Pietra Santini
— Bom dia, Maleninha — cumprimento ao entrar na cozinha, depositando um beijo em sua bochecha enquanto ela termina de organizar o café da manhã. — Bom dia, querida. Vai sair hoje, mesmo sendo domingo? — pergunta com aquele tom carinhoso que só ela tem. — Ensaio extra de balé. Tem uma apresentação infantil chegando, e minha professora me escalou para ajudar as meninas — explico, suspirando, já sentindo o cansaço antecipado. — Você não para mesmo, hein? — ela sorri, com aquele ar gentil que parece um abraço silencioso. — Pelo menos se alimente direito, Pietra. Você anda comendo tão pouco ultimamente. — Ah, você sabe como é, Malena. Tenho que manter a forma — digo, sem graça, desviando o olhar. A verdade é que o balé nunca exigiu tanto de mim. A pressão para ser impecável não vem das aulas, nem das apresentações, mas sim do meu pai. Ele é o tipo de homem que vê uma mulher apenas como um reflexo de aparência, como se nossas conquistas fossem irrelevantes diante de uma cintura fina. É cansativo, mas contradizer suas expectativas nunca pareceu uma opção. — Sinto muito, querida. Se dependesse de mim, você estaria bem rechonchudinha e feliz — diz Malena, brincando, tentando amenizar o peso das palavras. Sorrio de volta, mais por gratidão do que por diversão. Malena é assim: uma presença constante que tenta preencher os vazios que meu pai deixa. Ela e seu Alberto, o marido dela, são as pessoas mais próximas que tenho de uma família de verdade. Sentada à mesa, tomo meu café sozinha, como sempre faço. Desde que me lembro, minhas refeições são solitárias. Malena, quando pode, se senta comigo, mas hoje ela está atarefada com as obrigações da casa. Meu pai, mesmo estando em casa, nunca faz questão de me acompanhar. Na verdade, ele me evita. Acho que, no fundo, ele me culpa pela morte da minha mãe. Ela morreu no parto, optando por me dar a vida em vez de salvar a própria. Muitas vezes me pergunto se, se pudesse prever o que seria a minha existência, ela teria feito outra escolha. O café termina rápido, e minha mente vagueia enquanto subo para escovar os dentes e pegar minha bolsa. Meu pai tem uma necessidade quase obsessiva de me manter ocupada, como se quisesse preencher qualquer minuto livre da minha vida com algo que me torne “perfeita”. Desde criança, fui sobrecarregada com aulas intermináveis: línguas estrangeiras, música, pintura, etiqueta, culinária, bordado… A lista parece interminável. Poucas dessas coisas realmente me trazem alegria. O balé, por exemplo, é uma das raras exceções. Gosto da disciplina, da liberdade que encontro nos movimentos, e do som do piano acompanhando cada plié e arabesque. É algo meu, um dos poucos momentos em que sinto que estou realmente vivendo, e não apenas cumprindo expectativas. Desço e encontro o senhor Alberto me esperando. Ele é meu motorista e segurança pessoal, mas, acima de tudo, é quase como um segundo pai. — Bom dia, senhor Alberto — digo, com um sorriso que raramente consigo dar para outras pessoas. — Bom dia, dona Pietra. Balé hoje? — pergunta enquanto abre a porta do carro para mim. — Sim, as pestinhas bailarinas me aguardam. É Lago dos Cisnes, e elas estão eufóricas — respondo, suspirando. Ele sorri, um sorriso cheio de lembranças. — Eu lembro quando foi a sua vez de fazer Lago dos Cisnes. Você ficou super empolgada também, então não culpe as meninas. Não posso evitar o sorriso que surge no meu rosto. As memórias daquele espetáculo são doces, mas também carregam um pouco de melancolia. Foi uma das apresentações que mais me marcou, mas meu pai não estava lá para assistir. Ele nunca esteve. Se não fosse por Malena e Alberto, eu