Ele soltou a minha mão quando entramos na sua sala e, mesmo assim, percebi que relutou em fazê-lo. Senti-me abandonada quando perdi o seu calor e sem que eu percebesse, ele me tranquilizava. Agora me diz, onde eu andava com a cabeça? Estava tão perdida!
Acomodei-me na maca e observei seus gestos. Ele ligou o iPod e, imediatamente, uma melodia saiu nos alto-falantes da sala: Extreme – More Than Words nos envolveu. Já falei que amo ouvir música? Sempre tenha em mente que quando digo amo estou me expressando por meio de letras garrafais. Ela me acalma, me excita e permite viajar, assim como um bom livro.
Durante a minha história, você perceberá que muitas músicas aparecerão e esse detalhe não foi por acaso. Em um de nossos encontros, Gustavo me disse que trabalhava melhor quando a sala era preenchida pela mistura dos sons de uma bela canção com o ruído suave do motor da sua máquina de tatuar. Como se fosse um complemento, uma sinfonia perfeita. Ainda me lembro de todas as canções que fizeram parte daqueles momentos. Algumas vezes, quando queria me torturar, parava para escutá-las; outras, ouvia somente para ser feliz outra vez.
— Você está pronta? Posso começar?
— Sim, estou.
— Então se deite como na última vez. — Havia um brilho diferente em seus olhos ao pronunciar seu pedido.
Deitei-me e ele começou a pintura da tatuagem, seus movimentos lentos indicavam que não tinha pressa em acabar, desde a limpeza até a escolha das cores para o preenchimento foram feitos com cuidado esmerado. Resolvi iniciar a conversa, não queria sair dali sem matar um pouco da minha curiosidade. Afinal, não fora para isso que regressei?
— Faz tempo que você trabalha nessa área?
— Há cinco anos. — Gustavo interrompeu o processo para responder.
— Você gosta do que faz? — Outra pausa. E, a partir daí, aproveitei-me da oportunidade. Conclui que se eu fizesse várias perguntas e desviasse sua atenção para as respostas, o serviço demoraria além do previsto e ficaríamos mais tempo juntos.
— Amo o que faço. Larguei minha primeira formação para ser tatuador.
— Como assim? — O zumbido da música permeou a conversa.
— Eu trabalhava em um escritório de arquitetura, mas não estava feliz. Sempre desejei fazer o que faço hoje. Então, quando criei coragem, vim para cá. Eu e o Anderson nos conhecemos há um bom tempo e quando pedi um emprego, ele não hesitou.
— Você já sabia tatuar antes de pedir o emprego para ele? — Encontrava-me cada vez mais curiosa sobre a sua história.
— Sim, desde os meus dezoito anos. — Tinha um sorriso tímido em seu rosto. — Sempre gostei de tatuagens, desde a primeira vez que entrei em um estúdio. Um amigo foi fazer uma e me levou junto. E quando vi o desenho se formando, as misturas das cores, o trabalho sendo visto por várias pessoas, a responsabilidade que precisa ter ao marcar a pele de uma pessoa e sair perfeito, sabia exatamente o meu futuro.
— Se era assim, então o que estava fazendo em um escritório de arquitetura? — Não entendia aquela situação. Podia ver a paixão e o orgulho em seus olhos através da sua confissão.
— Na época meus pais não achavam que era um trabalho digno. Na opinião deles, trabalhar com tatuagens, era uma brincadeira e me deixei levar. Acabei prestando vestibular e fiz faculdade, mas lá no fundo, nunca me senti satisfeito.
— E o que te fez mudar?
Na mesma hora em que fiz aquela pergunta, me arrependi. Notei sua expressão antes relaxada, se alterar. Gustavo regressou ao trabalho e compreendi que havia algo errado, só não desconhecia o motivo. Ele não queria contar e eu não forcei. Talvez, quem sabe, em uma outra hora. Como assim outra hora? Mal tinha terminado e já pensava em vê-lo novamente? Estava louca e fora da realidade. Não podia continuar a fazer aquilo, embora a culpa por estar ali, até aquele momento, permanecesse trancada em alguma parte da minha consciência. Conhecia o perigo iminente e muita gente ficaria magoada no final da história. Mas, por favor, não me odeiem. Na minha cabeça, naquela hora, eu almejei outro encontro.
— Tudo bem se não quiser me responder — afirmei.
— Me fale de você, Fabiana. Você trabalha em quê? — Nem tentou disfarçar e logo mudou de assunto.
— Sou secretária em uma empresa multinacional, com escritório principal aqui perto. Comecei a trabalhar lá, assim que saí da faculdade. E como você, amo o que faço.
