Donna Reid
Horas mais tarde, já na minha casa, ouvi uma voz familiar perguntar.
"— Como está se sentindo?"
"— Estou com uma dor de cabeça horrível. Parece que vai estourar a qualquer momento."
"— Não pode ficar fazendo esse tipo de coisa. Em pouco tempo não estarei mais aqui para lhe socorrer..." — estreitei os olhos para ela, imaginando o que aquilo significava. "— Vou viajar. Esqueceu o trabalho voluntário que aceitei na América Central?"
Era verdade, eu tinha esquecido. Ela se sentou na beirada da minha cama e com uma voz conciliadora, começou a falar.
"— Donna, eu entendo que quando era mais nova, em se ver numa situação difícil com a perda dos pais, tenha se revoltado, eu mesma tive meu momento. Mas os anos se passaram e agora você é uma mulher adulta e, o que está fazendo da sua vida? Está se tornando uma pessoa sem conteúdo, sem moral. Diminuindo-se por nada."
"— Você não sabe do que está falando" — revidei.
"— Sei que agindo desse jeito não está prejudicando ninguém além de si mesma. Hoje você ainda tem a mim e a seu tio, mas o que vai acontecer quando eu não estiver aqui e ele lhe der ás costas?" — não respondi, as lágrimas quentes caiam em abundância, nublando minha visão. "— Tenho certeza que seus pais não aprovariam esse comportamento e teriam vergonha do que está fazendo. Sinto muito se minhas palavras são duras, mas é a verdade."
Ela se curvou me dando um beijo de despedida e se foi sem dizer mais nada.
Por dois dias seguidos, eu me afundei em autolamentação, me depreciei de todas as formas, me sentia desprezível pelo que tinha me tornado, então quando já não tinha o que chorar, tomei uma decisão.
Liguei para Victória e disse que iria junto em sua viagem, relutante, ela tentou argumentar, mas eu já tinha resolvido. Seria meu recomeço em um lugar estranho, onde as pessoas me veriam por quem eu era e não pelo que minha família tinha. Uma folha em branco, onde eu poderia ser a Donna de antes.
Convencer meu tio não seria um problema, era maior de idade e dona da minha vida, e mesmo que tivesse com a intenção de um recomeço, era difícil esquecer o que ele tinha feito. Ainda não me sentia preparada para ser a doce sobrinha que ele conheceu anos atrás. Por isso quando o informei de minha decisão, terminamos de forma acalorada.
"— Donna, é um lugar remoto e cheio de..."
"— Não estou pedindo sua permissão."
"— Mesmo assim, não quero que vá."
"— Você não é meu pai..."
"— Prometi a ele que cuidaria de você."
"— Não cuide, eu não preciso" — ele me olhava magoado. "— Amanhã neste mesmo horário, estará livre de mim."
Saí da mesa de refeições e fui para o meu quarto. Mesmo diante de minha impertinência, ele me levou ao aeroporto no dia seguinte e suas últimas palavras penetraram meu coração, mesmo contra minha vontade.
Volto ao presente sentindo um toque leve em meu braço.
— Señorita! — disse o senhor Morales, me olhando de forma curiosa. — Parecia perdida em pensamentos.
— Desculpe. Realmente, estava lembrando-me de casa — fiz um carinho na bochecha da garota que estava ao seu lado. — Estou tentando ligar e não consigo.
— Leti'e' mix ba'al u yóojel (ela não sabe de nada) — disse a menina em sua língua nativa.
Eu era especialista em línguas, além de espanhol e inglês, também era fluente em francês e italiano, mas me deparei com a barreira de algumas línguas antigas quando cheguei aqui, as quais, só os nativos eram habituados a falar.
— Maylin, já expliquei para não usar dialetos na presença da señorita, ela pode sentir-se desconfortável e achar que estamos escondendo algo.
— Perdón — pediu e virou-se para contemplar a bela paisagem da baía. A água era de um azul profundo e o sol brilhava no céu de anil.
