PV Marylin Darlinghton
Uma semana depois...
Viajar pelos mares era a melhor sensação que se poderia viver, o vento e a água batiam contra você, juntos como uma faca cortante, mas em vez de ser dolorosa, era como uma massagem que te fortalecia. Meu mundo tinha se resumido àquele barco, comecei a ajudar Ulisses e Aquiles em tudo, nunca tinha sentido meus braços tão pesados, e minhas costas doloridas como estavam agora. Tudo doía, mas eu me sentia plena, sem problemas, mesmo que estivesse fedendo a peixe.
— O que iremos comer hoje, Mary? — perguntou Aquiles, encostando-se ao meu lado, colocando o braço em cima do meu ombro. Não tinha como ser mais abusado do que ele.
— Hoje teremos peixe frito com arroz — falei, vendo-o fazer careta antes de reclamar, que era o que ele mais fazia o dia todo e infelizmente não podia culpá-lo. Peixe era a única coisa que eles comiam, e só tinha três formas. Cru, cozido ou frito, os três com o mesmo tempero e com os mesmos acompanhamentos. Eu não reclamava e nem tinha o direito, a fome também não deixava. Trabalhávamos a manhã e à tarde até as 8 da noite sem descanso, puxando linha, jogando linha e no fim, limpando os peixes, uma coisa que eu realmente não era muito boa em fazer, preferia mil vezes puxar metros de linha do mar, e ficar com meus braços todos doloridos do que extirpar um peixe, além do cheiro, tinha todo aquela gosma horrível. Era uma parte do trabalho que eu não gostava, e por sermos em três só fiz duas vezes, que foram o suficiente para eu aprender e odiar o ato.
Hoje chegaríamos ao Porto de Pireu, a uma hora de Atenas, não pensei que seria tão rápido e tranquilo. Não sabia para onde iria nem o que aconteceria depois que chegasse, mas eu sabia que tinha que resolver minha vida por lá, sozinha, pela primeira vez eu não teria meu pai comigo, acompanhando-me e apoiando como sempre tive desde pequena. Agora a única coisa que eu tinha dele, era uma carta, um presente de casamento do qual ele sempre foi contra. A entrega desse presente foi a última vez que o vi desde que decidi casar com William. Falávamo-nos por telefone, mas ele não me visitou mais depois de saber o que eu tinha feito. Não sei se por telefone, um dia ele desconfiou o que me acontecia, eu sabia que ele não aprovava e que pela primeira vez eu concordava com ele em não aprovar meu envolvimento com William, por isso não o deixava tocar no assunto, sempre desviava quando ele perguntava se tudo estava bem, desviar e retroceder era o que eu fazia. Eu não conseguiria mentir, porque as lágrimas cairiam, e não poderia contar, porque eu não conseguiria parar de chorar e se eu contasse, era algo sem volta, e além de me machucar, machucaria quem me ouvisse.
Parecia tudo muito caótico. E olhando agora estando longe de toda a situação que me meti. Eu lembrava de tudo como se tivesse vivido há anos, não há apenas alguns dias. Em meses de romance, eu tinha me entregado, tido a ilusão de ter conhecido o homem da minha vida, me casado, fui traída, e em seguida quase casado novamente. E no meio disso tudo eu tinha aprendido como um homem poderia ser mau, um verdadeiro monstro.
No meu caso eu sempre achei que não aconteceria comigo, sempre fui bonita, inteligente e incapaz de acreditar no amor real de um homem e uma mulher, jamais me imaginei em uma situação na qual fui parar. Enquanto eu crescia, de criança a adolescente eu não me aproximava muito dos meninos, tanto que meu primeiro beijo só aconteceu aos 18 anos, depois do meu primeiro desfile. Foi com um dos convidados, Shaw era esse seu nome, era sócio da empresa de sapatos para quem desfilava, eu senti atração por ele, uma química, ele era bom de conversa, simpático e viajava pelo mundo inteiro aquilo me chamou atenção como nenhum homem jamais me chamara. Beijá-lo foi algo novo, e só aconteceu novamente depois que conheci William.
Pensar sobre tudo que me aconteceu era como se tudo doesse de novo, como se os machucados acontecessem de novo, e perguntas as mesmas que me rondavam quando as surras terminavam e exclusivamente uma específica.
Onde eu tinha errado?
Não deveria me perguntar isso no fundo, eu sabia, mas isso fazia parte de um tormento profundo que eu criei após as surras que talvez nunca sumissem.
