As ondas quebram na praia, e trazem uma lenda que mudará o mundo
-- “O mar e a lua existem em uma harmonia imutável, mais antiga que a própria vida na Terra, conectados pela eterna dança do magnetismo...”
-- “Mas sem nunca se tocarem verdadeiramente. A união dessas duas forças será o presente do universo para a humanidade” – a jovem de olhos verdes completou, sem levantar a cabeça de seu trabalho de limpar a prancha de windsurfe.
-- Isso mesmo – a outra moça olhou para ela sorridente – Você tem lido o livro de contos antigos também?
-- Não, mas de tanto ouvir você lê-los em voz alta, acabei decorando.
-- Que pena, Inaê. Se você não passasse todo o seu tempo livre na água, podia ler bem mais – Marisol fechou o livro em seu colo e permaneceu sentada no tronco de uma palmeira caída, enquanto a irmã terminava de arrumar a prancha e corria com ela para o mar.
Só com um ano de diferença entre elas, ambas eram parecidas, bronzeadas, com cabelos negros ondulados, formando cachos nas pontas. O que as diferenciava era a cor dos olhos, a altura e a cor da pele de Inaê, mais parda que a da irmã pelo maior tempo exposta ao sol.
Naquela manhã ventava muito e as ondas estavam agitadas, do jeito que Inaê gostava. Com a habilidade de quem já fizera isso centenas de vezes, a jovem manejou a vela e deixou que o vento a levasse para longe da praia.
A espuma das ondas respingou em suas botas de solas aderentes, o sol aqueceu seus braços nus e o vento fustigou seus cabelos. Ali, Inaê se sentia completa, em equilíbrio e paz com o universo.
Quando a praia não era mais que um rastro claro ao longe, a prancha encalhou num banco de areia. Inaê recolheu a vela retrátil e deixou a prancha ali, presa ao solo por uma pequena âncora de madeira. Apesar de adorar o oceano, a jovem conhecia bem a sua imprevisibilidade, e não iria correr o risco de perder seu meio de transporte para uma onda surpresa.
Depois de se certificar que a âncora estava firme, Inaê seguiu adiante, encaixou a máscara de oxigênio sobre o nariz e a boca, e mergulhou.
Os navios e barcos que passavam ali evitavam o banco de areia, por isso a depressão submersa próxima a ele permaneceu desconhecida por muitos anos, até Inaê ir longe demais em seus mergulhos infantis e encontrar por acaso um cemitério de baleias.
Um evento sísmico criara um buraco no leito marítimo, e talvez por ação de correntes, as ossadas de vários animais, principalmente de baleias, se amontoaram ali, formando um verdadeiro cemitério natural, e agora era uma fonte de recursos para a Ilha Delfim.
No momento Inaê era a única da ilha corajosa o suficiente para ir tão longe numa prancha; até os barcos pesqueiros se mantinham perto da costa o máximo possível.
A jovem sentiu os pelos de seus braços se arrepiarem conforme mergulhava mais fundo e a temperatura caía. Seus olhos se acostumavam à penumbra do ambiente submarino, e aos poucos as pilhas de ossos tomaram forma, brancas como a espuma do mar.
Com um martelinho e uma estaca de pedra polida, Inaê começou o trabalho de quebrar a frágil ligação que ainda existia entre a costela e a coluna vertebral do que provavelmente fora uma orca. Ao final de alguns minutos os dois ossos se separaram, e a moça subiu carregando a costela consigo.
Quando saiu do buraco, foi surpreendida por uma família de cavalos marinhos que quase colidiu com sua cabeça. Os pequenos animais pararam bem a tempo, então deram voltas ao redor dela antes de se afastarem. Inaê só não riu porque estava de máscara e precisava voltar para a superfície.
Seria tão bom se as máscaras de mergulho dessem mais que cinco minutos debaixo d’água, pensou com tristeza enquanto arrastava a costela de orca pelo banco de areia. Mesmo não sendo dos maiores, o osso era tão grande quanto sua prancha, seria mais trabalhoso voltar à praia.
