Havia precisamente dois anos desde que a Guerra fora declarada. O país estava como um caldeirão fervente prestes a desmoronar e Jane Hartford, agora com 19 anos, passara todo este tempo trabalhando entre pessoas que não tinham vergonha alguma de condenar o rei e reclamar dos impostos, da fome e da falta de um propósito real por trás daquela Guerra. Protestos explodiam por todo o país, centenas de livros eram publicados e, todos os dias, um homem famoso e irritado mandava outro homem famoso e irritado calar a boca pelos jornais.
Todos estavam resistindo e dizendo algo sobre a situação, então Jane decidiu que já estava mais do que na hora de fazer o mesmo. Já que ela sempre pensara que suas palavras soavam melhor escritas do que faladas, ela estava convencida de que escrever um livro era a maneira mais esperta de fazer isto – sem contar, é claro, que seu pai teria um ataque cardíaco se ela começasse a discursar em banquetes, ou pior, protestos de rua.
Tal ideia deveria permanecer em segredo absoluto, mas ela não poderia suportar escondê-la de sua irmã Georgie, agora já chamada Lady Lockhart.
As duas estavam sentadas na elegante sala de estar da mais velha, apreciando uma boa xícara de chá, quando Jane contou à Ge a novidade:
– Estou determinada, Ge! Escreverei um livro e pedirei a Tom que me ajude a publicá-lo.
A irmã pôs a xícara na mesinha e Jane notou que ela se movia com uma lentidão em demasia.
– Desculpe... Tom? – ela perguntou com olhos semicerrados.
– Sr. Harvey – Jane explicou.
Georgie mordeu o lábio inferior, preocupada pela irmã.
– Jane, eu não tenho a menor intenção de tentar te convencer a deixar esta ideia de lado, – disse Georgie –, mas preciso lembrar-te de que o papai não ficará nada satisfeito.
– Acredita, Ge, estou ciente disso – respondeu Jane erguendo as sobrancelhas. – Ele não tem sido muito fã de Harvey ultimamente porque este tem publicado "conteúdo subversivo" e o papai teme que isto esteja "contaminando" meus pensamentos.
Georgie tomou um gole de seu chá.
– E, apesar disso, tu decides confrontá-lo escrevendo teu próprio "conteúdo subversivo"? – ela arqueou uma sobrancelha.
Jane se engasgou ao rir da expressão dela.
– Deus, não! – respondeu. – Não pretendo enfrentar a fúria de Lord Hartford. Usarei um pseudônimo. Se Tom decidir publicar meu livro por conta própria, ele entenderá que não posso promovê-lo publicamente e por isso encontrará outras maneiras de fazê-lo.
– Ah, minha irmã, – começou Ge –, estou feliz que estejas animada com isso, mas não creio que acabará bem...
Georgie tentou colocar a xícara de volta à mesa, mas, dessa vez, ela caiu no chão, espalhando um pouco de chá na barra de seu vestido.
– Ah, não! – choramingou ao abaixar-se para analisar a bagunça que havia feito, mas, no segundo em que o fez, seu cabelo se moveu de forma que Jane pôde ver uma grande mancha vermelha em seu pescoço.
– Céus, Ge! O que foi isso aí? – gritou Jane.
Georgie disse-lhe que não era nada, mas o modo como ela levantara imediatamente e o tom baixo de sua voz induziu Jane a pensar que era uma mentira. Apenas ao olhar a expressão de Ge, Jane pôde enxergar que ela estava ansiosa por agir como se aquilo não fosse algo digno de atenção.
Uma empregada apareceu na porta e Georgie ajeitou o cabelo antes de pedir a ela que limpasse o chão.
Jane esperou até que ela se retirasse antes de perguntar à irmã sobre a mancha vermelha.
– É apenas um hematoma bobo, Jane, não te preocupes.
– Bobo, como? – ela indagou.
Ge aparentava estar inquieta e desejando mudar de assunto.
– Um livro pesado caiu da prateleira bem em minhas costas – ela fingiu uma risada. – Honestamente, é ridículo o quão desajeitada eu sou, fico morta de vergonha.
Jane a fitou por alguns instantes e ela inconscientemente se encolheu um pouco sob o olhar da irmã mais nova.
– Por que eu acho que esse "livro" diz respeito ao teu querido marido? – Jane finalmente perguntou.
Georgie desviou o olhar e esfregou as mãos na saia, endurecendo a postura.
– Não sejas ridícula – disse à Jane em tom de frieza.
A mais nova observou-a e se sentou mais perto dela para pôr uma mão em seu ombro. Os olhos dela já estavam cheios de lágrimas só de imaginar todo o sofrimento que Ge deveria estar passando durante aqueles dois anos.
– Ge, – Jane mordeu o lábio –, por que não me disseste? Há quanto tempo isso está acontecendo?
