Capítulo 5

 A minha vida voltou “quase” ao normal. Depois de tanto chorar e fazer promessas e mais promessas, resolvi segui-las dentro da normalidade costumeira.

O trabalho ajudava bastante, mantinha a cabeça ocupada. Em casa, como sempre, as crianças me davam trabalho e, até certo ponto, uma excelente distração. No casamento, aí... já era outra história. Estar presente, de corpo e alma, demandava um rigor severo. Com o mínimo de esforço, meu último pensamento antes de adormecer e o primeiro da manhã voltavam-se para o Gustavo. Tirá-lo da mente tornou-se, independentemente do meu empenho, uma tarefa hercúlea.

O marido percebeu o meu afastamento e questionou, mas eu sempre encontrava uma mentira para contar. Como a gente aprende a mentir, né? Às vezes, o cansaço era o vilão; no outro dia, problemas no serviço ou a desobediência das crianças.  Especializei-me nas desculpas e as aceitei como parte da minha mais nova personalidade. Não havia o que ser feito. Dizer a verdade? Nunca. Ele não merecia, e estava disposta a sofrer sozinha a magoá-lo.

            Quero que vocês me entendam, o problema não era o meu casamento, mas sim as mudanças ocorridas em meu coração. A covardia me impedia de admitir a gravidade da situação. Tentei manter as aparências, saíamos para jantar, passeávamos como um casal e até chegamos a ter um final de semana romântico, longe dos nossos filhos. Se a viagem tivesse acontecido um mês antes daquele fatídico sábado, eu estaria nas nuvens. Fui tratada como uma verdadeira rainha e, de alguma forma, meu marido parecia compreender a minha necessidade. Em casa, sempre que o trabalho permitia, chegava mais cedo para ajudar nas tarefas. Até mesmo no meu serviço, fui surpreendida pela sua presença, em alguns dias, na hora do almoço. Nessas ocasiões, suas justificativas caíam na mesma resposta: queria te fazer uma surpresa... Será?

Durante aquele nosso final de semana, ele foi excepcional. Sua atenção e presença serpenteavam minha culpa. Participou-me de todos os seus problemas no escritório e das suas preocupações com o futuro dos nossos filhos. Comentou a satisfação em que vivia, tanto no serviço quanto em casa. Confessou seu amor por mim e agradeceu por ter me conhecido.

A cada palavra dita, tentava me convencer de que caminhava na direção correta. Como poderia ser diferente? Aquele homem lindo, ali na minha frente, esboçava juras de amor. O que mais poderia querer? Ah! Não falei sobre a beleza dele, né? O meu marido era maravilhoso. Chamava a atenção e conquistava plateias femininas quando trajava um dos seus infinitos ternos. Alto, cabelo loiro que combinava com seus olhos e um corpo fantástico. Sua boa genética esnobava a malhação e, antes de tudo acontecer, nunca virei meu rosto em busca de outra beleza além dele. E por que mudou? Não sabia. Em alguns momentos, ansiei pela fuga e expurgar o grito preso à garganta; em outros, pedi, ou melhor, supliquei a Deus para que arrancasse Gustavo do meu coração. Devolvendo assim, minha vida calma e segura. No entanto, fui ignorada. Gustavo permaneceu exatamente onde quis e, infelizmente, impunha-se em horas erradas.

Esquivar-me do ato sexual também requeria muita força de vontade. No entanto, dores de cabeça, cansaço... ficaram perdidas diante da máscara que usava. Fui ao fundo do poço quando, em uma dessas vezes, alcancei o orgasmo imaginando ser beijada e acariciada por Gustavo. Eu sei, não fique brava comigo, okay? Não fora possível evitar. Tomada por um nojo de mim mesma, pela mulher que me tornei, lágrimas afundavam as minhas feridas enquanto me escondia no banheiro.

Meu marido não merecia, pois, mesmo que você não acredite, eu o amava. Existia amor, mas não a paixão. Meu coração não batia mais descompassado por ele. Minha pulsação corria tranquila quando eu o via e, as tão famosas borboletas haviam desaparecido. E só me dei conta da grandiosidade dos meus sentimentos pelo Gustavo, no dia em que, antes de sair para o almoço, meu telefone tocou.

— Escritório do senhor Antônio, boa tarde.

— Fabiana? — Nunca em toda minha vida fiquei sem chão. Aquela voz... apoiei-me na mesa quando as pernas falharam. Percebi que todo o esforço daqueles dias, não valeu de absolutamente nada. Estava ferrada.

— Sim — consegui dizer sem gaguejar, na tentativa de ocultar a descoberta do interlocutor. Não precisava ser tão explícita, não é mesmo?