— Há quanto tempo você é casada? — A pergunta saiu um pouco sem emoção como se fosse feita por cortesia.
— Dez anos — Assim que respondi, senti uma fisgada na perna. E o mais engraçado foi lembrar onde me encontrava. Não havia dor como das outras vezes. Para mim, até aquele momento, estava simplesmente deitada conversando com um amigo.
— Ai! Essa doeu.
— Desculpe — Ele parecia envergonhado. — Você tem filhos?
— Sim, tenho três. Alex, Flávio e Nicole. Eles são a minha vida.
— Nossa, três! — Esperei por outro deslize de sua mão, mas não aconteceu. — Como arranja tempo para trabalhar e cuidar das crianças?
— Não sei. A gente se acostuma com a correria e acaba ficando fácil. E você, é casado? — Não tinha visto aliança, mas, mesmo assim, resolvi perguntar. Aguardei ansiosa pela resposta, com a respiração presa. Não sabia qual o melhor resultado, se sim ou se não. E aquilo importava? Eu era casada. O que mudaria se fosse não? Ainda existiria a culpa que carregaria.
— Não, sou divorciado. — Respirei aliviada e sorri para mim mesma, ao passo que a alegria tomava forma, cor e aroma.
— Tem filhos?
— Sim. Um menino de quatro anos, Mateus. — Sua voz tinha um misto de orgulho e felicidade.
— Puxa, que legal, quase a idade da minha Nicole.
Naquela tarde, a conversa fluiu com naturalidade. Falamos sobre quase tudo, família, amigos, profissão e banalidades. Ele não voltou mais no assunto proibido, também não perguntou sobre o meu casamento e fiquei aliviada por isso. Ao mesmo tempo em que tinha curiosidade em descobrir o seu “segredo”, não queria esmiuçar a minha vida de casada para ele. Aparentemente, não estávamos fazendo nada errado, porém, não era verdade, e sabíamos disso. Não percebemos o tempo correr e, para ser bem sincera, não estava preocupada.
— Pronto, acabou! Quer ver? — Retirou as luvas e me ajudou a descer da maca. Parei em frente ao espelho, apreciando a obra prima.
— Uau! Ficou perfeita! Obrigada, era exatamente assim que eu queria. — Não conseguia tirar os olhos da minha mais nova aquisição. Linda, pequena e delicada. A frase ficou escrita bem abaixo do desenho de um livro e ao redor, para dar mais suavidade, ele colocou algumas rosas. O traço era fino e preciso. Tanto o livro como os dizeres estavam na cor preta e as flores em vermelho vivo davam o destaque na pele clara.
— Também gostei. Ficou ainda mais bonita em você. — Ele me encarou pelo reflexo do espelho. Será que estava corada? Claro, quem não ficaria. Toda mulher gosta de ser elogiada e eu não era diferente. Gustavo passou todos os cuidados que eu deveria tomar, enquanto emplastou o local com uma pomada cicatrizante para depois colocar um filme plástico. Avisou que se eu tivesse algum problema, poderia ligar para ele. Problema? Eu tinha vários, e a cicatrização era o menor deles.
— Você já tem que ir embora? Tem alguns minutos para um café? Acabei pulando o almoço e estou com fome. — Para ganhar tempo e pensar na resposta do seu convite, peguei o meu celular para consultar as horas e me deparei com duas mensagens e três ligações perdidas do meu marido. Putz... Estava ferrada! Não o ouvi tocar e muito menos me lembrei dele.
E aí, chegou bem? Já está fazendo? Deu tudo certo?
Tentei te ligar e deu cx postal. Bjs
Cadê vc? Por que não atende ao telefone?
Pedi licença para o Gustavo e saí da sala para fazer a ligação.
— Alô! — Forcei uma calma inexistente.
— Oi. Caramba, por que não atendeu ao telefone? — O tom enérgico da sua voz não deixava dúvidas e, naquela situação, o melhor seria dizer a verdade.
— O telefone estava na bolsa e não o ouvi tocar. Desculpe, não estava prestando atenção. O que você queria falar comigo?
— Vou chegar mais tarde hoje, tenho uma reunião com um cliente na hora do jantar. Não precisa me esperar. Já acabou de fazer a tatuagem? — Você acha que isso não era o destino intervindo? Responda-me com sinceridade.
— Não. Ele atrasou um pouco para chegar, ainda vai demorar. Dei uma parada para ir ao banheiro e peguei o celular.
— De novo?