teria dançado para uma plateia de estranhos. Eles sempre compareceram a cada evento , aplaudindo de pé, mesmo que estivessem exaustos de tanto trabalhar. São eles que fazem com que eu me sinta vista e amada, mesmo quando minha própria família parece esquecer que eu existo. A viagem até o estúdio de balé é breve, mas silenciosa. O senhor Alberto dirige com a mesma calma de sempre, e eu aproveito o tempo para observar a cidade pela janela. Aos domingos, tudo parece um pouco mais lento, como se o mundo inteiro tirasse uma pausa que eu nunca pude me permitir. Chegamos ao estúdio, e antes mesmo de entrar já ouço as vozes agitadas das meninas. Um coro de risadinhas e conversas altas ecoa pelo salão, deixando claro que o ensaio será tudo, menos tranquilo. Minha professora, dona Margarete, me recebe com um sorriso que mistura alívio e cansaço. — Pietra, que bom que você chegou! Essas meninas estão com energia de sobra hoje. Acho que só você pode ajudar a manter a ordem. — Vou fazer o meu melhor, dona Margarete. Vamos tentar canalizar essa energia para a coreografia — digo, rindo suavemente. As meninas correm em minha direção, animadas, falando todas ao mesmo tempo. Algumas contam sobre as roupas que vão usar, outras querem mostrar seus passos favoritos, e há até quem me pergunte sobre como é dançar como uma das grandes estrelas do espetáculo. — Certo, certo, pestinhas! Vamos começar com um bom alongamento. Não adianta ter tanta energia se não estivermos preparadas para dançar, certo? — digo, tentando manter o tom animado, mas firme. Elas riem e obedecem, espalhando-se pelo chão do estúdio. Enquanto as ajudo a corrigir a postura e ajustar os movimentos, percebo como o balé tem um papel especial na vida delas, assim como teve na minha. É mais do que dança. É disciplina, é arte, é uma forma de se expressar sem palavras. As horas passam rapidamente, e logo estamos ensaiando a coreografia principal. Lago dos Cisnes sempre teve um significado especial para mim. É uma história de sacrifício e amor, e talvez por isso sempre ressoe tão profundamente comigo. Quando finalmente encerramos o ensaio, estou exausta, mas satisfeita. As meninas também estão mais calmas, embora ainda consigam conversar e rir enquanto guardam suas coisas. Dona Margarete agradece mais uma vez por minha ajuda, dizendo que não sabe como teria lidado com o grupo sem mim. Ao sair do estúdio, encontro o senhor Alberto me esperando no carro. — Como foi o ensaio? — pergunta ele, enquanto abre a porta para mim. — Cansativo, mas produtivo. As meninas estão se saindo bem, mas ainda temos muito trabalho pela frente — digo, afivelando o cinto enquanto ele entra no carro. No caminho de volta para casa, me pego pensando em como o balé é uma das poucas coisas que me fazem sentir conectada comigo mesma. Talvez porque, no palco, não importa quem é meu pai, ou como minha mãe morreu, ou quantas expectativas estão sobre meus ombros. Dançar é libertador, mesmo que por alguns minutos.Pietra Santini Acordei com o corpo pesado, a sensação de exaustão me consumindo. Ontem as meninas no balé pareciam ter uma fonte infinita de energia, enquanto a minha já estava no limite. Ainda assim, eu não tinha escolha. A vida, com todas as suas exigências, não me dava tempo para parar.— Bom dia, Malena — digo, entrando na cozinha e me sentando à mesa.— Bom dia, querida. Sente-se e tome seu café — ela responde, já colocando um prato à minha frente.Enquanto pegava uma tigela de iogurte com granola e morangos, decidi perguntar algo que já sabia a resposta.— Meu pai está em casa?Malena suspira, o rosto expressando o mesmo pesar de sempre.— Não, meu amor. Ele viajou ontem, pouco depois de você chegar.— Certo — respondo, tentando soar indiferente, mas a sensação familiar de abandono lateja no fundo.Terminei meu café sem pressa. Não estava com muita fome, para variar. Hoje era dia de aula de alemão, e eu mal conseguia reunir energia para me arrastar até lá.Caminhei até o carro,
