Capítulo 02

Donna Reid

Desde a hora que acordei que tento entrar em contato com meu tio nos Estados Unidos e não consigo. Parece haver algum tipo de interferência e a chamada não é completada. Preciso saber se ele vai realmente enviar o valor prometido para ajudar no tratamento do pequeno Osmin, uma criança com uma anomalia genética e por isso é alvo das gozações dos colegas, o que o deixa arredio e introspectivo. O problema é que sua família não tem condições e antes de dar uma esperança a eles, entrei em contato com meu tio.

Eu sei que não deveria me envolver tanto e que não poderei ajudar a todas as famílias necessitadas desse país. Mas assim que cheguei, me senti facilmente acolhida por eles, e o pequeno se aproximou de mim de forma tão carinhosa, deixando até mesmo seus pais surpresos e, com o passar dos meses, fui me afeiçoando a cada um de forma especial.

"— Não se apegue muito" — disse Victória quando se despediu de mim, três meses depois de ter chegado e seu trabalho ter sido concluído. — "Você gosta de parecer durona, mas tem o coração mole."

Sorrio ao lembrar-me de suas palavras.

Com o fim do trabalho, era hora de voltar, mas eu resolvi ficar.

"— Tem certeza que não quer ir?" — perguntou com esperança.

"— Tenho sim. Ainda não estou pronta e sem você e os outros aqui, as crianças ficaram sem apoio até que o novo grupo chegue."

"— Tudo bem. Cuide deles por mim."

O trabalho voluntário em que estávamos inseridas consistia em cultura e educação em conjunto com uma organização educacional sem fins lucrativos, focado no desenvolvimento moral, econômico e cultural de famílias pobres na Guatemala.

Grande parte da população é de origem indígena. Mas há também muitos descendentes de espanhóis, além da presença de pessoas de outras culturas.

"— Pode deixar" — retribuí seu abraço. Eu sentiria muito a falta dela.

Ao contrário de mim, Victória é baixinha, morena e tem o rosto redondo. Enquanto eu sou loira, alta e com rosto afilado. Fizemos faculdade juntas e dentre todos os amigos que eu tinha, ela era a única que falava o que pensava da vida desregrada que eu estava levando. Sempre em festas badaladas, regadas a muita bebida, sexo e drogas. Esses dois últimos, eu não me envolvia e nem sabia muito, quanto ao quesito bebida, muitas vezes precisei de ajuda para chegar em casa ou até mesmo ia parar no hospital devido ao excesso delas. Isso quando não me envolvia em alguma confusão, causando desordem e indo parar na delegacia, o que chamava a atenção da mídia sensacionalista e revistas de fofocas.

Meu tio não dizia nada, apenas me olhava com um olhar complacente e isso me matava por dentro. Eu queria feri-lo, magoá-lo, assim como ele fez comigo. Mas nada do que eu fizesse, parecia atingi-lo. Estava apenas me destruindo aos poucos e foi isso que Vick me fez enxergar da última vez que foi me buscar numa emergência.

"— O que aconteceu com você?" — perguntou ao ver meu estado lastimável, largada no leito.

"— É uma longa história" — gemi em resposta, eu não estava a fim de ouvir sermão. Não depois do que tinha passado na noite anterior, era humilhante demais.

Fechei os olhos me permitindo rememorar com amargura os acontecimentos daquele dia.

Pela primeira vez na vida, me sentia envolvida por alguém. A despeito de tudo o que eu aprontava, Kevin olhou para mim. Enquanto todos se aproximavam de mim com algum tipo de interesse, ele se mostrava diferente, tinha uma autoconfiança invejável, demonstrava delicadeza e paixão em tudo o que fazia, e quando ele me notou, me senti no céu. Ele é primo de Deanna, a garota mais popular da universidade. Conhecemo-nos na festa de formatura e depois de conversarmos algumas vezes, começamos a sair, eu já não estava aprontando com tanta frequência.

Naquele dia, fui convidada para uma das festas Rave que costumava ir, mas me neguei, queria ficar com ele, me sentia disposta a tentar algo mais sério naquela noite, faria uma surpresa ao lhe dizer minha decisão. Mas ele insistiu que eu fosse à festa, disse que estava com um trabalho urgente para fazer, que ficaria em seu apartamento, uma cobertura perto do centro da Flórida, num bairro luxuoso – o qual soube depois, que era de um amigo – então concordei, não queria atrapalhar. No horário combinado, me arrumei toda e fui para a tal festa, mas ao chegar em frente, resolvi que ficaria com Kevin, não seria justo ir para uma balada, enquanto ele trabalhava.

