A manhã seguinte amanheceu com um céu cinzento, pesado, como se o próprio ar carregasse a ameaça de uma tempestade que nunca chegava. Mariana acordou com os músculos doloridos da cama dura, o som distante dos cavalos relinchando no curral misturando-se ao barulho dos homens trabalhando nos campos. Seu primeiro pensamento foi o mesmo de sempre: o que ela estava fazendo ali? Mas, desta vez, veio acompanhado de uma determinação feroz. Se não podia se destacar na cozinha, pelo menos faria algo para provar seu valor. Aquela fazenda, tão fria e desolada, era sua última esperança, e ela não podia falhar.Ela se arrastou até a pia, lavando o rosto com água fria que vinha de um cano rústico. Seus dedos ainda doíam do corte superficial do dia anterior, mas o desconforto era secundário diante do que precisava fazer. Na cidade, sabia fazer o básico na cozinha – um ovo frito, um macarrão simples, um café da manhã rápido –, mas ali, com o fogão a lenha imprevisível e os ingredientes rústicos, mesmo o simples se tornava um desafio. Ainda assim, decidiu que compensaria sua inexperiência com esforço. A casa, com suas paredes rachadas, móveis empoeirados e um cheiro de abandono, precisava de vida. Precisava parecer um lar.Enquanto caminhava para a cozinha, ouviu vozes lá fora – os funcionários, provavelmente. Os quatro homens, João, Pedro, Lucas e Mateus, eram figuras silenciosas, quase fantasmas, com rostos endurecidos pelo sol e olhos que, de repente, pareciam fixar-se nela por mais tempo do que o necessário. Mas Tereza, a mulher de aparência rude mas com um brilho gentil nos olhos, estava lá, ajustando as rédeas de um cavalo novo que Joaquim trouxera para o curral na noite anterior.— Bom dia, menina — disse Tereza, erguendo uma mão suja de terra em saudação. Sua voz era rouca, mas havia uma nota de calor que contrastava com a frieza de Joaquim. — Vai precisar de ajuda na cozinha hoje, não vai?Mariana hesitou, mas assentiu. Não queria admitir quão perdida se sentia, mas Tereza parecia entender sem que ela precisasse dizer. A mulher apontou para o horizonte, onde uma trilha poeirenta levava a outra fazenda.— Se quiser aprender mais, vai até a casa da Dona Lúcia amanhã. Ela mora na fazenda vizinha, esposa do caseiro do velho Ramiro. Sabe tudo de cozinha rústica. Pode te ensinar uns truques.Mariana murmurou um agradecimento, mas seu foco já estava em outro lugar. Depois de preparar um café da manhã básico – ovos ligeiramente queimados nas bordas por causa do fogo incontrolável do fogão a lenha, pão duro cortado com esforço e café forte demais –, ela decidiu agir. Pegou um balde, um pano velho e sabão que encontrou em um armário, e começou a limpar a casa. As janelas estavam embaçadas de poeira, os móveis cobertos por uma camada fina que parecia acumulada há anos, e o chão de madeira rangia sob seus pés, soltando farpas que se cravavam em suas sandálias de cidade.Ela trabalhou com uma energia que não sabia que tinha, esfregando, varrendo, arrumando. Queria que a casa cheirasse a algo vivo, algo que lembrasse um lar, não apenas um abrigo abandonado. Usou um pouco de óleo de citronela que trouxe na mala – um cheiro fresco, cítrico, que contrastava com o ar seco e terroso da fazenda. Seus movimentos eram rápidos, quase frenéticos, movidos pelo medo de ser mandada embora e pela necessidade de provar que valia algo. Suas roupas, ainda limpas e bem cuidadas da cidade – uma blusa leve de algodão com um leve perfume floral e calças justas que destacavam sua silhueta –, chamavam atenção enquanto ela trabalhava. Os homens, ao passarem pela casa, lançavam olhares furtivos, murmurando entre si. Até mesmo Tereza notou, comentando em tom de brincadeira:— Você cheira como se tivesse saído de um salão de beleza, menina. Aqui não estamos acostumados com isso.Mariana corou, sem entender a implicação. Para ela, suas roupas e cheiro eram apenas o que sempre usara – inocente, sem perceber o efeito que causava. Mas Joaquim, quando a viu mais tarde, parado na porta da cozinha enquanto ela arrumava os pratos, teve uma reação diferente. Seus olhos escuros se estreitaram, percorrendo-a de cima a baixo – o brilho de sua pele suada, o cheiro sutil que pairava no ar, a maneira como suas mãos se moviam com determinação. Algo em seu peito se apertou, um misto de desejo e raiva que ele não soube nomear. Queria gritar com ela, mandar que parasse de mexer em suas coisas, mas também sentia uma atração que o enfurecia ainda mais. Como ela ousava trazer aquele ar de cidade para seu mundo, perturbando a ordem que ele tentava manter?