— Mas de onde você o conhece? — Rebati, balançando a mão.

— Eu não o conheço! — Rebateu de bate-pronto — ele conversou comigo lá no coquetel e depois perguntou se poderia me dar uma carona até em casa e eu aceitei, mas ele é tão gato, Nina... — Acrescentou, parecendo imersa nas lembranças. — Você tinha que ver.

Franzi o cenho em resposta e apoiei o meu cotovelo na coxa, cobrindo a boca com a mão, sem desviar o olhar dela, e me perguntando mentalmente o que se passava na cabeça dela. Na teoria, eu sabia muito bem o que estava se passando agora, mas a minha pergunta não se tratava disso em si, mas do juízo propriamente dito que essa garota não tinha.

Como ela conseguia ser assim tão desapegada das pessoas?

— O que foi? — Questionou assim que constatou o meu olhar por muito tempo sobre ela.

— Eu não sei. Ainda estou pensando... — informei — Você transou com um desconhecido no carro. É isso?

Ela balançou a cabeça positivamente em resposta. Ela não parecia ter problemas em falar sobre sexo, o negócio dela era o compromisso que isso envolvia.

— O problema todo não é esse. — Apontou, se levantando com pressa do sofá, indo até a geladeira e pagando o pote de sorvete que guardara lá mais cedo.

— Traz uma pra mim... — Pedi, e ela puxou a gaveta, retirando duas colheres.

— Ele quis me trazer até aqui. — Sussurrou de volta, como se mais alguém tivesse ouvindo e depois, passou a colher no sorvete, levando-a a boca.

— Mas não era esse o intuito? — Inquiri confusa com as explicações dela. — Te dar uma carona?

Os olhos azuis claros dela rodearam a sala e ela tirou a colher da boca para falar.

— A gente transou. Fato. Mas não era essa a intenção quando aceitei a carona, quero dizer... Ele é muito gostoso e nossa... — os olhos dela fizeram uma volta nas órbitas e eu deixei uma risada discreta escapar — Uma coisa levou a outra e quando fui ver estávamos dentro do carro, sozinhos, eu tinha bebido um pouco e faz tempo que não fico com alguém, mas eu não gosto de misturar as coisas. Eu só espero que ele não fique indo até a Parilla, porque isso seria muito, muito constrangedor...

— Desde quando você liga para isso? — Perguntei, digerindo o que ela estava falando.

Ela me encarou com um olhar de obviedade e demorou um pouco para se pronunciar, talvez imaginasse que a resposta fosse meio lógica, mas não. Com Fernanda não tinha essa. Nada era simples, nada era óbvio.

— É o meu trabalho, Nina! — Exclamou depois, inclinando o corpo mais para frente. — Normas de conduta, e elas não incluem transar com o advogado do dono no estacionamento da empresa.

— O-o que? — Gaguejei, desnorteada com o que ela disse. — Você enlouqueceu? — Questionei, cobrindo a boca com as duas mãos. — E se pegassem vocês?

Ela fez um gesto com a mão, desprezando o meu apavoramento antes de dizer.

— O carro tinha insulfilm, fora que estava estacionado numa parte mais escura.  

— Ele trabalha no escritório do Samuca. — Informei, me inclinando a fim de pegar sorvete no pote.

Ela deu de ombros, focando em tomar o sorvete, imersa em seus próprios pensamentos.

*

Terça-feira chuvosa no Rio de Janeiro. — Foi o que o locutor com voz melodiosa disse na rádio. — Não saiam de casa sem suas capas de chuva e galochas, porque a máxima de hoje vai ser vinte e três graus e a chuva deve durar o dia inteiro. Depois do anúncio, uma melodia animada preencheu o espaço e eu sacudi a cabeça apreciando a música e dirigindo até a Revista.

Não levou mais do que trinta minutos para que chegasse ao prédio da Parilla e avancei com o carro para dentro do estacionamento, manobrando em uma vaga e desligando o motor do carro. Puxei a bolsa do banco ao lado e peguei o batom vermelho, mexendo no espelho retrovisor para passá-lo.