Talvez aqui na Grécia eu conseguisse pelo menos esquecer e ao esquecer eu conseguisse me encontrar novamente, encontrar a velha eu, a Mary antes de William, antes de todo o desastre do amor e da prisão que ele me trouxe.
Olhei em volta começando a perceber que o mar parou de me rodear, para ser tomado por grandes rochas, deixando para trás todo aquele vazio azul, observei não mais à frente e sim os lados, eram rochas enormes que me lembravam os grandes prédios de Nova York.
Admirar aquela vista era como ver através de um retrovisor em zoom máximo de uma câmera, era esplêndido, era uma cena magnífica, mas que sumia e aparecia. Algo mágico.
Respirei fundo e fechei os olhos sentindo a brisa profunda e forte batendo contra meus cabelos. E ao abrir os olhos vi uma cena estonteante, e sombria que arrepiou cada pelo do meu corpo.
— Assustador, não é? — falou Ulisses chegando ao meu lado. O barco estava sendo levado apenas pela onda do mar, sem mais o roncar do motor. Algo notável, mas não tanto quanto a vista. — Sabe o que essa ilha me lembra? O filme do conde Drácula, feito em 1970. Esse castelo sem dúvida me lembra o do Drácula, a não ser pelo fato de ser em uma ilha no meio da Grécia.
— E por não ter um Drácula – comentei, ainda sentindo um frio percorrer minha espinha.
A imagem era assustadora e encantadora ao mesmo tempo. Um castelo, rodeado por rochas, no meio do mar. Apenas ali, parecia que as ondas batiam violentamente. O castelo, suas paredes e sua torre pareciam estar caindo, sujas e imperfeitas. Não tinha janelas abertas, e nenhum barco à costa, apenas algumas árvores o rodeavam.
— Bom, isso eu não posso comprovar, segundo a lenda pode até não ter um Drácula, mas há um homem sozinho que mora no castelo segundo os pescadores. Há algum tempo, mais ou menos uns cinco ou seis anos atrás um homem se mudou para esse castelo, ele passou pela cidade como um fantasma, levou comida suficiente para seis meses no máximo e pagou para um dos pescadores para trazê-lo até o castelo. Depois disso, esse homem nunca mais foi visto. Vieram procurá-lo, depois de um tempo, mas não o acharam vivo nem morto. Então partiram e colocaram o castelo à venda. Não sei se foi comprado ainda, mas depois que boatos começaram a surgir dizendo que o homem reaparecia para espantar os pescadores da ilha que é muito farta de peixes e do acidente do pescador que decidiu vir pescar nessa região exatamente aqui onde estamos, longe o suficiente, mas perto o suficiente para irmos até lá se algo acontecesse com o barco, foi o que aconteceu com o pescador. Ele não esperava, mas o barco dele por acaso quebrou e nos últimos instantes ele decidiu se dirigir para lá, e foi o maior erro da vida dele.
— Por quê? — perguntei, vendo que ele se calou de repente.
— Porque ele nunca mais voltou – disse por fim.
Eu não me assustava, mas aquela história tinha me deixado curiosa.
— Não procuraram pelo pescador? – perguntei.
— Ninguém nunca teve coragem, Mary, e além do mais, todos dizem ser uma história, a não ser eu, e mais três pescadores que conheciam o Antônio. Ele era amigo de Aquiles.
— Então não é história de pescador?
— Pelo menos não para mim, mas acabou virando, depois que o menino nunca mais apareceu e foram encontrados apenas destroços do barco — falou Ulisses, ele me analisou e sorriu voltando ao seu humor natural. — Falta pouco para chegar em Pireu, de lá irei te levar até Atenas para vender o vestido e depois lá o destino é da sua escolha. Um conselho? Fique em Pireu, é o melhor ponto para se morar. Menos população, menos fofoca. Menos chance de te acharem se realmente estiver fugindo como acho que está – falou antes de voltar para a cabine. Ulisses era um homem esperto e eu sabia que era impossível esconder o que estava óbvio. Quem pulava em um barco em movimento vestida de noiva se não estivesse fugindo do noivo?
Logo estaria em terra firme.
Toquei o colar que meu pai me deu aos 5 anos. Ele mesmo tinha feito. Era em formato de cavalo. Uma égua selvagem, segundo ele. Fugia do que as prendia, e procurava a liberdade pelas selvas adentro, sempre solitária, apenas com a companhia do vento e do mar. Era como eu, ele dizia. Retirei o envelope do bolso, que meu pai me entregou. Havia três semanas que aquela carta tinha chegado ao apartamento de William, e eu havia guardado comigo para onde eu ia. Era a primeira vez que tinha contato com meu pai, além dos simples telefonemas. Era um envelope pequeno de carta, branco, que dizia não abra e um feliz aniversário adiantado. Meu aniversário era daqui a 14 horas. Eu faria 20 anos, e naquele envelope tinha meu presente.