— O que você tá fazendo? — perguntou ele, a voz cortante, interrompendo seus pensamentos.— Limpando — respondeu ela, erguendo o queixo, tentando esconder o tremor. — Quero ajudar. Se não sei cozinhar bem, pelo menos posso deixar a casa melhor.Joaquim bufou, cruzando os braços. — Casa é pra trabalhar, não pra enfeitar. Mas... — ele hesitou, os olhos fixos nela por um momento a mais do que o necessário — ...cheira diferente aqui. Não sei se gosto disso.As palavras eram um insulto disfarçado, mas Mariana sentiu um calafrio. Não entendia o que ele queria dizer, mas o tom dele a fez recuar, o coração batendo rápido. Os funcionários, que haviam entrado para o almoço, também notaram. Os homens trocaram olhares, e até Tereza sorriu de leve, como se soubesse de algo que Mariana ignorava.No almoço, Mariana serviu um ensopado simples de feijão e carne seca que, embora não fosse perfeito, estava comestível. O fogo ainda a desafiava, mas ela tinha seguido as instruções básicas que lembrava da cidade, temperando com sal e um pouco de erva que encontrou na despensa. Joaquim comeu em silêncio, mas seus olhos não deixavam os dela, um misto de desconfiança e algo mais escuro que ela não conseguiu identificar.À tarde, enquanto os homens trabalhavam nos campos e Tereza cuidava dos cavalos, Mariana continuou sua missão. Arrancou ervas secas do jardim e tentou arrumar um canto da sala com um pano colorido que trouxera na mala, transformando o espaço em algo menos sombrio. Seus movimentos eram ágeis, mas carregados de uma ansiedade que a consumia. Aquela casa, aquele lugar, era sua última chance. Se falhasse, não sabia para onde iria.Naquela noite, os pesadelos voltaram. Mariana sonhou com vozes sussurrando acusações, com mãos que a puxavam para um vazio escuro. Acordou gritando, o som ecoando pela casa silenciosa. Ouviu passos rápidos no corredor, e antes que pudesse se recompor, a porta de seu quarto se abriu. Era Joaquim, a lâmpada da cozinha lançando sombras longas em seu rosto. Seus olhos estavam arregalados, o peito subindo e descendo rápido.— O que foi isso? — perguntou ele, a voz rouca, mas não havia raiva, apenas uma tensão que Mariana não soube interpretar.— Nada — mentiu ela, puxando o lençol até o queixo. — Só... um pesadelo.Ele a encarou por um longo momento, os olhos percorrendo seu rosto, depois descendo para a blusa leve que ela usava, ainda com aquele cheiro de cidade que parecia desafiá-lo. Então, sem dizer mais nada, virou-se e saiu, fechando a porta com um clique suave. Mas Mariana sabia que ele não acreditara nela. E, pela primeira vez, percebeu que o desejo nos olhos dele – misturado com raiva – era algo que ela não entendia, mas que a assustava tanto quanto atraía.No dia seguinte, decidiu seguir o conselho de Tereza e visitar Dona Lúcia. A trilha era longa, poeirenta, e o sol batia forte, mas ela persistiu, carregando uma cesta vazia como oferta. Quando chegou à casa da vizinha, uma construção modesta cercada por um pequeno pomar, foi recebida por uma mulher de meia-idade, de rosto marcado pelo tempo mas com olhos vivos e um sorriso caloroso.— Você deve ser a nova cozinheira da fazenda do Joaquim — disse Dona Lúcia, enxugando as mãos em um avental gasto. — Ouvi dizer que tá se virando, mas precisa de uns ajustes. Vamos ver o que a gente consegue fazer.Mariana sentiu uma pontada de esperança, mas também de medo. E se até Dona Lúcia percebesse quão limitada ela era? Mas, enquanto a mulher começava a ensinar os truques do fogo a lenha e como usar ervas locais para temperar, Mariana percebeu que, pela primeira vez desde que chegara, alguém acreditava que ela podia melhorar. Ainda assim, o peso dos olhos de Joaquim, a solidão da fazenda e o desejo/raiva que ele parecia sentir por ela continuavam a pairar sobre ela como sombras, esperando o momento certo para atacar.
