma careta, tomo coragem e engulo a bebida que desce rasgando.Parece que ficou mais fácil dançar minutos depois de tomar aquela bebida, estou sorrindo à toa, e já aprendi alguns passos com a Andressa, não sei como ela
Abro os olhos, sinto que estou em uma cama muito confortável, estou em minha cama, abraço os travesseiros, mas percebo que não estou em casa assim que abro meus olhos, assustada me sento rapidamente, uma leve vertigem me faz fechar os olhos.— A bela acordou, espero que goste dos seus novos aposentos... — Me assusto com a voz masculina marcante. Olho para o dono da voz, calada estava, muda fiquei.Um homem ruivo, com uma regata masculina estilo exército, na cor preta, calça jeans azul, tatuagens em um dos braços, não tive coragem de olhar em seus olhos, ele é grande... O que eu estou fazendo? Saio da cama como se ela estivesse pegando fogo, corro em direção à porta, mas não chego nem perto, bato de frente a uma parede de músculos, levanto meu rosto e sinto o ar faltar, seus olhos são inacreditáveis de tão verdes, em conjunto com seus cabelos vermelhos poucas e pequenas sardas dão a ele um ar místico, nem parece real, seu olhar é diferente, é quente, mas também vejo um tr