A festa começou ao anoitecer. Quase toda a ilha compareceu para desejar felicidades à princesa, dar presentes, e, principalmente, vê-la receber sua faca de osso de baleia.
Na hora da cerimônia principal, todos ficaram em silêncio enquanto Janaína e Dario estendiam para Inaê uma caixa de madeira lustrosa. Na maioria das vezes em que um jovem recebia sua faca aos dezenove anos, esta era feita e entalhada só para ele ou ela. Mas o pai de Inaê vinha de uma família que passava a lâmina de pai para filho, e como Marisol recusara receber a faca do pai em seu aniversário, a mais nova receberia a dele.
-- Inaê Luamar, você hoje recebe esta lâmina como uma parte de você, e ao aceitá-la, se torna também parte indispensável desta ilha – Dario declarou formalmente estendendo a herança para ela.
Inaê abriu a caixa e tirou a faca de dentro, sob os olhares de expectativa de dezenas de pessoas, inclusive da rainha Ondina. O cabo e a bainha tinham uma coloração amarelada enquanto a lâmina era mais branca. E a jovem reparou em algo que não estava ali na última vez que vira a herança: o desenho de um dragão entalhado na bainha.
Dario sorriu para a filha quando ela o encarou surpresa, e retribuindo o sorriso, a aniversariante pôs a faca no cinto, debaixo de uma chuva de aplausos e brados. A arma na cintura destoava do vestido azul de tecido delicado que a jovem usava, mas isso não importava ali.
Então chegou a hora da dança, e como Inaê nunca soube dançar direito, esgueirou-se para fora do salão de festas e seguiu para a praia, completamente deserta agora.
À luz do luar, que deixava a areia da praia acinzentada e o mar brilhando prateado, Inaê desembainhou a faca e a admirou. Trinta centímetros de lâmina reta, afiada como se fosse nova, embora tivesse mais de cem anos. O entalhe de dragão ela sabia que fora feito só por sua causa, seu pai conhecia muito bem a fascinação que ela tinha pelos senhores do mar.
As pessoas tinham certa razão em temer aqueles seres parecidos com serpentes draconianas gigantescas. Há mais ou menos mil anos, sem ninguém saber precisamente quanto tempo, os dragões surgiram das fendas mais profundas do oceano, e como um castigo divino sobre a humanidade, arrasaram a Terra, um tsunami depois do outro. O que sobrou da raça humana sobreviveu agarrada aos pedaços de chão que sobraram.
A Ilha Delfim era um deles, bem como as pequenas ilhas no extremo norte, Lunae, o maior continente, e Lus, a terra mais ao sul, que tinha pouco mais que o dobro do lar delfino.
Inaê nunca sentira medo dos dragões, na verdade chegava a admirá-los. Aonde quer que fossem, as ondas os acompanhavam e a maré subia como se a própria lua comandasse. Seres poderosos o bastante para que o oceano os obedecesse não lhe pareciam monstros, mas sim deuses. Se eles ao menos dessem uma chance aos humanos de se provarem dignos de perdão...
-- Ei, Inaê, o aniversário é seu, não vai doer se você dançar só um pouquinho – Marisol apareceu atrás da irmã, que balançou a cabeça.
-- Ia doer nos olhos de quem me visse dançar. Se pensar direito, ao sair, estou fazendo um favor à comunidade.
-- Se não vai dançar, poderia cantar pelo menos. A sua voz é muito bonita, a comunidade iria agradecer – as duas riram e a mais velha tirou algo do bolso – Eu ainda nem dei o seu presente. Aqui está.
Inaê abriu o saquinho de tecido e deixou cair em sua mão um colar. O cordão era de cetim negro, preso a uma pequena pedra transparente. Segurando-a contra a luz, a jovem notou que era um cristal com o formato de um búzio, igual aos que gostava de catar na areia, quando pequena.
-- Que lindo, Mari – balbuciou, admirada, e se apressou em pôr a joia. Marisol sorriu.