— Oi, sou eu, Gustavo. Estou te atrapalhando? — Claro que sim! Ele destruía minhas defesas e abalava minhas estruturas.

— Não. Claro, que não. — Viu como mentir ficou fácil para mim? — Como conseguiu o meu telefone?

— Na sua ficha. Lembra que preencheu os seus dados para contato?

— Ah. Verdade. Tinha esquecido. — Queria completar a frase dizendo: que bom que você ligou. Senti saudades da sua voz, mas refutei.

 — Então... está tudo bem com você? E a tattoo já cicatrizou?

— Sim, tudo tranquilo — Mentiras e mais mentiras. — A tatuagem está perfeita.

— Achei que você viria com os seus cunhados no retorno de trinta dias, sabe... só para ver se precisava de algum retoque. — Sabia dessa possibilidade, porém, inventei uma desculpa para não ir. Tinha feito uma promessa, lembra? Esquecê-lo e, com certeza, voltar àquele estúdio não ajudaria muito.

— Não dava, tive que trabalhar. — Minha voz falhou com a desculpa. Será que ele percebeu?

— Estava pensando — hesitou um pouco antes de continuar —, estou perto do seu serviço. Você já almoçou? Quer almoçar comigo? — Fiquei surpresa com o convite e precisei me sentar. E agora? Você faria o quê? Falaria não e se lamentaria para o resto da vida? Ou arriscaria a sua sanidade mais um pouquinho?

Sabe qual atitude tomei?

— Ainda não almocei. Na verdade, estava saindo agora mesmo. O quão perto você está? Posso esperar um pouco...

— Já estou aqui embaixo. — Parecia afoito.

— Sério? — Quase não consegui me conter.

— Sim, estou te esperando.

— E se eu não aceitasse o convite? Ou já tivesse almoçado? — Sorri depois de um longo e doloroso mês, parecia ser a réplica ideal e senti a ansiedade se avolumar.

— Era um risco que estava disposto a correr. — Fui presenteada por sua resposta padrão.

— Vou descer. — Desliguei o telefone e saí às pressas.

Ao chegar na entrada principal, o coração deu um salto ao vê-lo parado perto da porta. Gustavo trajava roupas divergentes do dia que o conheci. Vestia uma calça de sarja, sapato e camisa. As mudanças lhe davam um ar requintado, porém, os olhos negros ainda eram os mesmos. Lindos, intensos e, outra vez, fui sugada para o seu mundo. Aproximei-me, não tanto quanto eu gostaria, mas o suficiente para sentir o seu calor e aroma. Permanecemos em silêncio, nos apreciando e sorrindo como dois adolescentes. Passados alguns segundos:

— Oi. — Cumprimentou-me com um beijo na bochecha. Os lábios dele na minha pele fez o corpo aquecer compactuando com a saudades pulsante do seu toque.

 — Oi — respondi em um suspiro.

— Desculpe. — A rouquidão da voz dele me despertou o desejo.

— Pelo quê? — O vinco entre as sobrancelhas denunciava a minha falta de compreensão.

— Tentei te esquecer, tirá-la da minha cabeça e do meu coração, mas falhei miseravelmente. Esse último mês foi um inferno para mim, Fabiana. Precisava te ver de novo, senti-la, ouvir sua voz e me perder no seu rosto. Por isso, estou aqui hoje. Não sei como será nosso futuro, muito menos se existe algum. Tenho tantas perguntas, tantas dúvidas. Preciso entender o que está acontecendo comigo e porque agora.

E foi assim...

Gustavo descreveu, ali, no hall de entrada sussurrando como um segredo, o nosso mês inteiro. Dividimos o mesmo sofrimento, as mesmas dúvidas, inseguranças e desejo.

— Fabiana, fala alguma coisa! — Segurou-me pelos ombros quase me sacudindo.

 — Por favor, Gustavo, me leve daqui. — Ele buscou em meu rosto, talvez, a certeza das minhas palavras. Entrelaçamos as mãos e saímos sem olhar para trás, seguimos direto para o carro dele.

Não estava nervosa, não sentia culpa, apenas felicidade.

                                                      **********

Não sabia aonde iríamos e não me importei. O silêncio foi preenchido pela música que tocava no rádio, “Whitesnake – The Deeper the love”. Havia tanto a dizer, porém, a coragem me faltava. A lembrança da sua confissão, martelando em minha mente. Meu Deus, o que eu faria? Estava apaixonada e não poderia mais fugir daquele sentimento.

 — Chegamos. — Tirou-me dos devaneios.

— Onde estamos? — Saí do carro e o acompanhei. As pernas trêmulas dificultavam os passos.

— Na minha casa — Abriu a porta, indicando a minha entrada. — Fique à vontade. Não repare a bagunça. Não tive muito ânimo para arrumar nada nesses últimos dias.

