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3. Um intruso no meu lugar

Estou agora organizando as últimas coisas e certificar-me de que não esqueço nada. Despeço-me do meu quarto amarelo e azul-escuro, que por anos foi meu refúgio, meu lugar preferido. Aqui passei muitos momentos bons, nos divertimos, choramos, fofocamos, traçamos os melhores planos de vida, uns deram certo, outros não, mas sempre soubemos o que queríamos e lutamos por isso.

Depois que saímos da esquadra de polícia, onde fizemos uma denúncia por estupro contra Braúlio, contei a Nilza que está de viagem marcada para fora do País. Ela ficou muito triste, “justo agora que fizemos as pazes você vai se mudar para longe” ela reclamou quase chorando. Mas no fim ela entendeu que é necessário que eu faça isso.

O meu relógio de pulso marca vinte horas, apresso-me para chegar ao aeroporto cedo, apesar da nossa casa ficar quarenta minutos de lá. Meu voou partirá as vinte e duas horas, e ainda tenho que fazer o ‘registo de embarque’, não consegui fazer ‘online’, a minha família também já está se aprontando para me acompanhar.

Desço às pressas, e logo deparo-me com os meus irmãos, os meus pais, esperando com os olhos triste e humedecidos. Tento manter a firmeza para não cair no choro também, mas não consigo, eu não contava com a presença do meu pai hoje, ele regressaria a Luanda somente amanhã.

— Vá lá, mudem essas caras, não estou em fase terminal de uma doença, só vou viajar…, — digo posando a mala no chão e, aproximo-me deles. — Pai, eu pensei que o senhor viria só amanhã, que bom que pode vir hoje — abraço-o.

***

"Última chamada para o voo com destino a Berlim, senhores passageiros, por favor dirijam-se ao portão de embarque quatro"

Desgrudámo-nos num rompante e, com os rostos húmidos, despedimo-nos mais uma vez. Papai segura o meu rosto e faz-me prometer um monte de coisas. Sem aviso, envolve o meu pescoço com um pingente de borboleta banhado em ouro com as iniciais do seu nome e da mamãe gravado em cada asa.

Não esperando por sua vez, a minha irmã dá um pequeno salto se pondo na frente de papai e entrega-me um autorretrato em desenho de nós os três. Eu, ela e Quelson os dois sentado no sofá e eu sentada no chão com os pés cruzados na posição de meditar com o prato de comida no colo lambendo o dedo indicador enquanto assistíamos alguma coisa na tv. Fico surpresa com a boca em ó e logo os meus lábios se curvam num sorriso largo e agradecido.

— Eu desenhei, como é óbvio, e a Quezia emoldurou e decorou — se pronuncia o meu irmão cheio de orgulho.

— Minha filha, a sua irmã vai buscar-te lá no aeroporto, ela está muito feliz e, eu, descansada por teres alguém da família lá.

— Ei bolinha de gude, sempre que te sentires sozinha, lembra que sempre estaremos aqui para você, te amamos demais — pontua a mais nova, chorando.

— Ah, não, por favor, assim vocês vão fazer-me desistir, vamos parar com o drama — falo inclinando o rosto para o lado fazendo beicinho. — Eu também amo vocês demais e vou sentir muitas saudades.

Limpo o rosto e afasto-me, a passos largos, em direção ao portão de embarque.

— Boa noite. Sra. seja bem-vinda a bordo, o seu lugar é já na segunda fila a direita assento AB5 — diz com um sorriso acolhedor segundos após olhar o ‘ticket’ que lhe entreguei.

— Muito obrigada — respondo, lhe devolvendo o sorriso.

Quando me próximo ao lugar indicado pela hospedeira de bordo, vejo outra pessoa esparramada no meu assento perto a janela. Eu fiz questão e certifiquei-me de que escolhia o lugar certo, o que se passa? Questionei no íntimo.

— Olá, tudo bem? O senhor está sentado no meu lugar, AB5?! — mostro-lhe o documento que comprova o que acabo de dizer.

Ele olha-me de cima a baixo, em silêncio, talvez não fale o meu idioma, pensei.

— Então, não vai dizer nada, vai ficar aí só me olhando como se tivesse procurando algo em mim? Digo apoiando a mala no assento.

— Desculpe o que disse? — diz, saindo de algum tipo de devaneio.

— Perguntei se tem algum problema?

O seu sotaque é diferente, acho que é alemão, ele fala português de um jeito engraçado, mas estou irritada no momento para achar lindo.

— Não, não, nada disso, desculpe eu só fiquei..., — faz uma pausa interrompendo o que ia dizer. — desculpe-me sentar no seu lugar, eu quis falar com a senhorita antes, e pedir que o cedesses a mim, mas não puderam pôr-nos em contacto desse modo decidi aguardar aqui, a sua chegada e fazer isso pessoalmente.

— Se você faz tanta questão de sentar a janela, por que não fez tal reserva? — Ele abre a boca de modo a responder-me, mas não diz nada. — Vamos fazer assim, você ajuda-me pondo as minhas coisas no compartimento, já estou um tempinho em pé, estou cansada e...

— Sim, claro, desculpe-me, me distraí com…, dê-me cá — intervém de rompante cortando a minha fala, se levanta e recebi-me as pequenas bagagens.

— Por favor, cuidado e obrigada.

— Já agora sou o Tobias — estende a sua mão enorme para mim. Enquanto correspondo aperto-a firme verificando os seus dedos compridos, e os braços forte e bem definido na t-shirt polo de cor branca.

