O frio já estava impregnado no ar, misturado ao cheiro da lenha queimando e ao aroma familiar de peru assado. Desde criança, sempre senti que o Natal tinha um cheiro próprio—uma mistura de especiarias, doces de baunilha e gengibre sobre a mesa, e o calor das luzes piscando na árvore.Eu já havia escolhido minha roupa, arrumado o cabelo e separado a maquiagem que tentaria passar para parecer mais "feminina", como minha avó adorava sugerir. Mas, naquele momento, minha atenção estava na árvore de Natal, ajustando os enfeites quando vi minha mãe andar de um lado para o outro, agitada como um peru prestes a ir para o forno.— Mãe, está procurando alguma coisa? — perguntei, observando-a com curiosidade.— Meu casaco azul-escuro. Pode pegar para mim? Está no closet. Preciso sair para a cidade.Assenti, sem pensar muito, e segui para o quarto dela. Eu já sabia onde estava—pendurado no cabide mais alto, à esquerda. O tecido pesado e elegante sempre foi a escolha dela quando queria parecer mais
O som das minhas botas ecoa pelo piso de madeira da varanda. Observo os vidros das janelas levemente embaçados; parece tudo normal. O inverno impiedoso e rigoroso já começa a se mostrar, e as nuvens pesadas e escuras cobrem praticamente toda a paisagem de Jackson.Observo a porta entreaberta, e um ar quente é emanado de dentro da casa.Voltar para casa depois de dois anos deveria ser reconfortante. Mas tudo estava igual – e eu, completamente diferente. Antes, achei que faria medicina pelo resto da vida. Agora, nem sei direito o que estou fazendo aqui.— Filha? — Escuto a voz rouca do meu pai vinda da cozinha. — Ellie! Que bom que voltou!Sorrio, vendo o velho barrigudo que meu pai se tornou durante minha ausência.— Jimmy Carter! — Exclamo seu nome, sabendo que ele não gosta que o chame assim. — Como você está, pai?Ele sorri, mostrando como o tempo foi cruel. Estava em Denver estudando por dois longos anos, mas sempre fui incentivada a estudar. O problema é que não o vejo há muito te
Era mais ou menos oito da noite quando minha mãe decidiu aparecer em casa, e, sinceramente, ela não parecia muito bem. Não sei o que aconteceu enquanto estive fora, mas talvez descobrir o que houve ajude a entender melhor a situação dela.— Então, James, por que Callahan? — Ela perguntou, mordendo a comida sem muita atenção. — Não é brasileiro?Ele assentiu com a cabeça, enquanto bebia um gole do uísque ao seu lado, os olhos sem foco.— Eu sou, mas meu pai não — murmurou, e eu senti meu olhar se fixar nele. — Nasci no sul do Brasil, mas a família do meu pai tem um rancho aqui, um lugar antigo.— Ah, que interessante, não sabia que já conhecia essa região — ela murmurou, embriagada pela mistura de cansaço e álcool.— Mais ou menos. Ainda sou muito novo para me considerar bem viajado — ele sorriu, antes de continuar. — Mas meu pai casou com uma brasileira. Temos fazendas aqui e no Brasil.Meu pai assentiu com um ar de aprovação.James deu mais um gole, e então seus olhos se encontraram
Enquanto cavalgo em Black Jack, observo a paisagem do rancho à distância. James e eu estamos indo até os Benett buscar as correntes para os pneus da caminhonete. Eles pegaram emprestado no ano passado e disseram que devolveriam, mas o tempo passou e nada foi feito.— Earl é um homem bem ignorante — murmuro, sem desviar o olhar.James me olha por baixo do chapéu e sorri de leve.— Assim como a maioria por aqui — responde, a voz carregada de um tom de quem já se acostumou com isso. — No começo, incomoda. Depois, você aprende a deixar passar.— E seu pai, James? — pergunto, ainda olhando para a paisagem, tentando não pensar no que estava prestes a acontecer.— Bom... ele foi casado com uma brasileira. Então, digamos que aprendeu a ser mais educado com ela. — James ri baixo. — Antes disso, era um sujeito insuportável.Assenti, compreendendo o peso das palavras.— O casamento dos meus pais foi arranjado pelos meus avós, então minha mãe... bem, ela não tem muita paciência por ele. — Um sorr
