Sou recebido em casa pelo cheiro de bolo.Que saudade disso.O aroma é doce, envolvente, carrega lembranças que eu nem sabia que tinha. Madeira morna, mel, massa assando no forno. É o cheiro de casa. O cheiro de acolhimento.Zoe passa por mim em um movimento ágil, se transformando em segundos. A luz da manhã ainda toca sua pele por um breve momento antes que os pelos brancos surjam, suaves como neve ao vento. Seu corpo muda com facilidade, naturalidade. Ela já domina essa parte de si com leveza. Isso é bom. Muito bom.Significa que minha lobinha está cada vez mais preparada. Treinada. E que sua loba já se tornou parte dela. Um com ela. Assim como meu lobo e eu somos um só.Ela avança até a porta com aquele jeito leve e determinado, e antes que eu possa me aproximar, já a ouço girar a maçaneta.A porta se abre e, imediatamente, gritos felizes invadem o ar.— Minha filha! — a mãe dela diz, com a voz embargada de emoção.— Você voltou! — Gabi completa, correndo para abraçá-la.As três se
Sento-me novamente, aceitando a xícara de chá que a mãe de Zoe me oferece. A mesa está coberta com rosca, bolo, geleias caseiras e pão de mel ainda morno. O cheiro é acolhedor, e o calor do ambiente só não é maior do que o das risadas que já ecoam pela sala.Zoe se acomoda ao meu lado, e Gabi já está a mil, falando como se tivesse guardado a semana inteira dentro da garganta.— Vocês não têm noção do que foi isso aqui! — ela começa, toda animada. — Uma das cabras fugiu do cercado e foi parar no telhado da casa da Dona Cida. Juro. No telhado.— No telhado? — Zoe arregala os olhos. — Como isso é possível?— Eu também queria entender! Mas acho que aquele bode de olhar cínico ajudou. Conspiração pura. Dona Cida achou que era sinal da Deusa e tentou amarrar um lenço na cabeça da cabra.— Não acredito — Zoe leva a mão à boca, rindo.— E quando fui ajudar, ela tentou me expulsar com um ramo de alecrim — completa Lord, com a expressão mais séria do mundo, como se fosse rotina.— Isso acontece
— Algo que eu precise saber enquanto estive fora?Minha voz quebra o silêncio do escritório, preenchido apenas pelo som do vento lá fora batendo contra as janelas e do estalar da madeira nas paredes. A luz do fim da tarde invade o cômodo de forma suave, deixando tudo dourado e calmo — uma calmaria que parece temporária. Ao meu lado, Lord mantém a postura firme, os olhos fixos nos papéis à sua frente. Mas sei que ele está só esperando o momento certo para dizer o que realmente quer.— A aldeia se manteve tranquila — responde, finalmente. — Nos limites da cidade também. Ninguém cruzou os territórios e nenhuma movimentação suspeita foi notada.Assinto em silêncio. Já era o esperado. Com tantos olhos atentos e uma tensão rondando cada centímetro do nosso território, seria quase impossível que algo passasse despercebido. Ainda assim, fico aliviado em ouvir da boca dele.— As pessoas estão ansiosas para o Fisp — completa, cruzando os braços e me lançando um olhar de lado. — Alguns já começa
— Você está certo em protegê-la, Lord. A dor de perdê-la ou vê-la sofrer de novo seria muito maior do que a culpa de deixá-la fora dessa missão.Ele respira fundo, o maxilar tensionado.— Eu só quero que ela fique segura. Que ela se recupere. Que tenha tempo de descobrir a força que tem. Sem mais cortes, sem mais cicatrizes. Mesmo que isso seja irreal, sei que nunca vai parar de doer nela e em mim.Assinto, compreendendo mais do que palavras podem explicar.— Eu também tentei convencer a Zoe a não ir — confesso. — Ela precisa disso. Precisa encarar o pai, se o encontrarmos. Olhar nos olhos dele e entender tudo o que foi escondido por tanto tempo. É o tipo de coisa que define quem a gente vai ser daqui pra frente.— Ela vai liderar a alcateia ao seu lado — diz ele, com firmeza.— Sim. E por isso precisa estar preparada.O silêncio se instala entre nós por alguns instantes. Não um silêncio desconfortável, mas daqueles carregados de entendimento. Ambos sabemos o peso do que estamos prest