Olhando pelo espelho, observei o Corolla preto, com a lataria polida e reluzente avançar pela entrada do estacionamento e manobrar próximo à entrada, estacionando ali com destreza. Destampei o batom e foquei em passa-lo sobre os lábios sem borrar, mas o meu psicológico foi abalando no momento seguinte, porque a porta do Corolla foi aberta e a figura familiar se pôr para fora.

Santa mãe Senhora dos Desesperados. — Pensei, perdendo o fôlego com a afobação assim que meus olhos se puseram sobre a figura engravatada de Thomas. Os cabelos pretos eram compridos no topete bagunçado que lhe rendia uma expressão sexy e perigosa da qual arrepiava a minha pele. O queixo oval é marcado por uma barba escura por fazer.

Ele puxou uma pasta de couro preta de dentro do carro e tirou os óculos escuros, deixando amostra os olhos azuis latentes ao sol e depois de olhar de um lado para o outro, me fazendo abaixar com urgência na poltrona do carro, de modo que ele não conseguisse me ver.

Essa não era a minha atitude mais adulta, muito menos a mais inteligente. Normalmente não tenho esse costume de agir impulsivamente, mas pensar que Thomas estava de volta depois de que fiz estava me tirando dos eixos. Definitivamente, eu não saberia lidar com isso. Dizer oi e perguntar como andava a vida depois de tanto tempo?

Eu não sabia qual seria a reação dele assim que me visse e isso estava me deixando maluca.

Não dava para perder o emprego agora, e um pouquinho do meu lado irracional esperava que me esconder podia preservá-lo ou então ganhar um pouco de tempo e quem sabe, coragem. Eu precisava estar pronta para quando esse dia chegasse e de quebra, poderia garantir meu emprego e o pouco de dignidade que me restava.

Abaixada dentro do carro, vi de esguelha quando Thomas fechou a porta do carro e olhou mais uma vez, com os olhos azuis nus dessa vez, fixando o olhar sobre o HB 20; o meu HB 20 e em resposta, me arrastei mais no banco, dobrando mais os joelhos e quase encostando no chão.

A essa altura, eu não estava dando a mínima para a educação ou se sairia do carro amassada e descabelada. Ele não podia me ver! — Era a única coisa que pensei, espremida entre o banco e o volante e respirei fundo ao sentir uma parcela de alivio quando olhei pelo espelho retrovisor e o vi seguir para dentro da Revista.

Puxei o meu celular e esperei mais uns cinco minutos antes de sair da segurança do carro.

E se ele estivesse na recepção ou algo assim? Eu não podia me encontrar com ele. — Essa ideia começou a me afligir e eu puxei a bolsa, passando-a pelo ombro, abrindo a porta do HB 20 cinza e pondo-me para fora, fechando a porta atrás de mim ao sair correndo em direção a porta de serviço do prédio.

— Senhorita Marina. — A pronúncia me fez parar na hora e o pânico abalou as minhas estruturas.

Poucas pessoas me chamavam pelo nome completo, na verdade, quase ninguém.

Virei-me devagar sobre meus saltos finos e apertei os lábios uns nos outros, apreensiva, como se tivesse acabado de ser pega em flagrante cometendo infringindo alguma lei.

— Olá, Senhor Manuel. — disse, balançando a cabeça e forçando os lábios num sorriso desesperado.

Fitei o senhor já de idade. Os lábios curvados em um simpático sorriso. As sobrancelhas escuras eram grossas e cheias, sendo a maior parte grisalha, emoldurando os olhos claros, num tom meio acinzentado. A careca era rosada e lustrosa. O uniforme, um macacão cinza estava mais apertado na barriga avantajada do que no restante do corpo e o crachá lhe caia sobre o meio do peito.

— Esse é o elevador de serviços... — informou casualmente, segurando o cabo do esfregão na frente do corpo.

— É, eu sei... — disse, estalando a língua. — Eu estou com um pouco de pressa e vou por aqui mesmo.

