Mais Uma Chance
Mais Uma Chance
Por: Beatrice Ramos
Capítulo 1

Dorotéia

Espreguiço-me na cama e a maciez dela é um apelo para que eu permaneça mais um pouco.

Infelizmente, dormir até tarde não está em meus planos. Não hoje.

Passo a mão na minha cabeleira desgrenhada tentando me lembrar quando foi a última vez que fui ao cabeleireiro. E isso deve-se ao fato de que o professional hair — como Tadeu gosta de ser chamado —, ter uma fixação pelo meu cabelo que não passa do meio das costas. O único pretexto que ainda me faz frequentar seu estabelecimento, é que além se ser um ótimo profissional na área da beleza, eu sou uma “nada humilde” investidora que apostou nos produtos naturais e manipulados que aquele gato afeminado de roupas extravagantes faz.

Uma pena ele gostar da mesma fruta que eu. Pena mesmo.

Uma das coisas que pensei naquela festa que ele também estava, era que nós dois terminaríamos a noite se comendo por alguma parede da boate, em um motel ou na casa dele.

Na minha? Jamais.

Isso é regra absoluta. Nada de homens em minha casa.

Resultado da minha ilusão veio cinco minutos depois quando ele saiu de mesa em mesa procurando a “Diviníssima Dorotéia Arrais”, pois precisava de um investidor para sua ideia de cosméticos naturais.

Achei ele corajoso e a proposta um tanto fora de rumo, já que aquele ramo não era minha praia. Mas a cara de pidão que ele fez, e o sorriso do gato Cheshire da Alice no País das Maravilhas que Fabi, minha outra amiga exibia, contribuiu para eu dar uma chance ao cara. Afinal, tenho dinheiro de sobra e mais um investimento só viria a calhar.

Hoje, não me arrependo nem um pouco de ter lhe ajudado. Mesmo descobrindo dias depois que ele me procurou por indicação da Fabi, que já frequentava o pequeno salão dele, o retorno veio há pouco mais de um ano após termos feito o acordo, e graças a Deus, está tudo indo de “vento em popa”. Só que fiquei desolada com aquele desperdício de macho que vinha me visitar de vez em quando, e todas as vezes eu ficava impactada com suas roupas coloridas e os óculos, igualmente festivo.

Desenrolando os lençóis das minhas pernas que, insistentemente, noite após noite me embrulho, estando um calor insuportável ou não, levanto-me e puxo o short curto para baixo dizendo ao meu cérebro para não olhar o espelho acima da cômoda e reparar na bagunça que estão minhas olheiras depois de mais uma noite mal dormida.

Vou direto para o banho. A água quente que desce pelo meu corpo curvilíneo, relaxa pouco a pouco os músculos ainda doloridos, resultado de muito Job, ainda como diz Tadeu, que insiste em usar o inglês em quase todas as frases que pronuncia.

No fundo, tenho trabalhado demais e não é só modo de dizer. Ultimamente, fico até mais tarde em uma das principais filiais da Arrais, embora Fabi, Henrique e Carmem insistam constantemente para deixar de correria, ainda não é o momento.

Eu sinto isso.

Tenho certa convicção que sem esforços não há vitórias. Então, continuo minha jornada até que a empresa se mantenha no topo por muito mais tempo.

Eu sei que a sociedade machista ainda insiste com o discurso que nós, mulheres somos um sexo frágil, mas não é assim que as coisas funcionam. A cada dia, mais mulheres estão ocupando cargos que antes eram de exclusividade masculina. Estamos buscando visibilidade, embora seja cansativo, nós mulheres, continuamos a exercer nossos papéis como mães, irmãs e esposas.

Por isso mesmo o peso de minhas responsabilidades como empreendedora — que praticamente vieram de berço com minhas raízes familiares bem fincadas no meio empresarial —, são as mesmas que me fazem acelerar no banho para que eu possa chegar mais rápido na empresa.

A Arrais Motors estar há muito tempo no mercado. Bem verdade que teve seus momentos de desequilíbrio, no entanto, com muito trabalho e dedicação, não só meu, mas de todos os que estão lá desde o início a colocamos de volta nos trilhos.

Antes, a empresa consistia apenas em exportação de peças e produtos para a montagem de carros e motos com serviços de consertos e restauração, feita por uma empresa de minha propriedade, que atualmente também pertence ao grupo Arrais. Hoje em dia, depois da fusão das duas empresas, a Arrais possui um conglomerado de oficinas, além do seu carro chefe, a exportação de peças e até mesmo carros e motos importados.

Eu como herdeira e detentora de setenta por cento das ações da empresa, não poderia deixar de pôr a mão na massa. Aos trinta e dois anos, estou no auge das minhas responsabilidades como engenheira mecânica e empresária de sucesso. Além de ser CEO da Arrais Motors, gerencio uma das oficinas e trabalho diretamente na montagem e consertos.