Desde que me entendo por gente, há tinta preta espalhada pelo meu corpo. Os anciãos dizem que estou destinada ao mais poderoso dos alfas, pois jamais viram marcas tão extensas quanto as minhas.Quando uma fêmea nasce destinada a um alfa, ela carrega uma marca — quase como uma tatuagem. Quanto maior a marca, mais forte o lobo que a reivindicará. As minhas se espalham por toda parte, cobrindo minha pele como um mapa do destino. Apenas meu rosto ficou imaculado, mas o resto... cada centímetro carrega o sinal da minha sina.Eles podem nos sentir assim que completamos vinte anos. Seguem nosso rastro, atravessam matas e montanhas para nos levar para sua alcateia. Hoje é minha vigésima volta ao sol. O dia em que encontrarei meu lobo.O dia em que finalmente aprenderei a me transmutar.O dia em que verei minha outra forma pela primeira vez.Mal posso esperar pela lua. Sinto a impaciência pulsar em meu peito. Quero que ela suba depressa no céu, que banhe a terra com seu brilho prateado e traga
O cheiro dela.Forte. Viciante.Está me deixando louco. Transtornado.Na forma humana, ainda consigo conter meus instintos. Agora? É impossível. Meu lobo ruge dentro de mim, exigindo que eu me aproxime, que tome o que é meu. Mas não posso. Preciso lembrar por que não podemos tê-la, por que devemos protegê-la até de nós mesmos. Mas de nada adianta. Minha fera já decidiu. Ela nos pertence. E vamos tomá-la.O aroma dela se espalha pela floresta densa e escura, infiltrando-se em cada fibra do meu ser. O ar da noite está carregado, pesado, e a lua cheia brilha entre as copas das árvores, testemunha silenciosa do que está prestes a acontecer. Meu corpo se tenciona.Rosno. Ciúmes. Ódio.Não sou o único alfa aqui. Não sou o único que sente esse perfume intoxicante. Outros o percebem. Outros o desejam. Mas ela é minha. Sempre foi. Sempre será.O instinto me guia. Meus pés se movem antes mesmo que eu perceba. Avanço sem hesitar, rompendo galhos e folhas secas pelo caminho, até encontrá-la.Ela
Acordo quando o pelo quente e macio onde estou deitada se transforma em algo firme. Um peitoral duro. Muito duro. Meu corpo se ajusta automaticamente ao calor dele, e, por um instante, quase me rendo novamente ao sono. Mas meus olhos, ainda pesados, piscam algumas vezes antes de se abrirem completamente.A claridade suave invade meus sentidos. O cheiro amadeirado do quarto me envolve, misturado ao aroma fresco da natureza que vem da janela aberta. Estou na aldeia dele. Minha aldeia agora. Uma nova casa. Um novo começo.Meu estômago ronca em protesto, e o som quebra o silêncio confortável ao nosso redor. Minha última refeição foi o bolo que minha mãe fez para minha despedida, e a fome já se torna impossível de ignorar. Alex percebe. Seus olhos verdes pousam em mim com intensidade, analisando cada pequeno movimento meu, e então ele se levanta sem pressa. Um momento depois, retorna com uma tigela cheia de frutas maduras.— Coma. — Sua voz é uma ordem, mas há algo mais nela. Um tom rouco,
Alex tem cuidado de mim desde que cheguei. Todas as noites, ele me aquece com seu corpo em forma de lobo, envolvendo-me em sua pelagem espessa e quente. Seu cheiro me cerca, e o calor dele penetra minha pele, me embalando no sono. No começo, era estranho. Mas agora, é um conforto silencioso, um lembrete constante de que ele está aqui, de que sou sua.Mas algo mudou nos últimos dias.Sinto que ele está mais distante. Não fisicamente. Ainda está ao meu lado, ainda me protege, mas há um espaço invisível entre nós. Algo na maneira como me olha… Como se lutasse contra si mesmo. Como se quisesse se aproximar e, ao mesmo tempo, estivesse determinado a se manter longe.Minhas marcas estão apenas mornas agora. Sua proximidade constante impede que queimem como antes, mas o inverno e o cio ainda não chegaram. E se, quando chegarem, ele continuar assim?A inquietação me acompanha enquanto caminho pela aldeia. Minha aldeia. Os membros da alcateia foram acolhedores, me aceitaram como se eu sempre t