O sol estava alto quando Mariana chegou à casa de Dona Lúcia, o calor batendo forte na trilha poeirenta que serpenteava entre os campos secos. A cesta vazia balançava em sua mão, um gesto simbólico de cortesia que ela esperava ser suficiente para ganhar a confiança da vizinha. Quando bateu à porta da construção modesta, cercada por um pequeno pomar de árvores retorcidas, foi recebida pelo mesmo sorriso caloroso de antes. Dona Lúcia, com seu avental gasto e mãos calejadas, parecia uma figura de outro tempo, mas havia uma sabedoria em seus olhos que tranquilizava Mariana, mesmo que o nervosismo ainda a consumisse.— Entre, menina — disse Dona Lúcia, gesticulando para que ela se sentasse à mesa de madeira rústica. — Trouxe fome ou curiosidade?— Curiosidade — admitiu Mariana, sentando-se com as mãos entrelaçadas no colo. — Não sei lidar com o fogo do fogão a lenha. E... quero aprender mais.Dona Lúcia assentiu, como se já esperasse aquilo. Passou a manhã ensinando Mariana a controlar as cha
Os dias seguintes passaram em um ritmo pesado, como se o tempo se arrastasse sob o peso do sol implacável e do silêncio opressivo da fazenda. Mariana acordava antes do amanhecer, os músculos já acostumados à cama dura, mas o coração ainda carregado de uma mistura de determinação e medo. As lições de Dona Lúcia estavam começando a surtir efeito. Ela agora conseguia controlar melhor o fogo do fogão a lenha, mantendo as chamas constantes para fritar ovos sem queimá-los nas bordas ou cozinhar o feijão até que ficasse macio, não grudento. Usava os recursos do jardim para complementar as refeições, adicionando um toque de cor e sabor que os funcionários notavam com olhares aprovadores, embora raramente dissessem algo.As ervas que plantara ao lado da cozinha, manjericão e alecrim, começavam a brotar, e seu cheiro fresco misturava-se ao perfume floral que ainda emanava de suas roupas e pele, um contraste que continuava a chamar atenção. Os homens – João, Pedro, Lucas e Mateus – trocavam comen
A seca apertava como uma corda ao redor do pescoço da fazenda, cada dia mais cruel que o anterior. O céu, antes apenas cinzento, agora era um vazio azul ardente, sem uma nuvem para prometer alívio. Os campos de milho e sorgo murchavam, as folhas curvando-se em desespero, e os cavalos no curral batiam os cascos com uma inquietação que parecia ecoar o humor de todos. Mariana sentia o peso daquele silêncio opressivo, mas também uma determinação que crescia dentro dela, como as ervas teimosas que insistiam em brotar ao lado da cozinha.Ela acordava cedo, antes mesmo de Tereza ou dos outros funcionários, para preparar o café da manhã. O fogão a lenha, agora um aliado relutante, obedecia melhor às suas mãos, que aprenderam a ajustar as chamas com cuidado. Usava os recursos do jardim para enriquecer as refeições – um ensopado mais encorpado, pão rústico com um toque de manjericão, até uma salada simples que trazia um frescor inesperado à mesa. Os funcionários comiam com gosto, e Tereza, com s
Uma brisa suave soprou pela fazenda naquela manhã, trazendo um cheiro úmido que ninguém esperava. Pela primeira vez em semanas, nuvens esparsas cruzavam o céu, carregadas com a promessa de chuva. Não era ainda a salvação, mas um vislumbre de esperança que levantou os ânimos. Os homens trabalhavam nos campos com menos peso nos ombros, e até os cavalos pareciam menos inquietos, seus relinchos mais calmos no curral. Mariana sentia isso no ar, um alívio tímido que a fazia respirar mais leve enquanto preparava o café da manhã, os movimentos na cozinha agora mais confiantes.O fogão a lenha respondia bem às suas mãos, e ela serviu uma refeição simples, mas reforçada, com ensopado e pão rústico, aproveitando as ervas do jardim. Tereza deu um aceno de aprovação, e os outros funcionários comeram com um entusiasmo que refletia o clima mais leve. Joaquim, como sempre, permaneceu calado, mas Mariana notou que ele terminou o prato, algo que raramente fazia. Era um sinal pequeno, mas suficiente para