— Tudo bem senhor Morales, mas o que ela disse?
Ele soltou um suspiro, me fazendo suspeitar que algo não estava certo.
— Há dois dias tivemos rumores de uma força rebelde agindo em alguns vilarejos e na capital, derrubando linhas de comunicação, nos isolando do restante do mundo. E hoje se confirmou que eles estão vindo para cá. Precisa ir embora o quanto antes, eles são sanguinários e não gostam de estrangeiros — senti um calafrio atravessar meu corpo, apesar da temperatura amena que não ultrapassava os 22 graus. — Eles costumam torturar estrangeiros em praça pública para servir de exemplo e ter as exigências atendidas.
— Mas sem linha, como vou contatar alguém nos Estados Unidos? E não vão me deixar passar se me virem, não tenho como sair daqui...
— Não tem e se eles souberem quem a señorita é na verdade, não hesitarão em tê-la como uma refém de guerra, para barganha.
Sinto meus olhos se arregalarem.
— Meu Deus! — exclamo, respiro fundo tentando me acalmar. — Vamos pensar em algo.
— Logo eles chegarão a Santa Rosa, deveria ter ido quando sua amiga se foi. Meu país é um lugar instável.
— Não se preocupe com isso. Só preciso me manter escondida até que esse motim acabe, talvez eles nem venham para essas bandas.
— Gostaria de ter sua confiança. Mas sei como as coisas funcionam por aqui, vamos ter que contar com a ajuda de Nossa Rainha do Rosário para protegê-la — eles são muito devotos e desde o início de sua colonização, tem recorrido aos favores de sua virgem protetora. Faço um aceno com a cabeça em concordância. — Eu sinto muito.
Seu olhar castanho demostra tristeza, ele passa por mim, vai até a garota, pegando em sua mão e eles saem. Caminho até onde ela estava minutos antes e fico olhando pela janela. Suspirei frustrada e temerosa. Quando pensei em vir para cá, jamais imaginei passar por uma situação como esta. Claro que quando tomei minha decisão, corri para o notebook para pesquisar um pouco sobre a região, o que não me ajudou muito: o que mais encontrei foram índices de violência, informações sobre clima e lugares turísticos. Não era o que eu procurava. Eu queria saber como é morar na Guatemala e não como ser um turista nesse lugar.
Embora não fosse um desses países em que se pode vir para aventurar um novo começo, ou tentar fazer a vida, pois o índice de desemprego no país é bem alto, era o que tinha no momento. Eu queria sim, um recomeço, mas de uma forma diferente. O trabalho voluntariado me daria essa oportunidade.
Quando cheguei, aberta a novas perspectivas, comecei a observar tudo: os lugares, as pessoas. A cultura é muito rica e colorida; uma verdadeira mistura de elementos do povo nativo Maia e da colonização espanhola, o que dão características únicas a esse país. Senti-me imensamente feliz ao chegar aqui, o povo Guatemalteco é um povo sorridente, calmo e receptivo. Muito diferente da imagem de país violento que eu tinha antes de vir para cá. É claro que sim, a violência existe. Principalmente nas chamadas áreas rojas, locais que normalmente não são frequentados por estrangeiros, a não ser aqueles que fazem algum tipo de trabalho voluntário, assim como eu. Porém, eu sempre estava acompanhada de algum morador local ou de alguém da administração do serviço voluntariado.
Temo que isso agora não será sinônimo de segurança e este país, onde meses atrás representou minha liberdade, agora será minha prisão por tempo indeterminado.
