Helena despertou com o som de algo sendo mexido na cabana. Sua mente ainda estava enevoada pela exaustão da noite anterior. Os últimos acontecimentos passavam em sua mente como flashes: a fuga desesperada, a queda no abismo, o encontro com Erik… e, claro, aquela mordida que ainda ardia em seu pescoço.
Ela abriu os olhos lentamente, encontrando a luz suave da manhã que entrava pelas frestas das janelas. O som era rítmico, como alguém cortando ou esmagando algo. Ao erguer-se da cama improvisada de peles, viu Erik próximo à lareira, mexendo em um pote sobre as chamas.
Ele estava sem camisa, as costas largas e musculosas iluminadas pela luz da manhã. Seus movimentos eram metódicos enquanto ele triturava algo em uma tigela.
— Está me observando? — A voz rouca de Erik cortou o silêncio, surpreendendo-a.
Helena corou, desviando o olhar rapidamente.
— Você estava fazendo barulho. Foi o que me acordou.
— Bom. Precisamos conversar, de qualquer forma. — Ele não olhou para ela, continuando a misturar o conteúdo do pote.
— Sobre o quê? — Helena perguntou, cruzando os braços e se levantando.
— Sobre onde você está. E por que não há como voltar. — A resposta dele foi direta, mas o tom era calmo, quase indiferente.
Helena sentiu um aperto no peito ao ouvir aquilo. Ela caminhou até a mesa onde ele trabalhava, percebendo que ele cortava ervas e pedaços de algo que parecia carne.
— O que quer dizer com “não há como voltar”? — sua voz vacilou.
Erik finalmente parou o que fazia, erguendo os olhos dourados para ela.
— Eryndor não é o tipo de lugar que permite escapatória, Helena. Você caiu aqui, como tantos outros antes de você, mas sair… — Ele balançou a cabeça, voltando sua atenção para o que fazia.
— Não pode ser impossível — ela insistiu. — Deve haver um caminho, algum portal ou…
— Esqueça. — Ele a interrompeu, o tom firme. — Quanto mais cedo aceitar isso, mais fácil será.
Helena sentiu uma onda de frustração.
— Você está me dizendo que estou presa aqui para sempre?
Erik deu de ombros.
— Presa, livre… depende de como você vê as coisas.
Ela se aproximou mais, forçando-o a encará-la.
— Por que você não me conta logo o que está acontecendo? O que é este lugar? O que você é?
Ele suspirou, como se ela estivesse sendo inconveniente, mas finalmente colocou o que fazia de lado e sentou-se em uma cadeira próxima à lareira. Ele gesticulou para que ela se sentasse na cadeira oposta.
— Certo. Você quer saber sobre Eryndor? Vou lhe contar. Mas preste atenção. — Seus olhos fixaram-se nos dela com intensidade.
Helena sentou-se, hesitante, mas ansiosa por respostas.
— Este lugar é um mundo entre mundos. Nem completamente humano, nem divino. Eryndor é o lar daqueles que foram amaldiçoados por Aurinia, uma deusa que governava os limites entre o humano e o animal.
— Aurinia? Nunca ouvi falar dela. — Helena franziu o cenho.
Erik inclinou a cabeça, o traço de um sorriso surgindo em seus lábios.
— Isso não me surpreende. Ela foi esquecida pelos humanos há séculos. Mas antes disso, Aurinia era adorada por sua habilidade de controlar o equilíbrio entre o instinto animal e a racionalidade humana.
Helena se inclinou para frente, intrigada.
— E o que aconteceu?
Erik olhou para o fogo, sua expressão endurecendo.
— Os homens de um plano superior a desafiaram. Eles acreditavam que estavam acima das leis da natureza, acima da própria deusa. Aurinia, em sua ira, os condenou a viver como aquilo que mais desprezavam: animais. — Ele voltou os olhos para ela. — Mas não apenas isso. Ela os tornou transmorfos, presos entre duas formas, incapazes de escapar completamente da natureza animal.
Helena sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
— Então todos aqui… são amaldiçoados?
— Sim. Todos nós carregamos o peso da ira de Aurinia. Humanos que ousaram se julgar deuses.
Ela o olhou com atenção, tentando processar tudo aquilo.
— E você? — sua voz era quase um sussurro.
Erik sorriu, mas o sorriso não alcançou seus olhos.