A noite demorou a passar. O celeiro rangia a cada assobio do vento, e parecia que, a qualquer momento, estaríamos no meio dos escombros daquele lugar.James, por sua vez, dormiu a noite toda. E eu agradeci pelo seu calor corporal, afinal, estava quase congelando. No fim, deu tudo certo, e o dia finalmente chegou. O amanhecer foi bem frio, e a tempestade durou a madrugada inteira, há quase um metro de neve acumulado na porta do celeiro.— O que vamos dizer ao meu pai? — pergunto, observando minha mão. Ela não inchou tanto por causa do frio do lado de fora.— A verdade. Não quero mentir para ele — murmura James, finalmente abrindo a porta.Uma quantidade pavorosa de neve cai dentro do celeiro, e eu respiro fundo, observando James se estressar com isso.— O aquecedor vai ter que esperar — ele murmura, saltando para o lado de fora.Faço o mesmo. O chão está coberto de neve, a grama congelada, e as árvores quase sem folhas. Está lindo como sempre.Havia me esquecido da beleza de um inverno
Assim que chegamos em casa, minha mãe estava sentada na sala, fumando um cigarro e coberta com sua manta de sempre. Assim que me viu, negou com a cabeça.— Acabei de ficar sabendo que brigaram no rodeio – ela murmura, e eu reviro os olhos.Meu pai e James apenas observam.— Você voltou para casa agora, e em menos de uma semana já está causando, Ellie? – Ela pergunta, e eu solto um riso debochado.— Como se você pudesse falar alguma coisa – murmuro entre dentes, fazendo ela levantar da cadeira com as sobrancelhas arqueadas, parecendo enfurecida.— Como é? – Ela pergunta em um tom desafiador, o que me deixa ainda mais irritada. Não quero sermão de uma mãe que nunca foi presente, não mesmo.— Eu disse que você não pode falar de mim – murmuro em um tom mais alto que o dela, fazendo ela tremer de raiva. – Mal te vejo, e quando te vejo, você está bêbada ou fumando.— Ellie... – meu pai tenta me parar.— O que você fez para ela te odiar tanto, pai? – Pergunto, observando-o. Ele apenas fica i
Eu tento ignorar James. De verdade, tento. Mas, à medida que o tempo passa, cada risada das minhas amigas soa mais distante, como se o mundo à minha volta fosse uma tela embaçada e eu estivesse presa no lugar errado. Ele está ali, perto, falando com um dos filhos dos Benett, o copo de cerveja na mão, e um sorriso que não chega aos olhos. Seus amigos riem, e a conversa parece leve, mas eu sinto o peso daquela discussão, das palavras cortantes que trocamos, ainda pairando no ar.Tentando me distrair, mudo de posição, mexo no celular, falo com minhas amigas sobre qualquer coisa que não envolva ele. Mas, em algum momento, não consigo mais me concentrar nas piadas delas. O coração começa a bater mais rápido, e eu não sei se é por raiva, frustração ou simplesmente pela tensão que ainda existe entre a gente. Eu queria que ele tivesse me procurado, falado alguma coisa, mas ele não fez. Está ali, com a cerveja e com o olhar distante, como se eu fosse uma estranha.É quando me levanto para ir a
Algumas horas se passam na festa. James foi embora logo após nossa conversa, e eu saí algum tempo depois. Enquanto dirijo a caminhonete, uma música toca direto do pendrive da minha mãe—um country romântico, quase melancólico demais para o momento.Respiro fundo, mantendo os olhos na estrada, mas antes que possa avançar, vejo algo que me faz pisar no freio de imediato. Um cavalo está caído no meio do asfalto, a pata presa em uma armadilha para lobos. Ele relincha de dor, e meu coração aperta. Droga, vou ter que ajudá-lo.Paro a caminhonete no acostamento e analiso a situação. Sua pata está machucada, mas, para piorar, minha mão ainda está inchada e dolorida. Observo o animal com cautela; não faço ideia de quem seja o dono, mas ele parece manso. Vou até a caminhonete e pego uma das cordas usadas para prender a carroceria, amarrando-a ao redor dele para evitar que fuja assim que estiver livre.Em seguida, posiciono minha bota sobre a armadilha e forço com todo o peso do corpo. O metal es