Charlie MacAleeseDepois de um voo de quase cinco horas, finalmente estou em El Salvador. Como o tráfego aéreo está fechado para a Guatemala, precisei pensar em uma rota alternativa para entrar sem ser visto.Com as fronteiras fechadas, não seria um trabalho fácil, mas apesar de serem muitos, os rebeldes não poderiam cobrir todas as estradas e rios.Com uma mochila nas costas, segui para fora do aeroporto. Uma hora e meia, depois, estava entrando num bar que já tinha visto dias melhores. O local parecia uma espelunca caindo aos pedaços. Os homens que estavam ali pararam de conversar e ficaram me encarando. Me aproximei do balcão e falei para a mulher que era tão mal encarada quanto os homens daquele lugar.— Buenos días! Quiero hablar con Carlos Rocío (Bom dia! Quero falar com Calos Rocío) — ela me encarou e depois de limpar o nariz no avental que usava, respondeu.— En la parte trasera (na parte dos fundos) — fez um gesto com queixo. Com um aceno em agradecimento, segui até o local i
Donna ReidEu tive uma noite péssima. Fazia algum tempo que não tinha mais aquele sonho. Tinha me esquecido a sensação que ele me causava. Era sempre o mesmo som, como se minha mente tivesse gravado exatamente a sonoridade das batidas fortes e apressadas na porta.Nos primeiros três anos da morte deles, eu sonhava quase que diariamente, acordando no meio da noite com um policial batendo à porta e informando daquele desastre horrível que levou imediatamente minha mãe. Eu ainda senti esperança de que papai sobrevivesse, mais uma semana depois, minha esperança foi enterrada junto com ele. Eu nunca mais iria vê-los, ouvi-los ou abraçá-los. Nunca mais era tempo demais sem as duas únicas pessoas que eu amava incondicionalmente e que me amavam de volta.Só que dessa vez o sonho tinha algo diferente, em vez de um policial, eram os rebeldes vindo me buscar, batendo na porta com violência e me procurando em todos os cômodos. Eu assisti aquilo como se não estivesse ali, eles não me enxergavam, m
Charlie MacAleesePuxo mais uma vez o mapa, olhando exatamente o ponto marcado nele, se seguir as coordenadas contidas ali e não tiver mais nenhuma surpresa pelo caminho, em aproximadamente duas horas, chego ao meu destino: o local onde a senhorita Reid está. Ou ao menos é isso que espero. Com as tropas avançando cada vez mais rápido, ela pode não estar lá e ter tentado fugir, o que seria um grave erro. Estando sozinha e despreparada, torna-se um alvo fácil de ser capturado.Jogo o mapa no banco ao lado e procuro um lugar onde parar o jipe e me aliviar um pouco. Desde os primeiros raios de sol que estou dirigindo e já está entrando pela tarde.A chuva fina que cai é bem vinda para diminuir o calor, além disso, pode ajudar a retardar o avanço dos rebeldes. Desço sentindo uma ardência em meu braço direito ao sentir o corte que tem ali entrar em contato com os pingos de água de chuva, por sorte é um ferimento superficial.Ao me deparar com os três desconhecidos, eu cerrei os dentes com t
Charlie MacAleeseA parca luminosidade do ambiente era um lembrete claro da tempestade que se aproximava, a chuva fina tinha cessado, mas no céu, as nuvens carregadas e escuras anunciavam que ela logo cairia. Fazia quase uma hora que estava nessa sala esperando pela chegada do dono da casa e a Srta. Reid. Minha vontade era de ter ido até onde eles estavam, mas a mulher que me recebeu garantirá que eles não demorariam e que seria melhor não ser visto andando pela aldeia.A mulher morena, baixinha e corpulenta ficou relutante em me deixar entrar, mas diante das informações que lhe passei, mais confiante, me recebeu de forma acolhedora.Um som de um veículo se aproximando chamou minha atenção, eu caminhei até a janela mais próxima e afastei o tecido para espiar, antes mesmo de saltarem, eu sabia que eram eles. A mulher encaminhou-se para fora junto com as crianças e bem devagar, fiz o mesmo.Senti meu sangue se agitar ao olhar para a mulher que vinha apressadamente na companhia do homem.