-- Eu e o Chris fizemos juntos.
Chris era o namorado de Marisol, estavam juntos desde o início da adolescência, e pareciam querer levar isso para a vida adulta. Era o jovem casal mais conhecido da ilha. Como se davam realmente bem, Inaê só desejava o melhor para os dois.
-- Acho que já podemos voltar. A música está acabando.
Inaê seguiu de volta para a festa com a irmã, mas se deteve antes de dar três passos e voltou-se para o mar novamente.
-- O que foi? – Marisol olhou na mesma direção que ela, sem ver nada no escuro.
Inaê passara boa parte de sua vida na água, fosse nadando em sua prancha ou em barcos, e seus ouvidos podiam identificar a menor anomalia no vento e nas ondas.
-- Tem navios se aproximando da ilha.
-- Devem ser dos nossos mesmo, em ronda – Marisol puxou a mão de Inaê, impaciente – Vamos antes que percebam que saímos.
Talvez ela estivesse certa e fosse só um veleiro delfino em patrulha, então Inaê voltou para a festa, bem na hora em que os confeiteiros traziam o bolo.
Ao término da comemoração, a maioria dos presentes já indo para casa, Inaê saiu novamente do salão de festas, mas não foi para a praia, optando desta vez por fitá-la de longe. E quem veio falar com ela desta vez foi a rainha Ondina, que não tivera tempo de conversar durante a festa.
-- Meus parabéns, Inaê – ela deu um tapinha em suas costas – Dezenove anos é mais um passo até a coroa. Daqui a pouco poderá ser oficialmente rainha.
Pelas leis da Ilha Delfim, a maioridade era alcançada aos vinte e um anos. Com essa idade, podia-se inclusive assumir um cargo do governo.
-- Eu não pretendo aliviá-la do seu trabalho tão cedo, senhora. Ainda tenho muito o que aprender antes de ser uma rainha digna.
-- Talvez um pouquinho de experiência prática seja o que lhe falta – Ondina coçou o queixo – Mas não consigo pensar em ninguém mais adequado. Além de ser tutorada diretamente por mim no que uma rainha precisa saber, você foi aprendiz da Meri, e é filha de Janaína e Dario, os três aprendizes meus também.
Marisol também preenchia esses requisitos, mas todos sabiam que ela era uma menina gentil demais para um trabalho como o de uma rainha; não aguentaria as pressões do cargo. Inaê também não gostava de ser pressionada, mas sabia que lidava melhor com isso que a irmã.
Esses pensamentos desapareceram de sua mente ao sentir um cheiro bastante incomum: fumaça de motor. Inaê voltou-se para leste, de onde o vento carregado com o cheiro vinha, e correu para a praia.
-- Inaê! Aonde você vai? – Ondina exclamou, mas a jovem não parou de correr.
Meri já estava na praia, encarando o horizonte, e voltou-se para Inaê com apreensão no olhar.
-- Tem navios motorizados perto da ilha. Só podem ser estrangeiros.
Ambas tinham certeza disso, porque quase todas as embarcações da Ilha Delfim eram a vela. O pouquíssimo combustível existente tornava navios motorizados um último recurso, para ser usado em casos de emergência, como conflitos ou envios urgentes de mensagens para fora da ilha.
Os raios da alvorada iluminaram o horizonte, revelando uma frota de navios de metal ao longo da costa norte. O queixo de Inaê caiu e o medo tomou seu coração de repente. Num instante ela correu de volta para o salão, encontrando a rainha no caminho.
-- Inaê, o que está acontecendo?
-- Tem navios estrangeiros aqui nas nossas águas – ela falou com mais calma do que sentia, porque sabia que em uma situação difícil, um líder precisa se manter no controle das emoções para não deixar o povo mais assustado – Devem ter chegado ontem e cercaram a ilha no escuro.
