Fernanda Castellane;A casa está cheia. E eu nem tinha me tocando a saudade que tinha disso.O som das vozes misturado às risadas, os passos apressados dos gêmeos correndo pelo corredor com Pietro atrás deles, tentando manter o tom sério enquanto esconde o sorriso… tudo isso aquece a minha pele, o peito, o estômago. É como se, finalmente, essa casa grande e silenciosa tivesse encontrado alma.Gabriel repousa no colo da minha mãe, Cristiane, que o embala com um movimento suave e constante, como quem já nasceu sabendo como fazer isso. Ela murmura baixinho uma antiga canção de ninar, a mesma que cantarolava pra mim quando eu era pequena e tinha pesadelos.Luciana, com os cabelos presos em dois coques meio tortos, sorri encantada. Seus olhos brilham ao ver Gabriel se mexer, e suas mãozinhas expressivas se movem no ar, contando uma história muda que só ela compreende por inteiro. Ao lado, Luciano está debruçado sobre uma caixa de brinquedos, mergulhado no próprio universo de descobertas, c
Fernanda Castellane:Gabriel já está dormindo.O peito de Pietro sobe e desce devagar enquanto ele permanece parado ao lado do berço, os olhos fixos no rostinho tranquilo do nosso filho. Ele o observa como se estivesse tentando memorizar cada traço, como se quisesse eternizar aquele momento na mente. E talvez queira.Eu estou escorada no batente da porta, exausta. Não tanto mentalmente quanto fisicamente. O cansaço pesa nos ombros, nos pés, nas pálpebras. Mas o peso maior ainda é o que ficou de Tiago. Pensar nele me deixa com o coração apertado. Triste. Ferida.Mas mesmo assim... não trocaria este momento por nada no mundo.Pietro fecha cuidadosamente o mosquiteiro do berço e então se vira. Quando seus olhos encontram os meus, algo muda no ar. Seus passos são silenciosos, firmes. Ele caminha até mim, e suas mãos grandes pousam com gentileza nos meus quadris, consigo sentir o calor de suas palmas.Seus olhos se prendem aos meus, e por um instante, não existe nada além daquele olhar.— A
Fernanda Castellane:O hospital está especialmente frio hoje. Não sei se é o ar-condicionado mais forte ou o fato de eu estar sentada diante da mulher que mais me despreza nesse mundo.Paula Castellane.Minha sogra.Ela está posicionada exatamente como gosta: de frente para mim, com a postura ereta e o queixo levemente levantado, como uma rainha prestes a julgar sua serva. Nem a cadeira de rodas diminui a imponência que ela faz questão de exalar. Seus olhos, frios como aço polido, me observam como se eu fosse um erro de cálculo que ela ainda não entende como foi cometido.A tensão entre nós é quase palpável.— Como tem passado, minha sogra? — pergunto com a voz suave, o sorriso no rosto tão falso quanto o dela sempre foi. A curva de deboche nos meus lábios é medida, estratégica. Quase teatral.Ela ergue uma sobrancelha, bufa. Com desdém.É querida, você não é a única que sabe sorrir com falsidade — sorrio internamente com o pensamento.— De cadeira de rodas — ela responde com secura,
Fernanda Castellane:Termino de enfaixar a mão de Pietro com cuidado, tentando não apertar demais, mas também não deixar frouxo. A gaze já está avermelhada nas pontas e a respiração dele segue pesada, silenciosa, como se cada inalação carregasse muito mais do que oxigênio. O cheiro de antisséptico ainda paira no ar, misturando-se ao nosso silêncio pesado.Ele não fala nada.E eu não pergunto.Não agora.Termino de prender a faixa no pulso dele com um grampo, solto um suspiro baixo e me afasto um pouco para observar o estrago. Seus dedos ainda estão inchados, as articulações vermelhas. A parede atrás de nós carrega as marcas de sangue seco e rachaduras no gesso.A angustia e raiva estão estampadas em sua cara, me apertando o peito. Ergo a mão, quero fazer carinho nele, para que ele se sinta melhor, mas, antes que eu possa realizar meu objetivo, o som do choro de Gabriel ecoa pela casa, cortando o silêncio, mesmo sendo um som frágil, quase sumido.— Fique aqui, Pietro. Eu vou olhar ele
