Charlie MacAleese
Eu estava incrédulo.
Não podia acreditar no que tinha acabado de ouvir. Dentre todas as pessoas, ele sabia que aquilo estava fora de questão.
— Como pôde garantir em meu nome que eu traria a sobrinha dele em segurança? — cruzei os braços, estreitando os olhos enquanto o homem à minha frente coçava a nuca, desconfortável.
— Escute! Você é o melhor e ele está disposto a pagar o que for preciso — disse. — Vá falar com ele e o convença de que seu trabalho valerá cada centavo. Mostre que a lenda não está enferrujada.
— Por que ele não chama os caras? O FBI, a S.W.A.T? O homem é podre de rico.
— Às vezes um homem faz o que é melhor para sua família, não para ele.
Olhei para meu amigo de longa data. Depois que me afastei de tudo, ele era o único que sabia minha localização. Durante muitos anos estivemos juntos em situações complicadas demais devido ao nosso passado mercenário. Éramos respeitados e temidos por muitos homens. Homens sábios. E aqueles que não detinham tanta sabedoria assim, aprendiam a nos respeitar da maneira mais difícil.
Pisco, focando no presente e respondo.
— Primeiro que não faço mais esse tipo de serviço. Segundo que estou aposentado e terceiro... — faço uma pausa. — Aquela garota é problema. Aparece mais em tabloides do que é possível para uma vida inteira e sempre está envolvida em alguma confusão.
— Pensei que estando isolado aqui nesse fim de mundo, não estivesse por dentro do que acontece na alta sociedade — diz em tom de deboche, um sorriso de canto evidenciando o sarcasmo. Como não digo nada, ele continua. — Ela é um problema sim, mas um problema encrencado e com um tio preocupado e disposto a pagar o que for para tê-la em segurança.
Eu, Charlie MacAleese, um ex-mercenário, lutei inúmeras batalhas que não eram minhas, em troca de pequenas fortunas, das quais saí vitorioso na maioria delas. Desde que resolvi sossegar, três anos atrás, levava uma vida solitária, tornando-me quase um celibatário e que não se sentia impressionado pelas mulheres. Essas até me consideravam bonito e rude, eram atraídas por minha natureza bruta como moscas num pote de mel, acreditando que conseguiriam me domar. Tolas.
Tinha como principal regra, nunca confiar em outro ser humano. Era metódico, receoso e complexo por natureza. Exceto com o homem à minha frente, o qual considerava um amigo e que salvara minha vida uma centena de vezes.
Cresci em Glasgow, Escócia, sendo o filho caçula de um pai solteiro e viciado. Quando jovem, perambulava pelas ruas com trombadinhas e drogados, cheguei a participar de brigas de ruas, onde ganhava uns trocados. Muitos me achavam fraco e inofensivo devido ao corpo franzino e maltrapilho, mas o instinto animal era despertado quando me lembrava do meu pai e das surras que levava quando ele chegava bêbado ou drogado.
Aos 17 anos, ao me ver sozinho no mundo, depois que meu irmão desapareceu e meu pai morreu de overdose, entrei para um grupo de elite de agentes SSA do exército britânico que tinha base naquela região, o qual abandonei dois anos depois, após ser desautorizado em uma missão que envolvia crianças e estas acabaram perdendo suas vidas. Assim que percebi que tinha algo errado, quis abortar a missão, gritei código cinco incontáveis vezes, mas mesmo assim, eles prosseguiram.
"Elas eram um dano colateral." — disse o capitão depois de ser questionado.
Filho da puta!
De volta às ruas, por muitos anos vivi sem luxo. Sem estudo, era difícil conseguir trabalho e eu vivia de pequenos furtos e alguns serviços escusos, sabia que tinha de ser discreto para não chamar a atenção das autoridades.
Numa dessas atividades, acabei cruzando com o caminho de Pitter, meu benfeitor. Sabia muito bem que devia tudo àquele homem que estava sentado junto à janela do meu chalé. Ele foi o primeiro que percebera a inquietação que tinha dentro de mim e me levou para conhecer um grupo de guerrilheiros e mercenários. Durante os anos que trabalhei com eles, aprendi a dominar as técnicas da luta com adagas e do combate corpo-a-corpo. Com inteligência, tornei-me mestre em enganar meus oponentes com truques de camuflagem e me tornei mortífero ao utilizar essa habilidade contra os inimigos. Nasceu ali o apelido de "Andarilho da noite".
— Se aceitar esse trabalho, eu quero metade do valor combinado em minha conta nas próximas doze horas. E se eu falhar e não trouxer a garota mimada de volta, não farei a devolução.