Então passei numa pizzaria, escolhi seu sabor preferido e fui ao seu encontro. Como tinha ido ali algumas vezes, e, com o incentivo certo, o porteiro me deu livre acesso. Morando no último andar e com elevador privativo, ele não costumava fechar a porta quando estava em casa, seria fácil entrar, eu estava animada para lhe surpreender.

Assim que entrei, a primeira coisa que me chamou a atenção foram duas taças com restos de vinho na mesa de centro, pelo jeito ele tinha recebido visita, deixei a caixa com a pizza ali e olhei em volta, uma peça de roupa tinha sido largada displicentemente no chão, lembro-me de ter sorrido, ele era bem bagunceiro. Seguindo até ela, vi que tinham outras que ia pelo corredor de acesso aos quartos e eram roupas femininas misturadas às dele, meu coração começou a bater descontrolado.

À medida que eu ia me aproximando, vozes e sussurros ecoavam no ar. Minha cabeça já estava dando voltas.

Quando cheguei à porta do quarto, me senti sufocada com a cena a minha frente. Kevin estava inclinado sobre Marjorie, uma da amigas de Deanna, enquanto a penetrava por trás. Os braços dela apoiados na cama, impulsionando para frente e para trás, seguindo o ritmo dele. Não éramos melhores amigas, mas tínhamos nos aproximado um pouco e eu a considerava uma boa pessoa.

Senti uma fúria indomável. Não parei para pensar. Tinha que acabar com aquela situação naquele momento. Avancei como uma selvagem na direção do casal de pilantras safados e, com extrema violência os empurrei, fazendo-os perder o equilíbrio e cair da cama.

Um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente enquanto eles me olhavam abismados.

"— Eu tenho nojo de vocês" — falei e dei as costas, saindo dali.

"— Donna, espera" — eu não precisava ver mais nada. Segui ouvindo sua voz atrás de mim. Ele me alcançou quando estava quase cruzando a porta de saída.

"— Não quero ouvir sua voz, não quero olhar para você" — as lágrimas traiçoeiras desciam abundantes, me sentia humilhada.

"— Me deixe explicar" — segurou meu braço e eu puxei com brusquidão.

"— O que vai explicar Kevin? É melhor que ela saiba logo de uma vez que nos amamos" — Marjorie apareceu na sala, enrolada em um lençol.

"— Marjorie vai lá para dentro."

"— Não. Deixe que fale, eu quero saber de tudo" — falei histérica.

"— Ele nunca teve interesse em você como mulher, Donna. É insignificante para ele nesse sentido."

Lancei um olhar magoado para Kevin. Como tinha sido burra, eu tinha confiado nele. Com rancor, respondi:

"— Pode ficar com ele. Não tenho nenhum interesse nesse lixo de ser humano que ele é..."

"— Também não precisa ficar tão irritada assim."

"— Tenha um pingo de dignidade e vergonha na cara, não me procure nunca mais, nem me dirija a palavra."

"— E você sabe o que é isso? Age como uma delinquente. A pobre menina rica" — zombou, resolvendo deixar a máscara cair. — "Eu até tentei gostar de você, a culpa foi sua de não ter dado certo, agindo daquele jeito maluco e sem noção, era impossível, afinal de contas, algumas pessoas perdem com­pletamente a razão quando estão sob a influência de drogas."

"— Drogas? Eu nunca ingeri drogas."

"— Isso não vem ao caso agora" — Marjorie interferiu mais uma vez. "— Você era simplesmente um passaporte para ele se dar bem. Seu interesse era se aproximar do seu tio e conseguir um cargo de confiança na empresa dele..."

"— CALA A BOCA..." — gritei não querendo ouvir mais nada.

"— Diga a ela, Kevin. Ela tem que ouvir a verdade." — ele parecia em choque em ver seus planos sendo revelados.

Não esperei que ele confirmasse o que já estava sendo esfregado na minha cara. Reunindo o resto de orgulho que ainda tinha, aproximei-me dele e com toda raiva que estava sentindo dentro de mim, cuspi em seu rosto e rosnei as palavras sentindo o ódio me inflamar por dentro.

"— Eu não tenho mais nada o que fazer aqui, mas se me permite uma observação, você me enoja... Não cruze meu caminho de novo ou faço picadinho de você."

Saí dali e acabei indo para a festa onde mais uma vez, me entreguei a bebida de tal forma, que não sabia como tinha ido parar naquele hospital, não lembrava de metade das loucuras que tinha feito.

 

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