Fernanda Mendonça:Concentre-se Fernanda. Você já passou por várias simulações na faculdade, respire fundo e ajude! — Pressão arterial subindo! — A voz da enfermeira corta o ar, carregada de tensão.— Precisamos acelerar — a obstetra declara, sua postura rígida transparecendo a gravidade da situação. Ela se volta para o anestesista. — Ela está estabilizada o suficiente?— Podemos começar — o anestesista responde com um breve aceno, embora o nervosismo esteja evidente em sua voz.Meu coração parece pular do peito quando o bisturi na mão da doutora reluz sob a luz fria da sala. O ambiente ao meu redor parece diminuir, cada som ampliado como se estivesse dentro de uma bolha prestes a estourar.Droga! A simulação nunca é como a vida real.A obstetra começa a incisão, suas mãos rápidas e precisas. O sangue surge na pele pálida da paciente, e o som dos instrumentos sendo passados de mão em mão enche a sala, um ritmo quase hipnótico.— Chegando na cavidade uterina — informa a Dra.Sinto o s
Pietro Castellane:— Sei que o momento é delicado para o senhor — minha secretaria começa. — Mas os novos estagiários chegaram ontem, você ainda não se apresentou a...A frase dela é interrompida pelo som agudo do meu celular vibrando em meu bolso.— Um momento, Emile — tiro o aparelho do bolso e vejo o nome da médica da minha esposa na tela. Meu coração acelera. — O que aconteceu? — Atendo imediatamente, minha voz soando mais firme do que me sinto por dentro.O silêncio do outro lado dura uma fração de segundo, mas é longo o suficiente para que meu estômago se contraia em um nó.— Senhor Castellane, o estado da sua esposa piorou. A pressão dela está perigosamente alta. Precisamos fazer o parto de emergência agora. Não há tempo, ou perderemos os dois.O peso das palavras atravessa o meu peito como um soco. A sala ao meu redor desaparece em um turbilhão de vozes abafadas e formas indistintas, como se o mundo tivesse perdido o foco. A única coisa que ouço, clara como um trovão, é o som
Pietro Castellane:Ela está pálida, o rosto marcado por uma expressão que mistura cansaço, nervosismo e algo mais... culpa? Por um instante, fico paralisado pela surpresa de vê-la ali, mas a preocupação com Marina e o bebê rapidamente me tira do transe.— Minha esposa... — meus olhos caem para suas mãos cheias de sangue.Ela respira fundo, os lábios se comprimindo como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado. O silêncio dela é ensurdecedor.— Seu filho... — ela começa, a voz baixa e hesitante. — Ele nasceu. Está na UTI neonatal agora. Mas...Meu mundo gira. A palavra "mas" ecoa na minha mente como uma sentença. Minha garganta aperta, e preciso reunir todas as forças para perguntar:— E Marina? Ela está bem?Fernanda desvia o olhar, os olhos brilhando com lágrimas não derramadas. Meu coração para. Cada músculo do meu corpo fica tenso, esperando pelo golpe.— Eu sinto muito, Pietro. Fizemos tudo o que pudemos... — ela diz, e sua voz falha no final.As palavras me atingem como um
Pietro CastellaneObservo a noite lentamente se render ao dia através da grande janela da minha sala no Vivaz. O céu, antes carregado de escuridão, ganha nuances de rosa, anunciando o nascer do sol. A luz tímida atravessa o vidro, mas não aquece. Não consigo sentir nada.Deslizo o jaleco pelos ombros, ajustando-o com gestos automáticos. Meus movimentos são precisos, mas vazios.Desço os corredores do hospital como se estivesse no piloto automático, cumprimentando rostos que não registro.Não sinto sono.Não sinto fome.Não sinto sede.Só existe uma coisa na minha mente, um único propósito que ainda me faz colocar um pé à frente do outro.Eu só quero ver o meu filho.O silêncio da ala neonatal é sufocante, quebrado apenas pelo som constante dos monitores. Meu olhar está fixo no pequeno corpo do meu filho dentro da incubadora, tão pequeno que parece que vai desaparecer a qualquer momento.As luzes frias da sala acentuam sua pele translúcida, cada batida do coração dele registrada no mon