— Tudo bem.
— Tem mais uma coisa. Ele é um homem poderoso, com certeza ninguém o quer como inimigo, muito menos eu. Porém, não vou aliviar para o lado da garota, ela vai ter que me obedecer até estarmos em solo americano e no primeiro problema que ela causar. Deixo-a onde estiver.
— Fique tranquilo quanto a isso. Todo trabalho tem seus riscos e ele conhece a sobrinha bem demais. Sabe que terá um belo desafio pela frente — ele sorri sarcástico. — Só que eu o conheço bem demais também, não se esqueça disso, controle seu gênio e traga a Srta. Reid segura para casa. Tem tudo para ter êxito, além de excelente piloto, é um ótimo atirador. Saber ser imperceptível quando quer e sabe muito bem que é o único que pode tirá-la de onde está.
— Sabe que há poucos dias estourou uma guerra naquela região, e são poucas as chances de entrar, dirá sair, ainda mais com um peso extra.
— Apenas vá e fale com ele. O Sr. Reid colocará o que precisar a sua disposição, helicóptero, avião, lancha...
— Tenho meu próprio avião, sabe disso. Se algo acontecer com ele, quero outro novinho em folha.
— Está muito exigente.
— Sou um mercenário, esqueceu?
Horas mais tarde...
— Entre! — disse a voz firme, depois de uma batida discreta na porta.
Edgar Reid é sinônimo de poder. Um homem de postura imponente, exalando sucesso por todos os poros, mas, um olhar mais apurado como o meu, consegue enxergar a camada de vulnerabilidade por baixo da casca grossa. Dono de uma das redes de telecomunicações mais visada do país. É um solteirão convicto, e, amarga ver seu nome construído com tanto zelo nos tabloides sensacionalistas por conta da sobrinha rebelde.
— Sr. MacAleese — me cumprimenta dando a volta na mesa.
Seu aperto de mão é firme, enquanto mantém contato visual comigo, me avaliando e eu faço o mesmo desafiadoramente. Ele desfaz o contato e com um meio sorriso, discreto, porém, genuíno, me indica a cadeira para sentar, sentando-se em seguida na cadeira oposta à minha, em vez de voltar ao seu lugar atrás da enorme mesa.
— Vim saber o que exatamente o senhor espera de mim — rompi o silêncio.
— Antes gostaria que me falasse um pouco mais de você.
— Não sabia que devia fazer uma apresentação ou trazer um curriculum.
A tensão foi quebrada pela gargalhada que o homem soltou, me pegando desprevenido.
— Touché! — diz quando se recompõe. — Sei tudo o que preciso sobre você, senhor MacAleese.
“Ou pensa que sabe.”
— Suponho que sim — digo simplesmente.
— Ou ao menos sei o que importa — homem esperto, penso. — Pitter confia muito no senhor e disse que posso fazer o mesmo. Somente por esta razão é que o chamei aqui.
— Pitter falou que está disposto a pagar um alto valor, apenas por isso que vim.
Os olhos azuis do homem me encaram com seriedade e mais uma vez a sombra de um sorriso desponta em sua feição séria.
— O senhor é direto. Gosto disso.
Para muitos posso parecer cínico. Eu chamo de praticidade.
— Sou um homem prático.
— Pois muito bem — ele pega um bloco de notas e uma caneta, escreve algo e me entrega. — Espero que esteja bom para o senhor. Metade agora e metade quando voltar.
Quase estraguei minha postura diante do valor escrito ali. Olhei por um longo tempo para o homem, desviando o olhar para o papel e voltando ao seu rosto.
— Já recebi muito dinheiro por meus serviços, mas nada perto disso.
— Eu não tive filhos, senhor MacAleese. Donna é o que me restou do meu irmão, minha única família. Talvez tenha agido de forma errada, fazendo todos os seus gostos desde que veio morar comigo — ele baixa a guarda pela primeira vez desde que começamos a conversar. — Mas eu a amo e por detrás das câmeras e dos holofotes, ela é só uma garota assustada e confusa. E agora corre grande perigo longe de casa.
— Como permitiu que ela se enfiasse naquele fim de mundo? — pergunto impertinente.
A Guatemala esteve sob o domínio de um conflito armado que durou cerca de 40 anos, de lá para cá vários conflitos aconteceram sem tanta relevância como este de agora. Não consigo entender o que uma garota como Donna Reid foi fazer num lugar como aquele.
— Quando a conhecer vai saber que ela é uma força da natureza. Teimosa e voluntariosa — seus olhos ficam sem foco, como se lembrasse de algo. — Ela tem muito mais de mim do que do próprio pai. Preciso que a traga de volta...