Donna ReidO senhor Morales foi até a janela olhar o que estava acontecendo e Charlie se aproximou de mim.— Ficar aqui é assinar uma sentença de morte — diz segurando meu braço. — Só eu posso tirá-la daqui.— Não pedi sua opinião e, por favor, afaste-se, seu perfume me deixa enjoada — ele deu um sorriso cínico. — Tem cheiro de arrogância — completei para diminuir seu ego que parecia gigante e puxei meu braço.— Essa é a minha essência natural, princesa — replica e eu me afasto, indo para junto do senhor Morales.Nesse momento a esposa dele aparece na sala com uma mochila em mãos.— Señorita, aqui tem algumas coisas de que possa precisar, para o seu próprio bem, sugiro que vá — seus olhos estavam suplicantes.— Malana — senhor Morales exclama virando-se para ela. Ignorando o marido, ela continua.— Amamos a sua presença em nossa casa e será bem-vinda quando quiser voltar, mas nesse momento o melhor é ir com este senhor.— Finalmente alguém sensato por aqui — Charlie diz e eu o fulmino
Charlie MacAleeseQuando eu penso que está tudo sob controle, vem a porra da garota mimada piorar tudo um bilhão de vezes.O que o seu tio havia dito sobre sua personalidade não chega nem perto da mulher teimosa que ela é, mas não era uma patricinha desmiolada, como presumi. Tinha fibra e defendia de forma ferrenha o que acreditava e protegia aos que amava. Tenho certeza de que foi para preservar o Sr. Morales, que ela veio comigo, pois sabia que eu não iria desistir e o homem estava disposto a me enfrentar.Era um tolo.No primeiro momento me senti desnorteado por sua beleza e elegância, mesmo vestindo roupas simples. Pessoalmente era ainda mais bonita do que eu supunha. E de certa forma, estava atraído, afinal, ela é uma bela mulher, com a pele aveludada como um pêssego maduro e com pernas esguias e roliças. Minha parte sensata me advertia de que não poderia sentir atração por ela, mas já era tarde. Embora fosse um homem vivido, que já experimentou muitas coisas, não era imune a sen
Charlie MacAleeseUm homem corpulento e bigodudo estava na recepção e levantou a cabeça quando ouviu meu pigarro. Seu olhar era avaliativo para Donna e de forma instintiva, coloquei o braço em volta dos ombros dela, que me olhou interrogativa. Ignorando sua pergunta silenciosa, me dirigi ao homem.— Buenas noches (boa noite) — cumprimentei. — Me gustaría una habitación para mí y mi esposa (gostaria de um quarto para mim e minha esposa).— Não vou ficar no mesmo quarto que você — ela responde tirando meu braço de cima de si.Sorrio sem graça para o homem e digo.— Está enojada porque una chica me miró. Un minuto... (ela está brava porque uma moça olhou para mim. Só um minuto...) — seguro em seu braço e a puxo para um canto. Com a voz baixa, eu falo. — Nem louco, eu deixaria você fora das minhas vista, é um quarto para nós dois, ou a floresta. Você escolhe.Ela me encara em desafio e por fim responde.— Tudo bem, mas reze para ter um sofá, porque é lá que vai dormir.Dou um sorriso cíni
Donna ReidSento-me na cama dando alguns pulinhos, para sentir a macies do colchão, que na verdade é duro como uma pedra, soltando um suspiro, eu sinto meu estômago roncar. Olho para a bolsa que Malana me deu e estico o braço pegando-a para conferir se tem alguma coisa para comer, antes que eu a abra, uma movimentação na porta do banheiro chama minha atenção e o Sr. MacAleese sai com apenas uma toalha minúscula em volta de seu quadril estreito.Sinto meus olhos dobrarem de tamanho e acabo deixando a bolsa cair no chão.Eu não era versada na cultura grega, mas tinha feito uma cadeira na universidade e se os deuses tivessem existido como afirmavam alguns, com toda certeza, a aparência deles seriam como a do Charlie nesse momento.Com peitoral largo e bronzeado, ele parecia adepto de exercícios feitos ao ar livre. Seu peito era coberto por uma camada fininha, quase imperceptível de pelos dourados que iam descendo por sua barriga cheia de gominhos, até se perder por entre as dobras do tec