Ele balançou a cabeça, deixando escapar um sorriso e continuou a movimentar o esfregão molhado contra o chão encerado do estacionamento.

— A Senhora viu o novo patrão? Ele acabou de chegar. — Ele indagou, olhando do chão para o meu rosto.

— Não. — Respondi de bate-pronto num tom urgente.

— Ele foi para lá. — Senhor Manuel apontou com o indicador que segurava a vassoura. — Talvez vocês se esbarrem se apertar o passo. — Ah, eu com certeza não desejava isso. — Ele com certeza vai gostar da senhora.

A minha garganta se apertou porque eu não teria tanta certeza assim.

— Acho que vou pelo de serviço mesmo. — disse, por fim. — Até breve, Senhor Manuel.

Apertei o botão para o quinto pavimento, e o elevador sacolejou, subindo rápido, em seguida, para o meu andar.

Engoli a seco, a barriga revirando com o nervoso que estava sentindo e avancei até a porta do elevador a passos curtos e contidos, vasculhando os dois lados do andar antes de tomar o caminho até a minha sala.

Essa foi por tão pouco...

Em alerta, coloquei apenas a cabeça para fora do corredor.

— Tudo limpo. — Constatei, exalando de alivio ao pensar alto demais e tomando a passadas rápidas em uma corrida disfarçada e desesperada até a minha sala.

— Nina... Pare onde está. — Era a voz de Verônica em seu tom mais agitado e eu me virei. — Eu não sei o que aconteceu, mas alguém bateu no meu carro ontem, aqui no estacionamento. Você ficou sabendo de alguma coisa?

Apenas gesticulei uma negativa com a cabeça.

— Eu não sei. — Verônica bufou. — Aconteceu no estacionamento... eu não acredito. — Ela resmungou. — Mas se eu descubro quem foi esse infeliz... — Ela rosnou.

Trancada dentro da sala o dia todo, o meu almoço foi uma maçã e o lanche foram uns biscoitos que eu deixara aqui para emergências. Eu não sabia como essa situação se sucederia a longo prazo, mas estava completamente atordoada e confusa. Sair dessa sala enquanto o meu expediente não acabasse estava totalmente fora de cogitação e eu estava tão focada nos serviços que a Verônica tinha me passado pela manhã, que acabara não vendo as horas passarem ao decorrer do dia.

Duas batidas bruscas sucederam na porta e me fizeram tomar uma postura tensa e angustiada, então, ergui o olhar por trás dos óculos, temendo que fosse Thomas. Sem conseguir formular uma resposta, a maçaneta girou e a porta começou a ser movida. Fernanda invadiu a sala, vestida por uma calça social de giz com bocas largas e uma blusinha branca de botões por dentro. Os cabelos curtos loiros claros estavam presos em um coque meio bagunçado, rendendo-lhe um ar despojado. O rosto branco estava livre de maquiagem e os olhos largos azuis e a boca vermelha se destacavam em meio à pele rosada da bochecha. Ela é naturalmente linda, e os sapatos, um Peep Toe bege, altos lhe acrescentavam uns consideráveis dez centímetros em relação aos seus um e sessenta e oito. Respirei fundo antes que ela se jogasse na cadeira a minha frente.

— O Augusto está lá na minha sala. — Ela soltou num suspiro ruidoso. — Você acredita?

Baixei os óculos, pondo-os sobre a mesa e esfreguei um dos olhos com os dedos, deixando transparecer um nítido alivio por se ela.

— O que tem? — Perguntei, observando a caranca dela ao franzir as sobrancelhas.

— O que tem é que foi uma coisa meramente casual. Eu disse que foi um erro e que não iria acontecer novamente. — Alegou com voz indignada, da qual aumentava um tom a cada palavra proferida. — E, ao invés disso, sabe o que ele está fazendo? — Arqueou a sobrancelha, esticando os braços e apoiando os cotovelos na mesa.

Respondi num resmungo, negando ao sacudir a cabeça.