Inaê amarrava a costela à prancha quando notou uma alteração no som das ondas às suas costas. O respirar constante do oceano pareceu sofrer uma quebra, uma mudança quase imperceptível, mas com só um significado. Inaê olhou para trás, e seu rosto se iluminou ao avistar uma jangada cortando as águas.
A pessoa a bordo dela também deve ter visto Inaê, pois a embarcação fez uma brusca curva e veio na direção do banco de areia. A jovem correu ao encontro dela, ou melhor, nadou. A jangada parou e sua única tripulante estendeu a mão para Inaê subir.
-- Meri! – exclamou – Que bom que você voltou. Não sabíamos se ia conseguir chegar a tempo.
-- Eu não perderia um dia tão especial da minha aprendiz, que por sinal surfa cada vez melhor – a mulher alta de cabelos curtos sorriu e acariciou a cabeça de Inaê. Então ergueu o olhar para a prancha de windsurfe, alguns metros além – E vejo que você continua a resgatar ossos das profundezas. Se quiser eu te dou uma carona de volta.
-- Obrigada, mas quero voltar surfando. Mas pode levar o osso que eu peguei.
Meri aceitou. Inaê deixou a costela de orca com ela e seguiu ao lado da jangada, se desviando pouco antes de chegar perto da areia. Recuou um pouco para ver o que surgia no horizonte, uma forma esguia que serpenteava pelas ondas, sua cor negra se destacando no verde do mar.
-- Inaê! – Meri gritou – Vamos!
Lamentando por ter que desviar o olhar do dragão, Inaê manobrou a prancha de volta para a praia.
Durante o curto percurso, a mentora observou a sua aprendiz mais jovem surfar. Inaê deslizava com uma suavidade tão natural, como se fosse parte da onda. Sabia ler perfeitamente o movimento do mar. Nem a própria Meri manobrara tão bem uma prancha de windsurfe no auge da juventude.
-- Professora! – Marisol se jogou em Meri quando a jangada, Piloto do Vento, estava segura na areia e a mulher veio ao seu encontro – Rezei para o mar lhe trazer em segurança. Como foi a viagem? Descobriu mais alguma ilha?
-- Sim, um arquipélago de quatro ilhotas ao sul. Soprava um vento bem frio lá, e o mar era muito gelado.
-- E alguma dessas ilhotas era habitada? – Inaê perguntou, guardando a vela da prancha.
-- Só por animais. Acho que não existem mesmo humanos além das terras que já conhecemos. Agora vamos, princesa, quero dar um olá aos seus pais.
Inaê invejava um pouco essa liberdade de Meri. Às vezes queria poder ir com ela e desbravar o oceano, descobrir ilhas além do horizonte, quem sabe algo sobre os dragões também. Sabia que era perfeitamente capaz de fazer isso, afinal Meri lhe ensinara tudo sobre navegar, mas diferente de sua mentora, a jovem tinha responsabilidades maiores em casa.
-- O que fazia aqui na praia também, Marisol? – perguntou Meri quando começaram a andar. Foi Inaê quem respondeu:
-- Ela declamava trechos de livros antigos para mim.
-- Você sempre gostou que eu lesse para você, irmãzinha – Marisol se defendeu – Lembro-me que adorava aquele conto antigo sobre uma pessoa com poderes mágicos que aparecia andando sobre o mar e cercada por estrelas. Só não quero perder o costume.
Dois artesãos receberam-nas quando chegaram à cidade, e Inaê entregou-lhes a costela.
-- Isso vai dar uma ótima leva de facas peixeiras – um deles comentou sorridente ao examinar o osso – Onde está a sua, princesa?
-- Ela ainda vai receber, hoje à noite – o outro respondeu – Parabéns pelo seu dia, princesa.
Por uma tradição da Ilha Delfim, os jovens ganhavam em seu décimo nono aniversário um facão feito de osso de baleia. Naquela noite Inaê ganharia o seu, por isso Meri estava de volta após quase um ano fora.