— Eu? Sou um lobo. Mas acho que você já percebeu isso.
Helena sentiu o peso das palavras dele, mas não conseguiu evitar a pergunta que queimava em sua mente.
— E essa marca? Por que você me marcou?
Erik pareceu hesitar por um momento antes de responder.
— A marca é uma ligação. Um vínculo que impede que você seja reclamada por outra criatura. Este lugar… é perigoso para alguém como você, Helena.
— Alguém como eu? — ela perguntou, confusa.
Ele se levantou, caminhando até a lareira e pegando a tigela com a mistura que preparava.
— Você não é apenas uma humana comum. Ainda não entendeu isso? Este lugar te chamou por um motivo.
Helena ficou em silêncio, tentando encontrar sentido nas palavras dele.
— Então você me marcou para me proteger? — Ela perguntou, desconfiada.
Erik riu, um som rouco e quase sombrio.
— Vamos dizer que foi um benefício mútuo.
Helena sentiu o rosto esquentar, mas antes que pudesse responder, ele colocou um prato simples com comida à sua frente.
— Coma. Você vai precisar de forças.
Ela olhou para o prato, percebendo que, apesar de tudo, estava faminta. Enquanto comia, o silêncio entre eles era preenchido apenas pelo crepitar do fogo.
— E quanto a Aurinia? Ela ainda está por aí? — Helena finalmente quebrou o silêncio.
Erik a olhou por um longo momento antes de responder.
— Alguns dizem que ela ainda observa este mundo, esperando por algo… Ou alguém.
Helena franziu o cenho, uma sensação estranha crescendo dentro dela.
— Eryndor é cheio de segredos, Helena. — Erik inclinou-se para frente, os olhos brilhando à luz do fogo. — Mas não se preocupe. Você ainda vai descobrir cada um deles. Se sobreviver, é claro.
Ela sentiu um arrepio, mas não desviou o olhar. Algo naquele homem, ou melhor, naquele lobo, era ao mesmo tempo ameaçador e irresistivelmente magnético. E, mesmo contra sua vontade, ela sabia que estava presa a ele.
Terminando de mastigar, ela ergueu os olhos para Erik, que ainda a observava com aquela intensidade enervante.
— Certo… Você diz que este lugar é perigoso para alguém como eu. — Ela apoiou os cotovelos na mesa, a curiosidade crescendo. — Mas o que exatamente está lá fora? Que tipo de outros… Seres existem em Eryndor?
Erik soltou uma risada baixa e sombria, inclinando-se contra o encosto da cadeira com um ar de quem apreciava a pergunta.
— Eryndor é um lugar onde as regras da sua antiga realidade não se aplicam. Aqui, cada maldição de Aurinia tomou sua forma única. Não são apenas lobos como eu. Há felinos, serpentes, aves de rapina…
— Todos eles transmorfos como você? — Helena interrompeu, os olhos arregalados.
— Em parte. — Ele inclinou a cabeça para o lado, o olhar se estreitando. — Nem todos conseguem controlar a transformação como eu. Alguns perdem a humanidade completamente e vivem como bestas. Outros vivem no limite, instáveis, perigosos… Especialmente para forasteiros como você.
Helena engoliu em seco, mas tentou manter a expressão neutra.
— E eles me atacariam porque sou uma humana?
— Não é só isso. — Erik sorriu de lado, mas havia algo frio naquele gesto. — Você é diferente, Helena. Algo em você atrai esse lugar, e os outros vão sentir isso. Eles vão querer você.
Ela sentiu o estômago afundar, mas forçou-se a manter a voz firme.
— E você? Você também me quer?
O sorriso de Erik sumiu, e ele a encarou com seriedade.
— Eu já te marquei. Isso deveria ser resposta suficiente.
Ela abriu a boca para responder, mas ele ergueu uma das mãos, cortando-a antes que pudesse dizer algo.
— Vou te dar um conselho. Não se preocupe com quem quer ou não quer você. Apenas mantenha distância de qualquer coisa que não seja eu.
Helena arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços.
— Ah, claro. Porque você é tão confiável assim.
Ele riu, o som baixo e perigoso.
— Não sou. Mas, neste mundo, sou a única chance que você tem de sobreviver.
Erik sabia mais sobre Eryndor do que ela, e se quisesse viver, precisaria manter-se perto dele. Pelo menos por enquanto.