Georgie a encarou. Desta vez ela parecia furiosa.
– Que diferença teria feito? – disse Ge em voz baixa, mas afiada. – O que tu poderias ter feito para me ajudar a conceder-lhe um herdeiro? Nenhum homem bate na esposa sem um motivo.
Jane respirou pesadamente. A ideia de que sua irmã estava apanhando do próprio marido e acreditava que ele tinha o direito de fazer aquilo partia-lhe o coração.
– Talvez eu não pudesse fazer nada para impedi-lo, – ela disse –, mas eu poderia ter te lembrado de que tu não mereces nada disso. Deves parar de punir a ti mesma quando, claramente, ele é o único que merece uma punição.
Georgie revirou os olhos e comprimiu os lábios, indignada.
– Como podes dizer que não mereço? Sou uma esposa, é meu dever dar um menino a meu marido; meu casamento pode ser anulado se eu não fizer isso.
Jane suspirou.
– O único dever de ambos é tratar um ao outro com respeito – ela disse com firmeza. – Se ele não está disposto a fazer o mínimo, talvez uma anulação seja a melhor opção que tu tens, afinal.
Georgie balançou a cabeça.
– Escuta a ti mesma, Jane! Os papeis masculinos e femininos são muito bem definidos e há uma grande diferença entre os dois. Não cabe a nós questionar...
– Mas não deveria ser assim – Jane a interrompeu. – Quanto mais cedo percebermos isso, mais cedo esta estúpida e injusta diferença será extinta. Dói pensar que tu terias concordado comigo em um piscar de olhos antigamente... Esse homem está destruindo-a de dentro para fora!
Ela se levantou num salto.
– Jane, para! – Ge a repreendeu. – Tu sabes que não há nada que possas dizer a Lord Lockhart...
– Não há nada que eu possa dizer a Lord Lockhart, – disse Jane, pegando suas coisas –, mas há algo que posso fazer. Existe um motivo para eu ter decidido me tornar uma escritora e este motivo é que eu prometi a mim mesma que não ficarei em silêncio; não mais.
–Estou infeliz com a situação dela, minha senhora–disse Lord Hartford.–Eu penso, sim, que Lockhart é um covarde por tratar nossa amável filha assim, mas... –Mas o quê?–sua esposa interrompeu com olhos flamejantes.–Não acabamos de ouvir a mesma conversa? Jane disse que tua filha mais velha está tão descontente que mal consegue fingir um sorriso ou se concentrar em qualquer coisa por muito tempo. Ele a observou, atônito. A respiração dela estava pesada; os olhos estavam vermelhos e arregalados; seus pés tocavam no chão tão ruidosamente quanto podiam quando ela dava voltas no cômodo. Ele nunca a vira tão alterada. –És o pai dela!–Lady Hartford continuou.–O mínimo que deverias fazer é ficar ao lado dela. –Georgiana, meu amor,–ele andou em sua direção e pôs uma mão em suas costas–, eu sempre estou ao lado dela. Eu jamais disse que ele está cert
"Onovogoverno é, em conclusão, apenas uma nova forma de deixar as coisasantigas," Edmund leu em voz alta para seus amigos da turma de direito. Ele suspirou. –Eu disse que esse tal de Hartford era bom!–disse um rapaz magricela sentado ao lado dele. –Peter,–respondeu Edmund–, estás sendo injusto em classificá-lo como bom. O homem é um gênio! Estou até pensando em citá-lo na minha próxima redação... Peter rapidamente arrancou o jornal de suas mãos. –Não te atrevas! Nem sequer terias ouvido falar dele se não fosse por mim. As frases eloquentes dele vão garantir asminhasboas notas. Edmund deu de ombros. –Não é como se eu precisasse mesmo... Os rapazes reviraram os olhos e o pequeno Peter tentou dar um soco no braço de Edmund, o que só causou uma risada de todo o grupo. –Juro por Deus, Hawkins,–&n
Havia apenas uma coisa sobre a qual as pessoas falaram por semanas: um terrível artigo no Jornal do Amanhã com histórias escandalosas sobre mulheres sendo maltratadas das maneiras mais angustiantes pelos seus maridos e um ataque direto à posição de consentimento do governo. Algumas pessoas argumentavam que as histórias não eram reais, mas simplesmente o resultado da mente degenerada de um homem velho chamado Jude Hartford e isto fazia sentido porque outros afirmavam que conheciam o autor em pessoa e que ele era um senil que nunca tivera controle sobre a esposa e, portanto, escrevia aquelas loucuras para se sentir bem consigo mesmo. Embora as histórias fossem anônimas, o que sugeria que eram, de fato, inventadas, algumas pessoas começaram a encontrar traços semelhantes às vidas dos vizinhos e os rumores se espalharam o suficiente para que não tivessem mais tanta certeza de que haviam sido inventadas afinal. O impacto que o artigo de Jude teve foi tão grande qu