Chegando em casa, Dario, pai das duas meninas, esperava na porta e as acompanhou até a sala de estar modestamente mobiliada. Dirigiu-se a Meri, cumprimentando a velha amiga:
-- Meri! Há quanto tempo! Chegou em cima da hora para a festa da sua pupila.
-- Papai, apareceu um dragão quando a professora chegou – Marisol comentou. Meri adicionou:
-- E a Inaê quase que ia atrás dele, ficou olhando como se estivesse hipnotizada.
Dario olhou feio para a filha mais nova, que se apressou em argumentar:
-- Eu só olhei para ele, pai, não é como se eu fosse persegui-lo de verdade. E eu não poderia mesmo se quisesse, não é?
-- Isso mesmo, uma princesa não pode abandonar sua terra só por aventura – Janaína, mãe de Inaê e Marisol, entrou na sala.
-- Dragões são criaturas fantásticas, mãe. O que apareceu hoje era aquele com tentáculos do lado da cabeça.
-- Mas a rainha ficará zangada se ouvi-la falando isso – Marisol guardou seu livro na estante no canto da sala.
Ondina, governante da Ilha Delfim, temia muito os dragões e a ameaça de tsunamis que a presença deles trazia. Inaê fora selecionada para ser a próxima rainha, por isso recebia educação direta dela desde os catorze anos, e todos da ilha a chamavam de princesa.
Em quase todos os aspectos, Inaê era o orgulho da governante, e o povo delfino confiava inteiramente que seria uma sucessora mais do que capaz. A única coisa que incomodava Ondina era a fascinação de Inaê pelo mar e pelos dragões. Para ela, ninguém deveria sequer pensar em chegar perto de monstros tão perigosos.
Ainda bem que nem ela nem nenhum ilhéu sabia que Inaê já chegara quase a tocar em um.
-- Que notícias você traz do mundo lá fora, Meri? – Janaína perguntou. Uma sombra caiu sobre o rosto da recém-chegada.
-- Lunae continua a expandir o território; já dominou todas as ilhas do norte. Da última vez que estive lá, preparavam uma frota de navios para o sul – ela entrelaçou os dedos, como fazia quando ficava pensativa – Não sei o que aquele rei deles pretende com isso, nem até onde essa expansão vai.
A preocupação de Meri contagiou Dario e Janaína, e, percebendo o que pensavam, Inaê fez a pergunta que pairava no ar e ninguém tinha coragem de proferir:
-- Eles podem vir para a nossa ilha também?
-- Não sabemos, querida – a mãe respondeu e mudou o tom de voz para mais animado – Não vamos pensar nisso agora, Inaê, é um dia para comemorarmos.
Pelo resto do dia a mente de todos se ocupou com as preparações para a festa, e, sendo a aniversariante, Inaê foi o centro de todas as atenções. Teve que provar vestidos, ajudar com as comidas servidas e com a decoração do salão.
E não conseguiu pensar em mais nada.
A festa começou ao anoitecer. Quase toda a ilha compareceu para desejar felicidades à princesa, dar presentes, e, principalmente, vê-la receber sua faca de osso de baleia. Na hora da cerimônia principal, todos ficaram em silêncio enquanto Janaína e Dario estendiam para Inaê uma caixa de madeira lustrosa. Na maioria das vezes em que um jovem recebia sua faca aos dezenove anos, esta era feita e entalhada só para ele ou ela. Mas o pai de Inaê vinha de uma família que passava a lâmina de pai para filho, e como Marisol recusara receber a faca do pai em seu aniversário, a mais nova receberia a dele. -- Inaê Luamar, você hoje recebe esta lâmina como uma parte de você, e ao aceitá-la, se torna também parte indispensável desta ilha – Dario
-- Temos certeza que acharão muito vantajoso para seus habitantes – o irmão se manifestou pela primeira vez. Inaê postou-se ao lado da rainha e encarou os dois. Ondina cruzou os braços e disse em seu tom mais solene: -- Antes de irmos para questões políticas, acho que a educação manda nos apresentarmos. Eu sou Ondina, rainha e soberana da Ilha Delfim. -- Muito bem – a mulher se empertigou, pega de surpresa, mas mantendo a pose – Meu nome é Alika Tuvalu, capitã de mar-e-guerra da marinha lunae do arquipélago de Nesy, mais especificamente da ilha Hav. E este
Durante o resto do dia, Inaê supervisionou as preparações do exército delfino. A força bélica da pequena ilha nunca fora significativa, e a marinha não precisava vigiar as águas há mais de vinte anos, então não era de se estranhar que os mais jovens e inexperientes estivessem nervosos. Mas o problema maior era a quantidade superior de inimigos. Perto de anoitecer, Ondina veio ao quartel e falou com Inaê quando todos se retiravam. Perguntou, já parecendo um general: -- O que achou do que viu? -- Fala do cerco à ilha ou dos nossos soldados em potencial?