Pietra SantiniEnquanto o garfo vai da minha mão até a boca, noto o olhar de Alana. Ela não disfarça nem um pouco. Adônis está sentado do outro lado da mesa, alheio — ou fingindo estar alheio —, e ela o devora com os olhos como se ele fosse um banquete. É irritante.— Para de encarar o Adônis desse jeito — resmungo, tentando manter a voz baixa. — Deixa o cara comer em paz.Alana solta uma risada que me faz revirar os olhos antes mesmo de ouvir a resposta.— Não dá, amiga. O cara é um pedaço de mal caminho. Se você não quiser, eu quero.— Nem se eu quisesse — murmuro, cruzando os braços. — Ele é grosso e parece que tem algum problema comigo.— Será que vocês não já se conheciam? — Alana pergunta, inclinando a cabeça como se tentasse montar um quebra-cabeça. — Sei lá, brigaram na infância ou coisa assim?— Tenho certeza que não. Apesar de morarmos no mesmo terreno, eu quase não o via. Acho que... observava ele de longe às vezes, mas nada demais.— Então ele só não foi com a sua cara mes
Pietra Santini Ao abrir a porta de casa, fui recebida pelo som abafado de vozes na cozinha. Malena e Adônis conversavam em tom baixo, como se compartilhassem segredos. O contraste entre a seriedade habitual de Adônis e o sorriso sutil de Malena me surpreendeu. Era raro vê-lo assim, com traços tão humanos.Meu coração pesou. Talvez por inveja. Talvez pela saudade de algo que nunca tive. A ausência de minha mãe parecia ainda mais cruel em momentos como esse, em que uma interação simples me lembrava do vazio que carregava. Se ela estivesse aqui, tudo seria diferente. Talvez fôssemos uma família de verdade, e hoje, em vez de lidar com as sombras de um passado que não vivi, estaríamos comemorando seu aniversário.Tentei ignorar a dor enquanto caminhava até a cozinha.— Malena, estou com febre hoje, tudo bem? — perguntei, a frase carregada de um significado que só ela entenderia.Ela levantou os olhos para mim, preocupada.— Querida, tem certeza? Ele pode desconfiar. — A preocupação na voz
Adônis Hart Era uma tarde tranquila quando me vi sentado à mesa com minha mãe e Pietra. O cheiro de pão fresco misturado com o café recém-passado preenchia a cozinha, e Pietra, como de costume, tagarelava animadamente. Ela parecia estar à vontade, falando sem parar sobre qualquer assunto que surgisse em sua mente, e confesso que achava isso divertido. Era raro vê-la tão descontraída, talvez porque não tivesse tantas oportunidades de conversar assim.Eu tomei um gole da minha Coca-Cola e, sem querer, soltei um arroto alto, o que fez Pietra explodir em gargalhadas. Minha mãe, por outro lado, me deu um tapa no braço, indignada.— Ai, mãe! Tá doida? — reclamei, esfregando o local onde ela tinha acertado.— Respeita as damas, menino! Essa não foi a educação que eu te dei — disse ela, incrédula. — Um porco desse jeito, não é à toa que não arruma namorada. Quem é que vai querer?— Credo, mãe! Eu sou um ótimo partido. Olha só pra essa belezura aqui — brinquei, apontando para mim mesmo. Pietr