— Sim. Agora quanto ao seu jantar, tudo bem. Sem problemas. Se, por acaso, eu pegar trânsito na volta para casa, vou pedir para a Rita ir buscar as crianças na escola.
— Não gosto de transferir a responsabilidades das nossas crianças para outra pessoa. Pode muito bem ser um incômodo. — Conhecia muito bem a teoria do meu marido e, até certo ponto, também concordava. Contudo, não fazíamos desse ajuste um hábito, pois sempre resolvi tudo sozinha e não costumava pedir favores à minha cunhada mais próxima.
— Eu sei, mas uma vez só não vai matar. — Controlei minhas palavras.
— Tudo bem. Cuide-se para voltar, okay? Beijos.
— Pode deixar. Beijos e até mais tarde.
Precisei de alguns minutos para me acalmar. Não pretendia mentir e, no começo, falei a verdade. Porém, com relação ao atraso do Gustavo, bom... deixa pra lá. Sabe o que me deixou mais brava? Ele não me perguntou se a tatuagem estava ficando legal? Se eu estava gostando? Não. Só queria saber por que não atendi a merda do telefone e se já tinha acabado. Tá, sei que estou exagerando e que procurei uma desculpa para me sentir menos culpada por cogitar o convite de Gustavo. E serei sincera aqui, espero que entenda, pois tentarei sempre ser a mais verdadeira possível, eu aceitaria o convite para o café de qualquer maneira.
Voltei para a sala já limpa e organizada e o encontrei sentado com os cotovelos em seus joelhos e as mãos deslizando pelo cabelo. Gustavo ergueu o rosto e me encarou com um olhar intenso.
— Por favor, aceite o meu convite. — Sua voz beirava à súplica
Como poderia recusar? Café mais Gustavo, parecia a combinação perfeita. Mandei uma mensagem para a Rita na mesma hora:
Oi, Rita. Vou me atrasar.
Você pode pegar as crianças na escola para mim, por favor?
Ela respondeu no mesmo instante:
Claro, não se preocupe. Vou levá-los para minha casa. Bjs.
Olhei para ele, sorrindo.
— Vamos?! — Dessa vez, estendi a minha mão e ele aceitou.
Ele me levou a uma cafeteria próxima ao estúdio. Um local simples, porém, aconchegante com mesas na parte da frente e, nos fundos, alguns sofás. No canto direito, bem ao lado do balcão, revistas e livros foram disponibilizados para os clientes. As paredes brancas com detalhes em creme serviam de apoio para vários quadros com figuras de sucos, doces e lanches.O ambiente estava praticamente vazio e os poucos frequentadores se misturavam com o aroma do café, com o tilintar de louças sendo lavadas e as vozes sussurradas da TV. Sentamo-nos na última mesa, um de frente ao outro. Gustavo pediu um suco com pão de queijo e eu pedi o meu básico, café puro. Não tinha fome e, graças ao meu nervosismo, comer era a última coisa que conseguiria fazer.Outra vez a conversa transcorreu de forma natural. Contou-me um pouco mais sobre a sua profissão, a época da faculda
A minha vida voltou “quase” ao normal. Depois de tanto chorar e fazer promessas e mais promessas, resolvi segui-las dentro da normalidade costumeira.O trabalho ajudava bastante, mantinha a cabeça ocupada. Em casa, como sempre, as crianças me davam trabalho e, até certo ponto, uma excelente distração. No casamento, aí... já era outra história. Estar presente, de corpo e alma, demandava um rigor severo. Com o mínimo de esforço, meu último pensamento antes de adormecer e o primeiro da manhã voltavam-se para o Gustavo. Tirá-lo da mente tornou-se, independentemente do meu empenho, uma tarefa hercúlea.O marido percebeu o meu afastamento e questionou, mas eu sempre encontrava uma mentira para contar. Como a gente aprende a mentir, né? Às vezes, o cansaço era o vilão; no outro dia, problemas no serviço ou a desobediência
Cheguei um pouco atrasada do almoço, mas ninguém percebeu. Naquele dia, o meu chefe participava de uma reunião fora da cidade, então não precisei dar satisfação a ninguém, além do meu cartão de ponto, claro. Na realidade poderia demorar o quanto quisesse, só não era irresponsável o suficiente para agir daquela forma, pelo menos no emprego.Permaneci por uns longos minutos, sentada no meu espaço, saboreando a adrenalina por beijá-lo, o medo de sermos vistos juntos e a culpa pela traição. Passada a euforia, o peso da minha atitude trouxe-me a falta de ar. Inspirei fundo algumas vezes, acalmei o meu coração enquanto as perguntas se formavam. O que eu faria? Viveria o meu romance em segredo? Equilibrando um amante e um marido? Desistiria de tudo para ficar com o Gustavo? O que os meus filhos pensariam de mim? E os meus pais? E que beijo foi aquele?