Sinceramente, não tenho paciência para estar dentro de um escritório. Esse papel ficou para Henrique, meu irmão mais novo. Entretanto, acho que já está passando da hora de voltar à ativa, começando por fazer uma visita surpresa para aquele bastardo mulherengo do meu irmão. Essa visitinha será para eu ver pessoalmente como anda a empresa. Embora eu ache que Henrique não estar magoado por meu sumiço, é só que as vezes me iludo achando que essas visitas esporádicas vão aplacar o incômodo que sinto na consciência por deixar meu irmão, sozinho, cuidando de um império como a Arrais.

Algo que definitivamente não é seu papel, já que ele tem menos pulso firme que eu.

— Dorotéia! — Reviro os olhos para o grito desesperado da Fabi. — Dorotéia! — Mais uma vez ela berra e finjo que não escuto.

Fabi, como gosta de ser chamada, mora comigo desde que me mudei. Mora não, desde que me entendo por gente ela não desgruda de mim.

— Dotiiii! Se você não responder ou abrir essa maldita porta eu nem sei o que faço com você!

Através de uma pequena fresta, vejo sua figura alta e esguia já vestida para o trabalho, de braços cruzados na frente do corpo e batendo o pé freneticamente no chão.

— O que quer, Fabiana Janny de Medeiros? — Enrolo a pronúncia de seu verdadeiro nome na língua pausadamente, apenas para irritá-la.

Ela odeia esse nome, por isso é mais saboroso encher seu saco.

Eu acho até bonito, pitoresco e original. Uma bela homenagem à esposa do Tarzan, feita por sua falecida mãe que era fã do casal. O que, convenientemente, rendeu a mim e ao Henrique ótimas piadinhas.

Sempre perguntávamos por onde andava o seu Tarzan, pelo simples fato que Fabi sempre foi uma sonhadora. Vivia idealizando um príncipe encantado. Mas, como resposta, ela mostrava o dedo do meio todas as vezes que dizíamos para ela parar de sonhar com homem no cavalo branco e olhar para o alto que, talvez o Tarzan estava vindo buscá-la gritando a plenos pulmões e balançando nos cipós.

Agora mesmo, ela me atira um olhar fulminante e alargo o sorriso debochado.

— Posso saber por que tanto escândalo? Nem me masturbar em paz eu posso?

— Nossa, dá para você ser menos específica? Eu não precisava saber disso — protesta com cara de nojo.

— Vamos! Diz logo o que você quer, pois ainda tenho que gozar. — Desço a mão por trás da porta fazendo caras e bocas, em seguida solto um gemido falso nem um pouco preocupada com seu desconforto.

— Tem certeza que tá se masturbando? Com esse mau humor do cão e pelo jeito que você nem sabe fingir uma gozada, acho difícil que esteja sendo prazeroso. — Bato a porta na sua cara e ela cai na gargalhada.

— Vamos, Doti! Eu preciso usar seu banheiro.

— O apartamento é grande, tem mais banheiros disponíveis.

Moramos em um apartamento bem localizado em um dos bairros mais caros de São Paulo. Mesmo relutante, fui praticamente obrigada a receber do meu pai esse presente exagerado quando fiz dezoito anos. Era isso, ou acabaria acontecendo uma tragédia na família Arrais. Na época, senhor Alfredo Arrais ainda possuía domínio sobre suas finanças e da própria vida. Agora, depois de quase perder a empresa, ostentar o que possui é uma das coisas que ele mais ama.

Realmente é uma pena que ele não se importe mais com o império que vovô deixou. Mesmo que seja meu e que no passado papai me fez tão mal, seria bom ele voltasse para Arrais. Mas agora depois de tanto tempo tenho certeza de que não fará o mínimo esforço para conseguir os meios que mantenham seus extravios. Dele e da esposa, porque no caso dos dois, o ditado onde diz que “Deus escreve certo por linhas tortas”, cai bem a ambos.

Ele e Maribel se merecem. Os dois gostam de gastar como se não houvesse amanhã.  

Esse foi mais um dos motivos pelo qual a Arrais andou à beira da falência, e fui obrigada a morar longe dele, do meu irmão e da cobra que ele chama de esposa.

Eu acho que nasci na família errada. Não tenho ambições de possuir mais do que já conquistei, para mim já está bom mantermos o que temos.

— Eu sei que tem, mas o seu banheiro é maior, mais lindo e eu também tenho que ver o que você vai vestir. — Minha amiga argumenta, batendo na porta novamente.

Pronto! Está aí o real motivo de me infernizar durante o banho.

Imagino ela falando isso despreocupada, olhando suas belas unhas pintadas de branco. Está para nascer uma pessoa que ama a cor branca mais do que a Fabi. Como se já não bastasse ser médica e viver vestida de branco praticamente o dia todo, ainda tem que decorar o apartamento com detalhes em branco, exceto meu quarto. Esse é meu santuário e aqui ninguém mexe.