-- Pelo azul escuro das bandeiras, eles são de Lunae – Meri chegou também. A informação dela agravou a preocupação no rosto de Ondina.
A rainha foi para o Edifício Caramuru, local de trabalho dela e dos parlamentares. Inaê teria ido também, mas precisava tirar aquele vestido de festa e trocar por algo mais sério.
Quando chegou a casa, seus pais e Marisol já sabiam o que acontecia. Os pescadores que iam ao mar com o raiar do sol viram a frota lunae, e a notícia se espalhara como fogo. Logo toda a ilha estaria ciente da situação.
Inaê rapidamente vestiu uma calça e amarrou os cachos negros num rabo-de-cavalo antes de seguir direto para o Caramuru, acompanhada pelos pais. Meri já estava lá e os colocou a par do que acontecera.
-- A rainha mandou um barco com representantes para falar com esses recém-chegados. Estamos esperando o retorno deles.
-- Se tem gente lunae aqui, com certeza não querem fechar um acordo comercial – Janaína mordeu o polegar, olhando para baixo, concentrada.
-- Nenhum de nós vai se render facilmente no caso de invasão – Dario falou baixinho para a esposa – Podemos acabar num conflito armado.
Esse último comentário só assustou Inaê ainda mais, e notando isso, Meri interveio:
-- Não precisamos chegar a esse ponto. Talvez possamos negociar.
Inaê realmente esperava que sim. Guerra e disputa por recursos fora um dos motivos do castigo dos dragões sobre a humanidade, e a princesa temia que, se um conflito explodisse ali, um dragão poderia vir e arrasar tudo com um tsunami. Logo em Delfim, uma terra tão pacífica.
Levou cerca de meia hora para os representantes da ilha retornarem, acompanhados por um homem e uma mulher que só podiam ter vindo dos navios estrangeiros. Vestiam o que parecia uniformes da marinha azul escuros, ornamentados com algumas medalhas.
-- Estamos aqui em nome do rei para falar com a sua líder – a mulher anunciou para Meri com um ar meio arrogante, enquanto o homem olhava os arredores sem muito interesse. Como eram parecidos, Inaê supôs que fossem irmãos, ela devia ter por volta de vinte e nove anos e ele um pouco menos que isso.
Janaína foi chamar Ondina, e Inaê ouviu Meri murmurar para Dario:
-- Esses dois são do arquipélago Nesy. Se estão com uniformes lunae, então o povo já está dominado por lá.
A rainha chegou e a mulher soldado se dirigiu a ela sem metade do respeito que deveria demonstrar.
-- Senhora governante, gostará de saber que o grande reino Lunae está aqui para fazer desta ilha parte dele.
-- Temos certeza que acharão muito vantajoso para seus habitantes – o irmão se manifestou pela primeira vez. Inaê postou-se ao lado da rainha e encarou os dois. Ondina cruzou os braços e disse em seu tom mais solene: -- Antes de irmos para questões políticas, acho que a educação manda nos apresentarmos. Eu sou Ondina, rainha e soberana da Ilha Delfim. -- Muito bem – a mulher se empertigou, pega de surpresa, mas mantendo a pose – Meu nome é Alika Tuvalu, capitã de mar-e-guerra da marinha lunae do arquipélago de Nesy, mais especificamente da ilha Hav. E este
Durante o resto do dia, Inaê supervisionou as preparações do exército delfino. A força bélica da pequena ilha nunca fora significativa, e a marinha não precisava vigiar as águas há mais de vinte anos, então não era de se estranhar que os mais jovens e inexperientes estivessem nervosos. Mas o problema maior era a quantidade superior de inimigos. Perto de anoitecer, Ondina veio ao quartel e falou com Inaê quando todos se retiravam. Perguntou, já parecendo um general: -- O que achou do que viu? -- Fala do cerco à ilha ou dos nossos soldados em potencial?