Pietra Santini Acordo com a claridade invadindo o quarto, o sol batendo diretamente no meu rosto e forçando meus olhos a piscarem várias vezes. Por alguns segundos, me sinto confusa, tentando entender onde estou. A sensação de estranhamento me domina até que finalmente me lembro: estou no quarto do Adônis. O quarto está vazio, e a cama ao meu lado também. Ele já deve ter levantado há algum tempo. Respiro fundo, tentando juntar coragem para sair dali. A vergonha começa a me consumir, especialmente pensando no que a Malena pode estar imaginando sobre mim. Jesus, o que ela vai pensar? E se achar que estou abusando da hospitalidade deles? Não consigo evitar esses pensamentos enquanto me levanto, os pés afundando no tapete macio do chão. Preciso sair daqui logo, antes que o desconforto me consuma. Caminho até o banheiro, onde encontro uma gaveta entreaberta. Lá dentro, vejo uma escova de dentes lacrada. “Que cuidado,” penso, enquanto abro a embalagem, escovo os dentes e lavo o rosto
Adônis Hart Segunda-feira começou de um jeito diferente para mim. Meu pai voltou de viagem logo cedo, e confesso que senti falta dele. Ter a presença dele em casa novamente traz uma sensação de conforto, algo que parece colocar as coisas no lugar, mesmo que temporariamente. Mas a volta dele também significa que o senhor Conrado Santini está em casa, e isso me deixa em alerta. Sempre que penso nele, meu pensamento vai direto para Pietra. Não deveria ser assim, mas é. Não deveria me importar tanto com ela, mas é impossível evitar. Pietra é como uma daquelas sereias das lendas: ela me atrai de uma forma que desafia a lógica. Cada olhar, cada sorriso, é como um canto hipnotizante, e mesmo sabendo que isso pode me afundar, eu simplesmente não consigo ignorá-la. E isso, justamente isso, é tudo o que não deveria acontecer. Encosto no carro, cruzando os braços enquanto a espero aparecer. O sol está forte, mas eu nem noto o calor, porque minha cabeça está ocupada demais pensando nela. O te
Pietra Santini Eu não estava com disposição para enfrentar essa aula de alemão, mas como sempre, não tinha outra escolha. Sentada na última fileira, mal prestava atenção no que o professor dizia. Meus pensamentos estavam em outro lugar, ou melhor, em outra pessoa: Adônis. Desde o fim de semana, não consigo tirá-lo da cabeça. A maneira como ele esteve ao meu lado, como me abraçou quando eu precisava… Sinto algo que não deveria sentir. Ele é apenas um funcionário da minha família, mas nos últimos dias, parece que o mundo ao nosso redor mudou. — Ei, amiga, tá tudo bem? — a voz de Alana me puxa de volta à realidade. Olho para ela, um pouco perdida, mas tento disfarçar. — Sim, só estou um pouco distraída. Vamos almoçar juntas hoje? Ela sorri, sempre com aquele jeito gentil que a faz ser uma das poucas pessoas em quem confio. — Claro! Bom, assim você aproveita e me conta por que está com os olhos inchados, né? Dou uma risadinha sem graça e concordo com um aceno. Ela sempre percebe tud
Adônis Hart Depois de me despedir da Pietra ainda na garagem, caminho a passos largos até a minha casa. Estava morto, só queria um banho quente para relaxar e um jantar decente, mas meus planos foram por água abaixo quando ouvi o senhor Conrado me chamando. Sua voz grave ecoou pela garagem, me fazendo parar no meio do caminho.— Adônis, podemos conversar um minutinho? — A princípio, achei estranho, mas me aproximei dele sem hesitar.— Claro, aconteceu alguma coisa? — pergunto, tentando esconder minha apreensão.— Não exatamente. Na verdade, preciso que fique de olho na Pietra. Não quero que ela se envolva com… rapazes. Quero que seja mais atento a isso. — Sua expressão era séria, mas havia algo em seu tom que me deixava desconfiado. Será que ele sabia de algo?— Sem problemas, estou sempre atento. — respondi, mantendo minha postura profissional.Ele me analisou por um momento, estreitando os olhos como se tentasse decifrar algo em mim.— Fique atento, mas não demais. Afinal, você tam