Se aproxima como uma fera na noite. Pela primeira vez desde que nasceram, elas conhecerão a guerra Alika não foi para o navio como o almirante mandara. Ela conhecia Edward o bastante para saber que ele não negociava depois de o governo se negar a ser anexado ao reino, e o que acontecia em Lus naquele momento era prova disso. Ele planejava algo, provavelmente uma tática sórdida para obter vantagem. Sua suspeita estava certa. De longe, escondida atrás de um arbusto, viu Edward acompanhar Inaê até o fim daquele abismo e apontar uma pistola. Alika se levantou num pulo e correu na direção deles, sem saber o porquê de fazer isso, mas antes que desse dois passos, o tremor a jogou de cara no chão. Quando se erguia nos cotovelos para recomeçar a corrida, Inaê e Edward despencaram para o mar lá e
Marisol quase não se mexia, sentada no corredor do hospital, em contraste com a irmã, que andava de um lado para outro, à beira do desespero. Dario estava em cirurgia, aparentemente um destroço da explosão o acertara na cabeça e agora se encontrava em estado crítico. As garotas esperavam há quase uma hora quando Janaína chegou, com um ar devastado que nenhuma das filhas nunca vira. Sua voz estava muito rouca ao perguntar: -- Como ele está? -- Ainda em cirurgia – Inaê respondeu – E a senhora? &nb
Nalu passou a noite inteira plantado ao lado da porta da cabine do vice-almirante. Alika estava lá há horas contando o que acontecera com ela e o almirante Edward depois que a princesa delfina o chamou para conversar; em seguida iniciou uma longa discussão sobre os métodos de seu “resgate”. -- Aquela segunda bomba não era necessária – ela argumentou. Estava muito irritada. -- Enfraquecemos o poder de ataque deles. Se não fosse por isso, a ocupação não teria sido tão fácil e rápida – o vice-almirante Francis argumentou. -- Matamos civis
O oceano abriga incontáveis mistérios em suas profundezas, e quem o desafia é tragado sem piedade por sua imensidão Antes que Inaê percebesse, amanheceu, e ela imediatamente tirou os óculos escuros da bolsa na cintura. Não podia ter queimadura solar nos olhos, principalmente naquele momento. Seus dedos estavam enrugados e dormentes, e sentia câimbras nos braços pelo longo tempo agarrada na prancha. Esperava que melhorasse quando o calor do dia substituísse o frio noturno. Algumas vezes perdera o dragão de vista, sua cor se confundia com o mar escuro, mas sempre aparecia um golfinho para mostrar onde ele es
No final da tarde Meri reunira dezenas de voluntários para a operação de recuperação de armas, e selecionou quinze para irem. O restante foi para o esconderijo na serra, onde Marisol e Ondina esperavam. Chris estava entre os voluntários. Ele não fazia o tipo guerreiro, mas sua presença ali acalmava Marisol, só por saber que ele estava num lugar seguro e não perto de lunaes armados. Quando as pessoas começaram a perguntar onde estava Inaê, Ondina explicou sua história planejada que ela estava indisposta depois do baque de ver o pai ferido e em coma, mas enquanto se recuperava, Marisol seria a princesa interina. Terminou anunciando cheia de confia