A chuva caiu por toda a manhã, um véu fino que molhava a terra seca e trazia um alívio tão esperado que parecia quase um milagre. Os campos de milho e sorgo erguiam-se ligeiramente, as folhas menos murchas, e os cavalos no curral troteavam com uma energia renovada. Os funcionários trabalhavam com um ânimo que Mariana não via há semanas, e até Tereza parecia menos tensa, assobiando enquanto reforçava as cercas. Mas, apesar da leveza no ar, Mariana sentia uma inquietação que não explicava – a memória da noite anterior, o toque de Joaquim, o calor de seus corpos tão próximos, ainda queimava em sua pele.Na cozinha, ela se jogou no trabalho, tentando afastar os pensamentos. Preparou um café da manhã reforçado – ovos, pão rústico e uma sopa leve que aproveitava os recursos do jardim –, movendo-se com uma precisão que vinha de semanas de prática. O fogão a lenha, agora um velho amigo, obedecia às suas mãos, e o cheiro das ervas frescas enchia o ar, misturando-se ao perfume sutil que ainda
A chuva continuou por dias, um murmúrio constante que molhava os campos e dava vida à fazenda, como se a terra, tão castigada, finalmente pudesse respirar. Os funcionários sorriam mais, suas vozes ecoando com um otimismo tímido enquanto consertavam cercas e cuidavam dos cavalos. Até Tereza parecia mais leve, contando histórias antigas enquanto trabalhava, arrancando risadas dos homens. Mariana absorvia tudo isso, sentindo uma esperança que não ousava nomear, mas que a fazia trabalhar com ainda mais dedicação, transformando a casa em algo vivo, acolhedor.Na cozinha, ela movia-se com uma confiança que vinha da prática e das lições de Dona Lúcia. Preparava refeições reforçadas – ensopados, pão rústico, tortas salgadas –, usando os recursos do jardim com uma habilidade que surpreendia até ela mesma. Mas não era só a comida que mudava a fazenda. Inspirada pelo frescor da chuva, Mariana começou a colher flores silvestres que cresciam nos arredores, pequenos pontos de cor que resistiam à se
A chuva caía em um ritmo hipnótico, ora forte, ora suave, como se a fazenda estivesse aprendendo a se curar com a água. Os campos de milho e sorgo ganhavam vida, o verde brilhando contra a lama, e os cavalos troteavam no curral com uma energia que contagiava os funcionários. Sorrisos pontuavam as conversas, e as flores silvestres que Mariana espalhava – jarros na sala, na cozinha, na varanda – eram como pequenas promessas de dias melhores. Elas traziam cor à casa, suavizando o peso da madeira rústica, e cada pétala parecia carregar um pedaço da alma dela, transformando o lugar em um lar que até Tereza, com seu jeito duro, parecia apreciar. Mas, para Mariana, aquela leveza era uma máscara fina sobre um vazio que crescia, alimentado por fantasmas que ela não conseguia afastar.Na cozinha, ela trabalhava com uma dedicação quase desesperada, como se cada prato pudesse silenciar as vozes em sua cabeça. Preparava uma sopa cremosa, com um toque de ervas, inspirada em uma conversa com Dona L
A chuva caía leve, um sussurro que envolvia a fazenda em uma calma enganosa, enquanto Mariana permanecia no jardim, o coração disparado, lágrimas misturando-se às gotas em seu rosto. O toque de Joaquim ainda queimava em seu braço, a voz dele – “Você não é nada” – ecoando com uma sinceridade que a abalara. Ela desejava-o com uma intensidade que a assustava, mas o medo a segurava – medo de ser usada, de ser abandonada, de não ser suficiente. As palavras do ex, “Você não vale nada”, misturavam-se à culpa que carregava pelo que perdera no consultório escuro, e a cena que vira no riacho, Tereza e Mateus entregues à paixão, só intensificava o conflito dentro dela. Tremendo, ela enxugou o rosto e voltou para a casa, o vestido molhado colando na pele, cada passo carregado de incerteza.Ao entrar, a luz fraca da sala a envolveu, mas o que a fez parar foi ele – Joaquim, encostado na parede, os braços cruzados, o corpo ainda molhado pela chuva. A camisa colada destacava cada músculo, a barba por