Passei os dedos levemente na protuberância que tinha um formato explícito de uma chave comprida. Queria muito saber o que ela abriria, e o que era meu presente, mas eu esperaria até amanhã, como tinha esperado essas semanas inteiras, ansiosa.
Esse envelope e esse colar eram tudo que me restava de casa, da minha verdadeira casa.
PV Marylin DarlinghtonAssim que desci do barco uma rajada de vento veio em minha direção como se me desse boas-vindas, era refrescante e novo de uma forma que eu não entendia, sentia que estava de volta com a minha liberdade e com um pouco do meu eu.Andei pelas ruas acompanhando Ulisses e Aquiles, observando aqueles rostos novos e desconhecidos, sorridentes e alegres, aqui era o oposto de tudo que vivi nos últimos meses, o sol acima de mim queimava e revigorava cada célula do meu corpo, cada machucado do meu coração, e cada pensamento ruim da minha mente. Era um novo mundo, novas pessoas, um novo começo surgia aqui. — Mary. — Virei-me para Ulisses que sorria me observando. — Você combina com esse país, e essa cor fica bonita em suas bochechas, parece uma menina com um brinquedo novo.Sorri em sua direção, um sorriso que há muito tempo eu não dava e o respondi: — Eu acabei de ganhar algo maior que qualquer brinquedo — respondi e andei alguns passos à sua frente antes de Aquile
PV Marylin DarlinghtonAssim que saí do templo encontrei Ulisses encostado na moto, desci as escadas e parei em sua frente. — Agora irei te mostrar o restante da cidade.***Ulisses me mostrou toda a cidade de Atenas em quase três horas de passeio, paramos para comer, e fazer as compras para o almoço que sua esposa prepararia para nós.Agora estávamos na última parada para irmos de volta a Pireu. Ulisses estacionou em frente a uma grande loja com belas vestimentas na vitrine. — Essa é a melhor loja de Atenas. Aqui há compra e venda de tecidos, assim como tem a melhor costureira da cidade.Desci da moto carregando a sacola que continha a última parte da minha vida na Riviera Francesa.Passei pela porta que Ulisses abriu para mim e no mesmo momento paralisei no lugar. — Divertido, não é? — Incrível seria a palavra certa.Aquela loja era diferente de tudo que eu já tinha visto, tecidos circundavam as paredes, e o teto era de várias cores diferentes, não tinha começo nem fim, parecia
PV Marylin Darlinghton Ulisses dirigiu para casa de forma rápida e ansiosa enquanto passávamos pelas ruas, pelos moradores e turistas que curtiam o sol, a ansiedade de Ulisses tinha passado para mim enquanto dirigia, então quando paramos comecei a me preocupar, enquanto ele ficava calmo. — Ela vai adorar você — disse ele enquanto segurava as sacolas deles e as minhas e me guiava em direção à entrada da casa.Uma mulher apareceu em nossa frente, carregando uma enorme travessa, ela parou notando nossa presença. Ela olhou em minha direção sorridente e em seguida olha para Ulisses com os olhos cheios de lágrimas, antes de deixar a travessa em cima da mesa de centro e correr para os braços dele. Afastei-me e observei a cena, sorrindo. Ela era uma mulher morena e de lindos olhos azuis e profundos, tinha um sorriso encantador no rosto, mesmo que já tivesse algumas marcas da idade, ela tinha um ar puro e feliz, e observando os dois ao longe dava para sentir o amor deles, a paixão ainda
PV Marylin DarlinghtonOlhei para as ruas de Pireu, seria minha última volta, minhas últimas compras nessa cidade por um longo tempo.Acompanhei Ulisses pela feira dos pescadores, rindo com as piadas e as explicações de Aquiles que me acompanha com o braço ao meu redor, ele não me largou desde que soube da minha viagem para a Ilha do Pescador. — Você poderia ficar mais um pouco, posso te ensinar a pilotar o barco, a pescar com arpão, a cozinhar um bom camarão, a beber conhaque sem engasgar, tenho tanta coisa para te ensinar, Mary. — Desde quando você cozinha? — Desde o momento em que você disse que vai para a ilha do pescador. Posso cuidar de você, Mary, posso te ensinar as coisas boas da vida e posso te proteger, ninguém vai te machucar se eu estiver ao seu lado. — Olhei para Ulisses que tinha parado de andar para olhar para mim e Aquiles, ele sorriu para mim e voltou a andar. — Aquiles, eu... Preciso me encontrar, encontrar de novo minha liberdade, mesmo que seja em uma ilha, eu