Capítulo 4O calor da lareira dançava nas paredes da cabana enquanto Helena tentava processar tudo que Erik havia lhe contado. Mas antes que pudesse organizar seus pensamentos, o som distante de algo rompendo a calma do bosque chegou até seus ouvidos. Erik, no entanto, congelou imediatamente. Sua postura relaxada desapareceu, e seus olhos dourados brilharam com uma intensidade feroz.— O que foi isso? — Helena perguntou, sentindo um calafrio percorrer sua espinha.Erik ergueu uma mão, pedindo silêncio, e inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, como se estivesse escutando algo que ela não conseguia ouvir. Ele se moveu com a precisão de um predador, atravessando a sala até uma janela pequena e entreaberta. Do lado de fora, a floresta parecia inerte, mas o brilho nos olhos dele indicava que algo estava errado.— Fique aqui. — Ele murmurou, sem sequer olhar para ela.— O quê? Não! O que está acontecendo? — Helena protestou, mas ele já estava pegando uma espada curta que estava apoiada
Capítulo 5 Helena estava ajoelhada no chão da cabana, segurando uma tigela de água morna e um pano limpo. A luz da lua entrava pela janela, iluminando a silhueta de Erik, que estava sentado em uma cadeira com a camisa rasgada, expondo os cortes e hematomas da batalha contra os caçadores. — Você precisa ficar quieto, ou isso vai piorar. — Ela disse, molhando o pano e começando a limpar um dos cortes em seu ombro. Erik soltou um grunhido, mas não se moveu. — Não estou reclamando, estou? Helena revirou os olhos, mas continuou o trabalho. Os cortes não eram tão profundos, mas os hematomas ao redor mostravam que os golpes tinham sido brutais. — Sabe, eu ainda não entendo por que eles ajudaram você naquela hora, mas depois foram embora. Não parecia que gostavam de você, mas também não pareciam dispostos a te abandonar. — A voz dela carregava curiosidade, mas também uma pitada de cautela. Erik ficou em silêncio por alguns segundos, observando-a trabalhar. — Eles não estavam lá por mi
Capítulo 6O silêncio da cabana era preenchido apenas pelo estalar ocasional do fogo na lareira. Erik estava sentado na mesma cadeira de madeira, o torso exposto e os braços apoiados nos joelhos. Observava Helena enquanto ela separava as ervas que ele havia indicado. Ela parecia concentrada, as sobrancelhas franzidas levemente, os lábios pressionados enquanto mastigava uma dúvida interna.Ele tentou ignorar o modo como o cheiro dela preenchia o espaço, mas era inútil. Aquele aroma era doce e inebriante, misturando algo familiar e antigo, como se evocasse memórias de uma vida que ele nunca teve. O lobo dentro dele rosnava de forma incessante, quase delirante."Toque-a de volta.""Ela nos pertence.""Por que está tão longe? O cheiro dela é nosso."Erik apertou os punhos, respirando fundo.— Você está quieto demais. — Helena comentou, a voz cortando o ar. Ela ergueu os olhos para ele, segurando uma tigela com as ervas que havia esmagado. — Está com dor?Ele inclinou a cabeça, tentando pa
Capítulo 7 A noite envolvia a cabana como um manto silencioso. O vento passava pelas árvores ao redor, sussurrando segredos esquecidos de um mundo condenado. No interior, a luz fraca do fogo lançava sombras oscilantes nas paredes de madeira rústica. Helena estava deitada sobre a cama improvisada de peles, sentindo o calor da fogueira acariciar sua pele. Ainda estava acordada, os pensamentos girando sem descanso. Ao seu lado, Erik repousava, ou pelo menos fingia. Seu corpo era uma presença sólida e quente, um lembrete constante de tudo o que havia mudado desde que ela chegara a Eryndor. O silêncio entre eles não era incômodo, mas carregado de perguntas não feitas. Finalmente, Helena rompeu a barreira do silêncio. — Você sabia, não sabia? — Sua voz soou baixa, hesitante. Erik abriu os olhos dourados, virando levemente a cabeça para encará-la. — Sobre o quê? — Ele perguntou, embora soubesse exatamente do que ela falava. Ela se virou para o lado, ficando de frente para ele.