— Está tudo bem? — indaga confuso com a expressão triste no meu rosto.

— Não, quer dizer sim, só me lembrei que preciso ir ao WC antes que nos mandem apertar os cintos novamente.

O avião inicia movimentos de descolagem, o medo invadi-me e os batimentos do meu coração vão acelerando e começo a revirar-me aflita no meu lugar. Ele intervém e tenta ajuda-me, retira a minha mão da sua — com o susto cravei as minhas unhas nele — e a segura firme, me passando algum tipo de segurança.

— Senhorita está tudo bem, olha para mim, respire devagar, se concentra na respiração, — diz ele, fazendo os mesmos movimentos respiratórios que eu —, inspire e expira, isso mesmo, continue, inspira, expire.

— Está tudo bem, não precisa se preocupar…, — olha de relance ao ferimento e tranquiliza-me.

— Por favor, me dê a sua mão, — peço quase como uma ordem. — Espero que isso não lhe cause nenhum problema. — digo, limpo o ferimento e depois ponho o adesivo.

O homem faz algumas caras e bocas assim que ponho o desinfetante, e logo abri um sorriso frouxo quando olha o adesivo colorido de borboleta que cobre o arranhão.

— Desculpa, só tenho estes, — sussurro, quando percebo o porquê do seu sorrisinho.

— Não, tudo bem, a minha menina vai amar quando vir isto.

Arregalo os olhos confusa, tentando imaginar uma lógica para uma mulher amar um arranhão na mão do namorado ou esposo que ela não tenha feito.

— Acredito que qualquer mulher desconfiaria disso, mas como não tenho uma, não preciso preocupar-me. Referia-me a minha filha — responde com um certo brilho no olhar.

***

No banco da frente há uma senhora com bebé parece ter uns seis meses e no banco a frente deles um senhor com uma menina de rosto angelical que aparenta ter quatro anos. Acho acredito ser o esposo e filha da senhora pelo jeito que olham para o bebé que por algum motivo alheios aos pais chora compulsivamente e, não conseguem acalmá-lo. Uma das hospedeiras de bordo vem saber se eles precisam de algo que pode fazer o bebé parar de chorar. Levanto-me e vou ajudá-los, não tenho filho, mas levo jeito com crianças, já cuidei de muitas das mais calmas as mais irritantes.

— Oi tudo bem? Eu sou Tchissola é a primeira viagem com ele? Aproximo-me da senhora, que balança o bebé de um lado para outro.

— Sim, não sei o que se passa, talvez seja por isso.

— Posso tentar? Estendo as minhas mãos para o bebé

— Oi pequeno príncipe, que foi diz para titia.

O bebé olha para mim que faço algumas brincadeiras, hesita um pouco, mas logo se j**a nos meus braços. Minutos após balançá-lo e fazer brincadeira, o bebé sorri.

— Muito obrigada pela gentileza e bondade, ele nunca teve uma crise de chora assim, — olha para o marido que num movimento com a cabeça confirma o que ela diz.

— Ah, não fiz nada de mais, é como disse para o.… já agora como ele se chama? — Pergunto olhando para a menina.

— Oliver e, sou a Olivia — sorri e me estende a sua pequena mão.

— Que nomes lindos combina com esses rostinhos fofos e angelicais — dou um aperto carinhoso nas suas bochechas. — Sou a tchissola.

Após receber o cartão de visita do pai do bebé, prometendo contacta-lhes, volto para o meu lugar.

— Você foi incrível e o bebé parecia entender o que dizias, tens filhos? — quebra o silêncio que durou alguns segundos.

— Então você estava nos observando, hein? — olho-o de soslaio.

— Eu e todos os outros passageiros, — faz um círculo no ar com o indicador da mão esquerda. — Foi realmente muito simpático da tua parte ajudar estes senhores, Tchissola.

Sorri.

Que sorriso lindo.

— Não foi nada, e não, não tenho filhos, mas amo crianças e já cuidei de muitas, por isso sei lidar com elas, e ele só estava assustado assim como eu.

— E você pretende ter filhos? — Indaga interessado numa resposta.

— Sim, claro — respondo fitando um ponto vazio.

Sou não o farei da forma convencional.

Ele olha-me confuso, mas por algum motivo não aprofunda mais este assunto, pula para outro. Quando dou por mim, já conversamos, a horas.

Tudo flui naturalmente, começamos com o assunto de bebés e fomos para trabalhos e objetivos. Conto para ele sobre querer alavancar a minha carreira como ‘designer’ gráfica e fotografa. E ele conta-me que trabalha com publicidade e ‘marketing’ e que esteve em Angola num evento internacional de empreendedorismo organizada pela filial da empresa onde trabalha.

— Isso significa que devo deixar-te dormir? — questiona ao ver-me bocejar.

— Desculpe, mas estou mesmo cheia de sono, e você também precisa dormir, ainda nos faltam umas 10 horas de voo, — levo a mão a boca abafando mais um bocejo.

Apesar de estar a morrer de sono, resolvo registar os últimos acontecimentos no meu diário confidente que eu mesma fiz. O ‘design’ é lindo, a capa é dura aveludada, com a imagem de uma mariposa, com as cores degrade, rosa, azul e amarela. O diário é todo revestido dando-lhe um efeito de pequena bolsa com zíper. Acabo por adormecer, e ao virar-me para o lado o diário cai do meu colo e nem dou por isso.

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