Saio do banheiro para encontrar minha cama cheia de roupas, sapatos e uma Fabi ainda inconformada por não achar o que quer.

Okay! Volto atrás em dizer que ninguém mexe no meu quarto. Ela mexe!

— Que diabos está acontecendo aqui? Foi um furacão que passou e não vi? — indago mesmo sabendo a resposta.

— Foi sim, meu amor. Furacão Fabi acaba de passar no seu closet e não está nada satisfeita com o que viu — responde levantando um dos meus macacões camuflados e meu coturno preferido.

— Nossa, Dorotéia, você nem parece ser uma das mulheres mais bem-conceituadas de São Paulo — me seguro para não virar os olhos para tanta besteira.

— Quando você vai entender que eu trabalho com graxa, ferramenta e pneu? Tenho que ser condizente com minha profissão — retruco e ela curva a sobrancelha bem-feita, fazendo-me ter inveja da mesma. — Aliás, só isso não! — Sento-me no sofá próximo ao closet, e ela doida para saber das fofocas, vem junto e continuo a falar: — Fabi você precisar ver o tanto de homem gostoso que passa por lá.

Me abanando com uma das mãos enquanto a outra segura o nó da toalha que ameaça se desfazer. Estou precisando de homem, essa vida de Maria graxeira está acabando comigo. Tenho que pelo menos pegar o Fábio, aquele mecânico gostoso.

Silêncio.

Nem mesmo o “cri-cri-cri” dos grilos inexistentes aqui, eu ouço.

Olho para o lado e a amiga da onça me deixou falando sozinha, ainda mais de um assunto tão delicado quanto os homens e seus tão poderosos músculos e tripés.

— Meu Deus! Ela não me leva mesmo a sério.

Minutos depois Fabi volta com o que parece ser meu look do dia e joga-o para mim.

— Prontinho, essa roupa deve servir. Precisamos ir às compras urgentemente.

— Oi? Você está me vendo aqui querida? Eu acho que ainda tenho direito de escolha. — Levanto uma roupa qualquer como forma de protesto.

— Claro, que sim. Com quem acha que estou falando? — contesta, colocando uma das mãos na cintura fina. — E você vai sair nunca com isso por aí com. — Toma a roupa das minhas mãos.

— Ohh, Fabiana! Você ouviu o que eu disse minutos atrás?

— Sobre os homens que vão à oficina? Ouvi sim! — Joga meu macacão esfarrapado no cesto que provavelmente vai parar no lixo. — Aliás, eles só vão lá pra ver sua bunda, que por sinal, é uma delícia.

Na maior cara de pau, ela fala e ainda me dá uma piscadela.

Que audácia! Atiro uma almofada contra seu corpo lhe expulsando do quarto.

Antes de fechar a porta atrás de si, a morena ainda deixa a pérola do dia.

— Você precisa mesmo de um homem Dorotéia, mas de um homem macho, daqueles bem quente, sabe?

— Não sei, não! — respondo, ficando de pé para passar o hidratante que o Tadeu gentilmente me mandou. O último lançamento, segundo ele.

— Óbvio que sabe. Deixa de ser fresca. — Mostro o dedo do meio e como se não tivesse visto meu gesto obsceno, ela persiste no discurso pró macho para mim. — O homem para você tem que ser um “brucutu”. Que te deixe molhada só de olhar para ele. Que te prenda, domine e que conquiste seu coração de pedra — Faz um gesto ridículo em formato de coração no ar. — E principalmente, que bata de frente com as suas opiniões, porque minha amiga você é uma força bruta da natureza

— Que “brucutu” que nada, Fabi. Para de sonhar acordada.

— Não é sonho. Se eu pudesse fazer um pedido ao gênio da lâmpada, seria isso: um macho para Dorotéia.

Me aproximo e bato em sua cabeça devagar.

— Tem certeza que não estar sonhando?

Um gênio? É sério isso? É cada coisa que sou obrigada a ouvir.

— Claro que não! — Bate em minha mão que continua a cutucá-la.

— De qualquer forma, homem não me interessa. Estou bem assim, obrigada! — Caminho para a frente do espelho com a roupa que minha consultora de moda pessoal me designou a vestir e a deixo resmungando qualquer coisa.

Só espero que esse homem quando aparecer seja um sapo, só assim dou-lhe uma bela cacetada.

Sou uma mulher que desde muito nova luto por minha independência, seja ela pessoal ou financeira. Por esse motivo sempre dei grande valor a minha liberdade, principalmente se essa liberdade me permitir ficar a quilômetros de distância dos homens, proteger meu coração de futuramente ser quebrado simplesmente pelo fato de me conhecer profundamente.

Sei o quanto sou intensa com essas questões de sentimentos e, geralmente, essas coisas de amor nunca são correspondidas na mesma proporção.

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