Capítulo 8O amanhecer trouxe consigo uma névoa fina que se erguia dos campos ao redor da cabana. O ar estava fresco, carregado com o cheiro úmido das folhas e da terra. Helena puxou a manta ao redor do corpo, sentindo um arrepio que não vinha apenas do frio.Erik já estava de pé. Observava a clareira diante deles, os braços cruzados sobre o peito forte. Seus olhos dourados captavam cada movimento ao redor, como se estivessem sempre em alerta. Quando percebeu que Helena se aproximava, virou-se para ela com um meio sorriso.— Está pronta? — Ele perguntou, a voz rouca pelo frio da manhã.Helena hesitou por um momento, mas assentiu. Se quisesse sobreviver em Eryndor, precisava aprender.Erik levou-a até um espaço aberto entre as árvores, onde a grama era baixa e o solo firme. Ele girou uma pequena adaga entre os dedos e a entregou a ela.— Primeira lição: nunca confie apenas na magia. O corpo também precisa saber lutar.Helena segurou a lâmina, sentindo o peso frio em sua mão. Parecia pe
Capítulo 9A noite já havia se instalado sobre Eryndor, e a única luz que iluminava a clareira era a fogueira crepitante diante de Helena e Erik. O calor da chama pintava sombras no rosto dele, acentuando os contornos fortes de sua mandíbula e a intensidade dourada de seus olhos.Helena ainda sentia o peso do treinamento do dia em seus músculos, mas sua mente estava inquieta. Havia algo que não saía de sua cabeça desde aquele momento mais cedo, quando a pele de Erik roçou contra a sua e seus dedos deslizaram instintivamente até a marca no pescoço dele.Ela nunca havia reparado de verdade naquilo antes. Sim, já tinha visto a marca algumas vezes, mas nunca prestara atenção. Agora, porém, sentia que algo estava diferente… Ou talvez fosse apenas a forma como Erik reagira ao seu toque.Ela observou Erik pelo canto do olho. Ele parecia concentrado no fogo, mas algo em sua postura indicava que ele também estava imerso em pensamentos.Helena mordeu o lábio, reunindo coragem antes de perguntar
Capítulo 10A tensão entre eles ainda pairava no ar quando Erik virou bruscamente a cabeça, seu corpo inteiro se enrijecendo. Helena seguiu seu olhar para a escuridão da floresta, mas tudo o que viu foi a silhueta retorcida das árvores.— Erik? — Sua voz saiu baixa, mas cheia de alerta.Ele ergueu a mão, pedindo silêncio. Seus olhos dourados estavam fixos em um ponto além da névoa rasteira. Então, ele sussurrou:— Eles estão aqui.O sangue de Helena gelou.— Os caçadores?Erik assentiu lentamente, sua expressão sombria.— São pelo menos cinco. Eles estão nos cercando.O coração de Helena martelava. Ela se levantou de um salto, sentindo o corpo ainda dolorido do treinamento.— E agora? Fugimos?— Se ficarmos, teremos que lutar. Mas se corrermos… — Ele inspirou fundo, analisando a situação. — Podemos ter uma chance de despistá-los antes que nos alcancem.Helena não hesitou.— Então corremos.Sem mais uma palavra, Erik segurou sua mão e puxou-a consigo para dentro da floresta. O mundo ao
Capítulo 1Helena corria desesperada pela floresta, tropeçando nas folhagens e nos galhos escondidos entre elas. Suas mãos e joelhos estavam esfolados e doloridos, pois os usava para se apoiar cada vez que caia. Apavorada, levantou apressada na expectativa de não ser alcançada. Ela podia escutar nitidamente as vozes masculinas que se aproximavam dela.— Você não pode fugir para sempre, garota! — Um deles gritou, a voz rouca com crueldade transparecendo em seu tom de voz.Helena não olhou para trás. Ela sabia que, se parasse, seria o fim. O medo a corroía por dentro, e o terreno traiçoeiro da floresta começava a cobrar seu preço. Seus pés descalços estavam feridos, os galhos rasgavam sua pele, mas ela não desistiria. Continuaria correndo.— Apenas parem! Por que estão fazendo isso comigo? — Ela gritou, mais para o vazio do que para os homens que a perseguiam.Nenhuma resposta veio além de risadas sinistras.Mais uma vez, Helena tropeçou em uma raiz exposta, caindo de joelhos. Suas mãos