Thomas Harvey era o tipo de homem que tinha um bom faro para os negócios e ele acreditava de verdade no sucesso de Jude Hartford, mas nem ele poderia ter previsto o quão bem-sucedidas as vendas seriam. Peter conseguiu comprar uma cópia de "Onde Acaba a Liberdade e Começa a Lei" antes que elas esgotassem e compartilhou-a com Ed e o resto do grupo assim que acabou de ler. Até um professor deles foi visto levando uma cópia na mão pelo campus. O livro se tornou tão popular que alguns revolucionários começaram a mencioná-lo em seus discursos e o coração de Jane derretia todas as vezes que ela os ouvia na casa do sr. Bentley. Ela dava seu melhor para não levantar suspeitas, especialmente porque o governo estava investigando muitos colunistas que discordavam de suas decisões, mas ela não podia evitar olhar de relance para Ge agora que ela estava acompanhando-a aos jantares. Havia sempre esse íntimo segundo entre as duas em que elas aproveitavam a ideia de que ambas sabiam a
Lord Hartford parou de ler seu jornal apenas para olhar Georgie comendo seu café-da-manhã calmamente, então voltou para sua leitura. Gostasse ou não, ela era uma mulher casada e isso significava que, diferentemente dele, de Jane e de Charles, ela podia tomar o café na cama; mas ela nãoqueriase comportar como uma mulher casada e, embora ele não dissesse nada a respeito, isso o incomodava mais do que qualquer um podia imaginar. –Para com isso!–reclamou Jane empurrando as mãos de Charles para longe de seu prato. O menino estivera roubando a comida dela a manhã inteira. Ela fitou John e perguntou: –Papai, vais dizer algo? Ele permaneceu focado no jornal, mas respondeu em um tom ensaiado: –Charles, para de chutar tua irmã. O garoto sorriu maliciosamente. Estava tão convencido da falta de atenção do pai que nem se deu o trabalho de dizer a ele que não chutara a irmã sequer uma vez na
–Adivinha!–falou Peter. Edmund, tranquilamente sentado na grama, desviou os olhos do livro e franziu o cenho para observar o amigo bloqueando a luz do sol. –Finalmentetomaste coragem e pediste a srta. Bentley em casamento! Peter bufou. –Para de me pressionar, sabes que quero ter certeza de seus sentimentos antes de pedir... –Ainda? O que mais ela pode fazer? Escrever "Eu amo Peter Langley" na testa? Peter revirou os olhos. –Chega, não? –Diz logo o que é tão importante a ponto de interromper minha leitura. Peter observou-o pôr o livro de lado e então falou: –Já leste os jornais hoje? Edmund respondeu que não e Peter começou a ler o jornal que levara consigo: –Jude Hartford, o autor que, ultimamente, desrespeitou todos os valores morais possíveis e a própria instituição sagrada da família,–ele parou para revirar o
Jane adentrou a sala como um animalzinho inocente e assustado. Havia cerca de três semanas desde que ela se mudara com a irmã para a casa dos Bentley e ela não estivera no escritório do sr. Harvey sequer uma vez. De fato, ela evitara sair da casa durante todo aquele período e não lera nenhum jornal.Ela bem dissera ao pai, pouco antes de ir embora, que ela não iria se desculpar por quem era, mas a verdade era que, agora, este pensamento só lhe trazia vergonha. A mera ideia de sair e enfrentar a todos era completamente perturbadora e ela achou melhor pedir à Ge e Eleanor que não mencionassem o nome "Jude" por um tempo.Jude era corajosa, destemida na busca por seus sonhos apesar de todas as desvantagens, e Jane não se sentia nem um pouco como Jude agora.Enquanto ela não se julgasse digna de carregar o nome Jude Hartford junto de sua verdadeira identidade, não queria ouvir o
Poderia ter sido uma completa coincidência, mas a verdade é que Jane escolheu alugar aquele apartamento justamente porque percebeu que ele ficava perto de um endereço que ela estivera morrendo de vontade de visitar. Entre as muitas cartas de agradecimento que o sr. Harvey lera para ela um mês antes, uma continha um convite e ela não conseguira pensar em outra coisa desde então. Ela poderia, é claro, ter visitado a autora da carta, sra. Brown, e perguntado sobre o Chá das Damas, mas ela estava nervosa demais para isso. Jane pensava que a sra. Brown e as outras moças provavelmente tinham altas expectativas, que esperavam pela obstinada Jude, e por isso temia que se decepcionassem com sua personalidade pouco chamativa. Jude era como fogo nas páginas, mas Jane era frágil na vida real; não podia ser a heroína de alguém. Não fosse pelo acordo que fizera com Georgie, ela provavelmente demoraria uma eternidade para ir até lá ou talvez nem fosse. As irmãs deci