— Não posso garantir que a trarei sã e salva, mas farei o meu melhor — digo me levantando.
— Pitter me disse que era o mais qualificado para essa missão e se ele confia tanto no senhor, eu também vou confiar. É minha única chance — ele também se levanta de seu lugar.
— Quero o valor todo em minha conta e não metade. Posso não sair vivo de lá para receber o restante.
— Se não sair vivo, não poderá gastar o que receber.
— Isso é um problema meu — digo firme. — Então temos um acordo?
— Sim! Temos um acordo.
— Farei tudo o que for possível — estendo minha mão.
— Com o valor que está recebendo, não espero menos do que o impossível, senhor MacAleese.
— É justo.
Donna ReidDesde a hora que acordei que tento entrar em contato com meu tio nos Estados Unidos e não consigo. Parece haver algum tipo de interferência e a chamada não é completada. Preciso saber se ele vai realmente enviar o valor prometido para ajudar no tratamento do pequeno Osmin, uma criança com uma anomalia genética e por isso é alvo das gozações dos colegas, o que o deixa arredio e introspectivo. O problema é que sua família não tem condições e antes de dar uma esperança a eles, entrei em contato com meu tio.Eu sei que não deveria me envolver tanto e que não poderei ajudar a todas as famílias necessitadas desse país. Mas assim que cheguei, me senti facilmente acolhida por eles, e o pequeno se aproximou de mim de forma tão carinhosa, deixando até mesmo seus pais surpresos e, com o passar dos meses, fui me afeiçoando a cada um de forma especial."— Não se apegue muito" — disse Victória quando se despediu de mim, três meses depois de ter chegado e seu trabalho ter sido concluído.
Donna ReidHoras mais tarde, já na minha casa, ouvi uma voz familiar perguntar."— Como está se sentindo?""— Estou com uma dor de cabeça horrível. Parece que vai estourar a qualquer momento.""— Não pode ficar fazendo esse tipo de coisa. Em pouco tempo não estarei mais aqui para lhe socorrer..." — estreitei os olhos para ela, imaginando o que aquilo significava. "— Vou viajar. Esqueceu o trabalho voluntário que aceitei na América Central?"Era verdade, eu tinha esquecido. Ela se sentou na beirada da minha cama e com uma voz conciliadora, começou a falar."— Donna, eu entendo que quando era mais nova, em se ver numa situação difícil com a perda dos pais, tenha se revoltado, eu mesma tive meu momento. Mas os anos se passaram e agora você é uma mulher adulta e, o que está fazendo da sua vida? Está se tornando uma pessoa sem conteúdo, sem moral. Diminuindo-se por nada.""— Você não sabe do que está falando" — revidei."— Sei que agindo desse jeito não está prejudicando ninguém além de si
Charlie MacAleeseDepois de um voo de quase cinco horas, finalmente estou em El Salvador. Como o tráfego aéreo está fechado para a Guatemala, precisei pensar em uma rota alternativa para entrar sem ser visto.Com as fronteiras fechadas, não seria um trabalho fácil, mas apesar de serem muitos, os rebeldes não poderiam cobrir todas as estradas e rios.Com uma mochila nas costas, segui para fora do aeroporto. Uma hora e meia, depois, estava entrando num bar que já tinha visto dias melhores. O local parecia uma espelunca caindo aos pedaços. Os homens que estavam ali pararam de conversar e ficaram me encarando. Me aproximei do balcão e falei para a mulher que era tão mal encarada quanto os homens daquele lugar.— Buenos días! Quiero hablar con Carlos Rocío (Bom dia! Quero falar com Calos Rocío) — ela me encarou e depois de limpar o nariz no avental que usava, respondeu.— En la parte trasera (na parte dos fundos) — fez um gesto com queixo. Com um aceno em agradecimento, segui até o local i
Donna ReidEu tive uma noite péssima. Fazia algum tempo que não tinha mais aquele sonho. Tinha me esquecido a sensação que ele me causava. Era sempre o mesmo som, como se minha mente tivesse gravado exatamente a sonoridade das batidas fortes e apressadas na porta.Nos primeiros três anos da morte deles, eu sonhava quase que diariamente, acordando no meio da noite com um policial batendo à porta e informando daquele desastre horrível que levou imediatamente minha mãe. Eu ainda senti esperança de que papai sobrevivesse, mais uma semana depois, minha esperança foi enterrada junto com ele. Eu nunca mais iria vê-los, ouvi-los ou abraçá-los. Nunca mais era tempo demais sem as duas únicas pessoas que eu amava incondicionalmente e que me amavam de volta.Só que dessa vez o sonho tinha algo diferente, em vez de um policial, eram os rebeldes vindo me buscar, batendo na porta com violência e me procurando em todos os cômodos. Eu assisti aquilo como se não estivesse ali, eles não me enxergavam, m