PV Marylin DarlinghtonA viagem de barco para meu novo destino foi rápida e constante como as batidas do meu coração que estavam aceleradas, o pescador me ajudou a colocar todos os meus mantimentos em cima da areia tão rápido quanto ele podia e em seguida partiu, sem me dar a chance de agradecê-lo. Eu o vi partir deixando-me a sós com a ilha e seu enorme castelo.Olhei em volta, peguei as sacolas mais pesadas levando-as para o grande castelo que se erguia, as nuvens negras que começava a se formar no céu me preocupavam, subi à costa de pedra que se erguia como um grande muro de proteção ao redor do castelo até finalmente enxergá-lo em todo seu esplendor e em seu estado degradado à minha frente.Coloquei as sacolas em frente à porta que em breve eu abriria e desci a costa novamente para pegar o restante das sacolas, conseguindo trazer todas, parei em frente a porta e respirando fundo, peguei a chave que tanto eu guardara, coloquei na velha fechadura que rangeu como se há décadas não fo
PV Marylin Darlinghton Um novo dia, um novo recomeço. A tempestade tinha ido embora, e agora eu começaria a fazer daquele castelo minha casa.Levei todas as sacolas com meus suplementos para a enorme cozinha, depois subi os andares entrando em cada quarto e abrindo suas enormes janelas, andar por andar.E só então abri a porta do meu castelo, recebendo o quente calor que o sol me oferecia, e a bela vista da minha ilha e do seu enorme mar, me atrevi a andar em direção à floresta que se estendia, mas fui impedida ao ouvir um barulho vindo do galpão, era grande e parecia ser um motor de barco, andei em direção ao galpão atrás do castelo, sentindo um frio que não conduzia com o enorme calor que fazia, entrei no celeiro notando sua porta aberta, a qual eu não deixei na noite passada, observei o enorme gerador de energia rodar, o teto do galpão estava aberto, e o sol irradiava em direção aos seis painéis solares que não existiam na noite passada. — Como isso é possível? — Olhei em vo
PV Marylin DarlinghtonNão sei como, mas consegui dormir na banheira, e acordei com a sensação de estar sendo observada, senti o mesmo frio subir por todo meu corpo, quando abri os olhos e vi um vulto passar pela pequena fresta da porta entreaberta, levantei e corri em direção à sombra, mas quando alcancei as escadas para descer para o segundo andar, já não a vi mais.Olhei em volta e desci os andares, até o escritório, abri a porta verificando se não havia ninguém lá e entrei, tranquei a porta e respirei fundo. Peguei a toalha que deixei em cima da mesa do escritório e me cobri. — Pensei que tinha um acordo com você — disse para o nada, peguei as bolsas com roupas e as puxei para mim, examinando cada uma, escolhendo um vestido branco, com grandes girassóis amarelos, e uma calcinha branca de algodão simples, eu estava com fome, tinha que enfrentar o que quer que estivesse lá fora. — Vou sair e estou vestida, e não entrarei mais no seu quarto — disse abrindo a porta e olhando pelo ext
Marylin Darlinghton15 dias depois...Saí do galpão, anotando em meu caderno o que restava dos meus suprimentos, contava detalhadamente cada um e em seguida eu voltava para o meu pequeno plantio que crescia cada vez mais, regava-os, replantava, mexia na terra, voltava para dentro sentava no escritório e como um presidiário eu marcava quanto dias tinha se passado, anotava cada momento em uma agenda, depois cozinhava uma nova receita que depois de ler e reler e errar eu acertava o ponto, e a tarde eu sentava no sofá, acendia a lareira e pegava um dos vários livros de romance que na infância eu não li, essa semana era Orgulho e Preconceito, com a vela ao meu lado eu lia, absorvendo cada palavra enquanto a luz de fora ia sendo substituída e o castelo era tomado pela escuridão e pelo frio, já não acendia as luzes há 15 dias, estava economizando cada vela, cada fósforo que acendia, e aos poucos me acostumei a cada canto e a escuridão sendo tomada, já não sentia a necessidade da luz, a não s