Fogo e raízes

O sol estava alto quando Mariana chegou à casa de Dona Lúcia, o calor batendo forte na trilha poeirenta que serpenteava entre os campos secos. A cesta vazia balançava em sua mão, um gesto simbólico de cortesia que ela esperava ser suficiente para ganhar a confiança da vizinha. Quando bateu à porta da construção modesta, cercada por um pequeno pomar de árvores retorcidas, foi recebida pelo mesmo sorriso caloroso de antes. Dona Lúcia, com seu avental gasto e mãos calejadas, parecia uma figura de outro tempo, mas havia uma sabedoria em seus olhos que tranquilizava Mariana, mesmo que o nervosismo ainda a consumisse.— Entre, menina — disse Dona Lúcia, gesticulando para que ela se sentasse à mesa de madeira rústica. — Trouxe fome ou curiosidade?— Curiosidade — admitiu Mariana, sentando-se com as mãos entrelaçadas no colo. — Não sei lidar com o fogo do fogão a lenha. E... quero aprender mais.Dona Lúcia assentiu, como se já esperasse aquilo. Passou a manhã ensinando Mariana a controlar as chamas, mostrando como ajustar a ventilação, usar paus secos para manter o calor constante e evitar os picos que queimavam a comida. Era um conhecimento simples, mas novo para Mariana, que ouvia com atenção, absorvendo cada palavra como se fosse um mapa para sobreviver naquele mundo hostil.— E tem mais uma coisa — acrescentou Dona Lúcia, apontando para fora, onde um pequeno canteiro de ervas crescia ao lado da casa. — Planta umas ervas e temperos perto da sua cozinha. Manjericão, alecrim, hortelã. Elas crescem fácil aqui, e dão sabor à comida. Usa o que já tem na fazenda do Joaquim também. Ele planta tomates, batatas, cenouras, couve e alface nos fundos. Provavelmente você nem notou, mas tá tudo lá, esperando pra ser colhido.Mariana piscou, surpresa. Na verdade, ela não tinha percebido os vegetais. Nos dias anteriores, estava tão focada em sobreviver que não olhou além do curral e da casa. A ideia de ter recursos tão próximos, mas invisíveis para ela até então, trouxe uma mistura de alívio e vergonha. Quando voltou à fazenda, foi direto para os fundos, onde encontrou os canteiros descuidados, mas repletos de tomates maduros, batatas enterradas na terra seca, cenouras finas, folhas de couve verdes e alfaces que pareciam lutar para sobreviver. Era como se a terra estivesse lhe oferecendo uma segunda chance, e ela decidiu que faria uso disso.Naquela tarde, enquanto os funcionários trabalhavam nos campos e Tereza cuidava dos cavalos, Mariana começou a limpar os canteiros, arrancando ervas daninhas e planejando onde plantaria as mudas de manjericão e alecrim que Dona Lúcia lhe deu. Suas mãos, ainda macias da cidade, logo ficaram sujas de terra, mas havia uma satisfação nisso, uma conexão com algo que ela nunca tivera antes. O cheiro fresco de suas roupas – um leve perfume floral misturado ao óleo de citronela que usava para limpar a casa – contrastava com o ar terroso, chamando a atenção dos homens quando passavam. Eles trocavam olhares furtivos, murmurando entre si, mas Mariana, inocente, não notava. Para ela, era apenas o que sempre fora – um hábito, não uma arma.Joaquim, no entanto, notava. Quando voltou ao fim da tarde, sujo de suor e terra dos campos, parou no limiar da cozinha e a viu ali, ajoelhada no jardim, as mãos na terra, o cabelo preso de maneira descuidada, mas com aquele cheiro que parecia invadir o ar como um desafio. Ele sentiu um calor subir por seu corpo, uma ereção involuntária que o enraiveceu. Virou o rosto, evitando os olhos dela, os maxilares tensos enquanto tentava se concentrar em qualquer coisa que não fosse o desejo que o consumia. Aquela mulher, com seu ar de cidade e sua determinação tola, estava mexendo com ele de maneiras que ele não queria admitir. E isso o deixava furioso – com ela, com ele mesmo, com a fazenda que parecia zombar de seus esforços.— O que você tá fazendo agora? — perguntou ele, a voz rouca, cortante, mas com um tremor que ele não conseguiu esconder.Mariana ergueu os olhos, surpresa com o tom. Viu a força dele – os músculos tensos sob a camisa suja, as mãos calejadas segurando uma enxada, a postura de alguém que carregava o mundo nos ombros. Algo nela se aqueceu, uma admiração misturada com medo. Ele era como a fazenda: duro, implacável, mas também magnético. Ainda assim, o medo predominava – medo de sua raiva, de sua intensidade, de que ele a expulsasse a qualquer momento.— Estou plantando ervas — disse ela, tentando manter a voz firme. — E arrumando os vegetais que já estavam aqui. Tomates, batatas, cenoura, couve, alface. Dona Lúcia me disse que estavam aqui, e eu não sabia.Joaquim grunhiu, um som que podia ser aprovação ou irritação. — Então agora você é jardineira também? — Ele se aproximou, mas manteve os olhos fixos no chão, evitando o rosto dela. O cheiro dela, no entanto, era impossível de ignorar – fresco, limpo, um contraste gritante com o suor e a poeira que o cercavam. Ele sentiu outra onda de desejo, seguida por uma raiva ainda maior. Como ela ousava trazer luz para um lugar que ele queria manter na escuridão?— Também preciso de ajuda — continuou ela, hesitante, mas determinada. — As gavetas do meu quarto estão emperradas, as tampas das panelas precisam de conserto, e a cama range tanto que mal consigo dormir.Ele a olhou finalmente, os olhos escuros cheios de algo que ela não conseguiu decifrar – era raiva, sim, mas também outra coisa, algo que a fez corar e desviar o olhar. — Vou ver isso — disse ele, seco, antes de se virar e sair, as mãos cerradas em punhos.Naquela noite, enquanto os funcionários jantavam o ensopado que Mariana preparara com os vegetais frescos e as dicas de Dona Lúcia – ainda imperfeito, mas com sabor melhor –, Joaquim ficou em silêncio, os olhos fixos no prato. Os homens trocaram olhares, notando o cheiro dela que ainda pairava no ar, mas Mariana, inocente, não percebia a tensão que causava. Ela admirava a força de Joaquim, a maneira como ele lidava com os cavalos, os campos, os problemas da fazenda, mas também temia sua imprevisibilidade, sua raiva contida. Não via o desejo nos olhos dele, nem o esforço que ele fazia para evitar olhá-la, para ignorar o calor que subia por seu corpo toda vez que ela passava.Mais tarde, ele apareceu no quarto dela com ferramentas rústicas, ajustando as gavetas com movimentos precisos, mas rígidos. A cama rangeu quando ele a levantou para verificar as molas, e o cheiro de Mariana – agora misturado ao aroma das ervas que ela plantara – o atingiu como um soco. Ele se levantou abruptamente, murmurando que terminaria no dia seguinte, e saiu antes que pudesse dizer mais. Mariana ficou sozinha, o coração batendo forte, atraída pela força dele, mas apavorada com o que poderia acontecer se ele perdesse o controle.O silêncio da fazenda caiu sobre eles novamente, pesado e cheio de promessas não ditas. Fora da casa, o vento uivava baixo, carregando o cheiro das ervas recém-plantadas e o eco distante dos cavalos no curral. Dentro, as sombras dançavam nas paredes, e os segredos de ambos continuavam a crescer, esperando o momento certo para se revelar

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