— Tá vindo até o meu serviço, para tentar sair comigo de novo. — Ela revirou os olhos azuis. Sua voz era de claro aborrecimento. — Eu pedi para que ele fosse embora e me deixasse trabalhar em paz. — Acrescentou, inclinando-se na cadeira ao apoiar os braços na lateral.

— E ele foi? — Perguntei.

— Não! — Exclamou em resposta, contrariada.

Fernanda se remexeu na cadeira inquietamente e passou o dedo indicador da mão na unha do polegar, alisando o esmalte vermelho.

 — Ele está lá, — estalou, abaixando o olhar — na droga da minha sala, conversando com a Mad, no maior papo, e eu tive que vir para cá. — Esclareceu, tamborilando as unhas curtas na mesa.

— Bem-vinda ao time das que fogem... — rebati, balançando a cabeça com um sorriso sem graça.

— Eu não estou fugindo. — Contra argumentou, batendo o indicador na mesa. — Eu só achei ridículo, quero dizer: a gente transou, e daí? Eu não sou obrigada a sair com ele e viver um romance só por causa disso.

O meu telefone tocou no gancho antes que pudesse me pronunciar e eu o atendi.

— A Fernanda está aí? — Era a voz da Mad do outro lado.

Abaixei o telefone no pescoço, abafando a ligação e balbuciei para a Fê: é a Mad, e ela gesticulou com a mão, inclinando-se na cadeira para atender ao telefone.

— Sou eu... — disse com a voz arrastada, revirando os olhos para mim ao ouvir o que a secretária dela tinha a dizer do outro lado.

— Não, Mad! — Respondeu com a voz mais séria dessa vez. — Esse relatório não vai para o financeiro.  Aliás, encaminhe-o pro meu e-mail, por favor. Eu vou precisar olhar isso.

Fernanda ficou em silêncio, ouvindo-a falar.

— O Senhor chato pra cacete já foi? — indagou, esperando a resposta.

Ela suspirou antes de se pronunciar, franzindo o rosto em desagrado.

— Não, Mad, ele é insuportável. — Retificou e parou mais um pouco para ouvir, balançando a cabeça em deboche. — Tudo bem. Eu já estou subindo — estalou, colocando o telefone de volta no gancho.

— Tá legal. — Exalou, passando alguns fios soltos para trás da orelha. — Preciso ir. Depois a gente se fala.

As horas passaram e eu estava imersa no serviço. Trabalhar me fazia esquecer os problemas e era disso que precisava. De foco no trabalho, aborrecimento e estresse não me levariam a lugar algum e quanto mais trabalhava, mas isso ficava evidente. Tentar entender qual seria a atitude de Thomas depois que descobrisse que também trabalho aqui, só estava me levando a loucura e eu não podia continuar enclausurada nisso.        

— Me dá uma carona? — A Fê disse, entrando na sala de fininho.

— Eu também preciso! — Adicionou a Mari, adentrando a sala também. — Está caindo o mundo lá fora.

Assenti que sim com a cabeça e foquei mais um pouco na tela do computador, digitando mais algumas palavras.

— São seis horas, Nina. — Exclamou a Fê. — Todo mundo já foi. O meu andar está vazio.

— O meu também. — A Mari infirmou, sentando-se na cadeira de frente para mim.

A Mari é estilista e ficava no sexto andar supervisionando a produção. Se existe alguém que trabalha no pesado aqui, era ela. Vivia passando do horário também, mas ela não parecia tão acorrentada quanto eu a Parilla.

— Cadê a Lorena? — Perguntei, salvando o arquivo do word e fechando a tampa do notebook.

— Eu não a vi hoje. — Foi a Fê quem respondeu.

Então, olhei para a Mari que estava mexendo no celular, provavelmente respondendo alguma mensagem e a Fê cutucou a com o ombro a fim de obter uma resposta dela.

— Eu também não vi!

Arqueei a sobrancelha e estiquei os dedos com a mão espalmada sobre a mesa e assenti com a cabeça positivamente, pegando a minha bolsa e me levantando.

— Vamos embora! — disse, abrindo a porta. — Vocês ficaram sabendo do que aconteceu com o carro da Verônica ontem?