Os dias se passaram e a saudade de Gustavo só aumentava, o sentimento exigia sua voz sussurrando no meu ouvido, o sorriso contagiante e o calor de seu corpo junto ao meu.Pensei, durante toda aquela semana, em responder à mensagem de texto, porém, por medo, me contive. O ideal seria apagá-la, contudo, a paixão nos torna irresponsáveis diante de alguns atos e, baseada nesse princípio, fiz questão de salvá-la no computador do trabalho. Às vezes, ela se revelava um bálsamo para a saudade.Verificar o celular em busca de recados não lidos ou, quem sabe, de coragem para demonstrar o meu amor, virou uma rotina. Compreendi o quanto seria difícil continuarmos às escondidas, me preocupar em ser vista ao seu lado, nos nossos almoços; deixar o telefone visível para ser descoberta, caso alguém mexesse nele; esconder de todos a minha ansiedade; controlar os m
Depois de uma noite maldormida, precisei dos recursos da maquiagem para disfarçar as olheiras, me peguei várias vezes olhando para as crianças e lembrando-me de uma época em que tirar notas boas na escola era o maior dos meus problemas.Meu marido saiu antes do horário habitual, após receber uma ligação que o deixou apreensivo e inquieto. O egoísmo ofuscou o bom senso, a ponto de eu ignorar o bem-estar do pai dos meus filhos.Fui ao trabalho com a angústia serpenteando mais um dia que, antes do Gustavo, seria rotina. Sempre fui uma pessoa confiante e prática, mas aquela situação me colocava à prova de todas as maneiras. O medo de ele não aparecer no almoço como havíamos marcado controlava a forma robótica como desenvolvi o serviço naquela manhã. E, infelizmente, meus instintos me avisaram do perigo, esperei por uma hora no &l
Você conseguiria dormir sabendo que o dia seguinte seria essencial para concretizar a sua decisão? Então, eu não consegui. Passei a noite em claro imaginando mil cenários divergentes. Situações em que tudo saía exatamente como planejado ou nada daria certo.Pensei na roupa que usaria e, claro, na lingerie também. Minha inocência perdida compreendia exatamente qual seria o final daquele encontro. E, mesmo que fosse totalmente errado, desejei que terminasse nos braços do Gustavo.Levantei-me antes do toque do despertador, preparei o café da manhã e o lanche das crianças. O meu marido havia saído antes do amanhecer para não pegar trânsito na estrada. A distância da sua viagem não era longínqua, porém, não arriscaria chegar atrasado no compromisso. Estava tão concentrada no que aconteceria naquela tarde, que não
Cheguei à casa de Rita com a sensação de ter dentro do peito o brilho de todas as estrelas. Lógico que minha cunhada percebeu a diferença, afinal elas não pareciam nada sutis. O sorriso esfuziante, o caminhar leve, os suspiros perdidos... Deixei a minha resposta seguir dentro da simplicidade que o momento oferecia: “estou bem”. Seu olhar questionador era um prelúdio do que viria a seguir, contudo, naquela noite, não havia réplicas a serem dadas. Sempre existiria o dia seguinte.A agitação dos meus filhos não atrapalhava a minha felicidade. Seus gritos, as risadas exageradas, as brigas costumeiras entre os três. No entanto, a Nicole foi a única que realmente prestou atenção em mim, me perguntou o motivo da minha alegria. Engraçado como as mulheres – até mesmo as inocentes – são sensíveis. Outra vez, a resposta veio c
Fábio. Esse era o nome do meu marido, o pai dos meus filhos e do meu destino. Fábio, Fábio, Fábio. Durante muito tempo, não consegui pronunciá-lo sem que a culpa acompanhasse as palavras.Parado na minha frente, indefeso e inseguro, seus lábios revelavam sua doença. Minha mente misturava as informações do presente com as imagens do nosso passado. Um filme antigo mostrava nossos melhores momentos: o casamento, as crianças, o futuro e tudo aquilo que parecia suspenso, ou melhor, retirado de nossas vidas.Fábio repetia as palavras do médico, porém, as questões que se formavam em minha mente me impediam de assimilar o relato. Por quê? Ele sairia ileso daquela doença? E os nossos filhos? Eles precisavam de um pai, precisavam do Fábio. A impotência pesava em meu estômago, assim com a raiva, o nojo, o arrependimento e, por fim, a vergonha. C