Se aproxima como uma fera na noite. Pela primeira vez desde que nasceram, elas conhecerão a guerra Alika não foi para o navio como o almirante mandara. Ela conhecia Edward o bastante para saber que ele não negociava depois de o governo se negar a ser anexado ao reino, e o que acontecia em Lus naquele momento era prova disso. Ele planejava algo, provavelmente uma tática sórdida para obter vantagem. Sua suspeita estava certa. De longe, escondida atrás de um arbusto, viu Edward acompanhar Inaê até o fim daquele abismo e apontar uma pistola. Alika se levantou num pulo e correu na direção deles, sem saber o porquê de fazer isso, mas antes que desse dois passos, o tremor a jogou de cara no chão. Quando se erguia nos cotovelos para recomeçar a corrida, Inaê e Edward despencaram para o mar lá e
Marisol quase não se mexia, sentada no corredor do hospital, em contraste com a irmã, que andava de um lado para outro, à beira do desespero. Dario estava em cirurgia, aparentemente um destroço da explosão o acertara na cabeça e agora se encontrava em estado crítico. As garotas esperavam há quase uma hora quando Janaína chegou, com um ar devastado que nenhuma das filhas nunca vira. Sua voz estava muito rouca ao perguntar: -- Como ele está? -- Ainda em cirurgia – Inaê respondeu – E a senhora? &nb
Nalu passou a noite inteira plantado ao lado da porta da cabine do vice-almirante. Alika estava lá há horas contando o que acontecera com ela e o almirante Edward depois que a princesa delfina o chamou para conversar; em seguida iniciou uma longa discussão sobre os métodos de seu “resgate”. -- Aquela segunda bomba não era necessária – ela argumentou. Estava muito irritada. -- Enfraquecemos o poder de ataque deles. Se não fosse por isso, a ocupação não teria sido tão fácil e rápida – o vice-almirante Francis argumentou. -- Matamos civis
O oceano abriga incontáveis mistérios em suas profundezas, e quem o desafia é tragado sem piedade por sua imensidão Antes que Inaê percebesse, amanheceu, e ela imediatamente tirou os óculos escuros da bolsa na cintura. Não podia ter queimadura solar nos olhos, principalmente naquele momento. Seus dedos estavam enrugados e dormentes, e sentia câimbras nos braços pelo longo tempo agarrada na prancha. Esperava que melhorasse quando o calor do dia substituísse o frio noturno. Algumas vezes perdera o dragão de vista, sua cor se confundia com o mar escuro, mas sempre aparecia um golfinho para mostrar onde ele es
No final da tarde Meri reunira dezenas de voluntários para a operação de recuperação de armas, e selecionou quinze para irem. O restante foi para o esconderijo na serra, onde Marisol e Ondina esperavam. Chris estava entre os voluntários. Ele não fazia o tipo guerreiro, mas sua presença ali acalmava Marisol, só por saber que ele estava num lugar seguro e não perto de lunaes armados. Quando as pessoas começaram a perguntar onde estava Inaê, Ondina explicou sua história planejada que ela estava indisposta depois do baque de ver o pai ferido e em coma, mas enquanto se recuperava, Marisol seria a princesa interina. Terminou anunciando cheia de confia
Quando aquela boca grande o bastante para engolir metade de uma casa se fechou sobre Inaê, o primeiro pensamento que lhe veio à mente foi que seria devorada e se afogaria antes de sentir a digestão. Porém, no momento em que as mandíbulas cerraram, a água baixou como se fosse drenada. O dragão engolira a água e deixara Inaê sobre a língua. Estava muito escuro ali dentro, mas era mais tranquilo que em um barco, inclusive não balançava. Inaê podia sentir que o dragão mergulhava cada vez mais, e se perguntou se ele chegaria no fundo do oceano. Isso seria fantástico, a jovem sempre imaginou que tipo de criaturas viveriam lá. Mas assim que ele abrisse a boca, mesmo se a pressão da água não a matasse na hora, ainda se afogaria. O que o dr