Charlie MacAleesePuxo mais uma vez o mapa, olhando exatamente o ponto marcado nele, se seguir as coordenadas contidas ali e não tiver mais nenhuma surpresa pelo caminho, em aproximadamente duas horas, chego ao meu destino: o local onde a senhorita Reid está. Ou ao menos é isso que espero. Com as tropas avançando cada vez mais rápido, ela pode não estar lá e ter tentado fugir, o que seria um grave erro. Estando sozinha e despreparada, torna-se um alvo fácil de ser capturado.Jogo o mapa no banco ao lado e procuro um lugar onde parar o jipe e me aliviar um pouco. Desde os primeiros raios de sol que estou dirigindo e já está entrando pela tarde.A chuva fina que cai é bem vinda para diminuir o calor, além disso, pode ajudar a retardar o avanço dos rebeldes. Desço sentindo uma ardência em meu braço direito ao sentir o corte que tem ali entrar em contato com os pingos de água de chuva, por sorte é um ferimento superficial.Ao me deparar com os três desconhecidos, eu cerrei os dentes com t
Charlie MacAleeseA parca luminosidade do ambiente era um lembrete claro da tempestade que se aproximava, a chuva fina tinha cessado, mas no céu, as nuvens carregadas e escuras anunciavam que ela logo cairia. Fazia quase uma hora que estava nessa sala esperando pela chegada do dono da casa e a Srta. Reid. Minha vontade era de ter ido até onde eles estavam, mas a mulher que me recebeu garantirá que eles não demorariam e que seria melhor não ser visto andando pela aldeia.A mulher morena, baixinha e corpulenta ficou relutante em me deixar entrar, mas diante das informações que lhe passei, mais confiante, me recebeu de forma acolhedora.Um som de um veículo se aproximando chamou minha atenção, eu caminhei até a janela mais próxima e afastei o tecido para espiar, antes mesmo de saltarem, eu sabia que eram eles. A mulher encaminhou-se para fora junto com as crianças e bem devagar, fiz o mesmo.Senti meu sangue se agitar ao olhar para a mulher que vinha apressadamente na companhia do homem.
Donna ReidO senhor Morales foi até a janela olhar o que estava acontecendo e Charlie se aproximou de mim.— Ficar aqui é assinar uma sentença de morte — diz segurando meu braço. — Só eu posso tirá-la daqui.— Não pedi sua opinião e, por favor, afaste-se, seu perfume me deixa enjoada — ele deu um sorriso cínico. — Tem cheiro de arrogância — completei para diminuir seu ego que parecia gigante e puxei meu braço.— Essa é a minha essência natural, princesa — replica e eu me afasto, indo para junto do senhor Morales.Nesse momento a esposa dele aparece na sala com uma mochila em mãos.— Señorita, aqui tem algumas coisas de que possa precisar, para o seu próprio bem, sugiro que vá — seus olhos estavam suplicantes.— Malana — senhor Morales exclama virando-se para ela. Ignorando o marido, ela continua.— Amamos a sua presença em nossa casa e será bem-vinda quando quiser voltar, mas nesse momento o melhor é ir com este senhor.— Finalmente alguém sensato por aqui — Charlie diz e eu o fulmino
Charlie MacAleeseQuando eu penso que está tudo sob controle, vem a porra da garota mimada piorar tudo um bilhão de vezes.O que o seu tio havia dito sobre sua personalidade não chega nem perto da mulher teimosa que ela é, mas não era uma patricinha desmiolada, como presumi. Tinha fibra e defendia de forma ferrenha o que acreditava e protegia aos que amava. Tenho certeza de que foi para preservar o Sr. Morales, que ela veio comigo, pois sabia que eu não iria desistir e o homem estava disposto a me enfrentar.Era um tolo.No primeiro momento me senti desnorteado por sua beleza e elegância, mesmo vestindo roupas simples. Pessoalmente era ainda mais bonita do que eu supunha. E de certa forma, estava atraído, afinal, ela é uma bela mulher, com a pele aveludada como um pêssego maduro e com pernas esguias e roliças. Minha parte sensata me advertia de que não poderia sentir atração por ela, mas já era tarde. Embora fosse um homem vivido, que já experimentou muitas coisas, não era imune a sen