— Tudo bem.

— Você aceita algo para beber? Tenho refrigerante, suco... — Ele parecia nervoso, as mãos deslizavam pelo cabelo. Notei que aquele gesto deveria ser a maneira de se controlar.

— Só uma água, por favor. — Engoli em seco, a garganta quase obstruída pelo nervosismo.

— Certo. Volto já.

Aproveitei sua fuga para perscrutar ao redor. Sua casa parecia espaçosa e arejada, com duas vidraças grandes na parte da frente e uma cortina branca com detalhes em amarelo. A claridade na sala impunha sua presença através das janelas entreabertas. Os móveis básicos remetiam a uma casa de solteiro: um sofá grande, revistas de tatuagens perdidas pelo espaço, assim como alguns brinquedos, provavelmente do seu filho; uma televisão de tela plana e um videogame. As paredes brancas exibiam dois quadros de imagens abstratas. De certa forma, o ambiente compactuava com o Gustavo. Simples, mas, com certeza, acolhedor.

 — Obrigada! — Entregou-me o copo com água. O toque frio nas palmas úmidas me fez estremecer. Não tinha sede, no entanto, obriguei a beber todo o conteúdo. O silêncio e o constrangimento preenchiam cada espaço vago. Eu não sabia como começar e, talvez nem ele.

— Você não quer se sentar? — Apontou o sofá de couro. — Quanto tempo dura o seu horário de almoço?

— Não, obrigada — acompanhei a negativa com a cabeça. — Uma hora. Preciso estar de volta às 14 horas. — Criei coragem e, pela primeira vez, tomei a iniciativa. — Como sabia onde eu trabalhava? Não me lembro de ter colocado o endereço na ficha.

— Liguei outro dia para falar com você, mas alguém atendeu e, para não te chamar e te prejudicar, perguntei somente o endereço.

— Ah! Faz tempo? — Segurei com firmeza o copo, na tentativa de esconder meu tremor. O efeito da água desapareceu diante da ansiedade crescente em minha garganta.

— Semana passada. — Respirou fundo e, antes de continuar, retirou das minhas mãos meu porto seguro, colocando-o em cima do braço do sofá. — Olha, Fabiana, vou direto ao ponto, compreendo sua condição de casada e com filhos. Juro que minha intenção não é complicar sua vida, mas pensar em você durante todo maldito minuto desde que te conheci e perceber o quanto me vi perdido nesse último mês, quase destruindo minha sanidade, transformou-me num homem irracional. Quando entrei naquela sala e a vi cantarolando baixinho, fiquei hipnotizado. — Ele chacoalhou a cabeça como se fosse algo impossível. — Não consigo explicar. Existe essa força que me prende a você.

Gustavo abria o coração, enquanto seus passos marcavam o chão da sala, num ritmo nervoso. Permaneci estática, absorvi sua confissão trazendo o peso do seu amor para dentro do meu peito. Então era verdade, pensei. Ele foi afetado por mim tanto quanto eu por ele. E, sem perceber, encontrei todas as minhas respostas.

— Desculpe. — Continuou no seu caminhar constante. — Não queria assustá-la, te juro. Nem tenho esse direito, mas se não revelasse os meus sentimentos, provavelmente não encontraria a paz que necessito para seguir com a minha vida. A curiosidade em descobrir a sua reação ao meu toque, quase me levou à loucura. Sabe o quanto foi difícil terminar aquela tattoo? Minha concentração estava por um fio. A sua voz ocupava toda a sala, o calor da sua pele, sua risada tímida. Queria... — Dei um passo em sua direção, ele parecia alheio ao meu movimento.

— Gustavo?! Gustavo?! — precisei chamá-lo mais alto na segunda vez. Ele interrompeu o relato, assim como suas passadas frenéticas. Recuperou um pouco o seu controle. As pupilas dilatadas me encaravam com veemência. — Por favor, me beije! — A hesitação ficou esquecida em algum lugar entre a razão e o desejo.

Amor, luxúria e impetuosidade mantinham nossas bocas seladas. Perdemos a racionalidade que foi ocultada em nossas mentes, as pessoas que existiam em nossas vidas e as dificuldades que surgiriam com aquela entrega. A leveza do meu corpo apoiava-se no seu aroma impregnando os meus sentidos. Seu gosto e calor cingia minhas emoções. A certeza de pertencer àquele homem apunhalou-me o peito. Trocamos carícias proibidas e juras de amor em silêncio através dos nossos lábios. O tempo perdeu a batalha para os beijos. Um, dois minutos... uma eternidade. Recuperar o fôlego, de vez em quando, reabastecia nosso desejo. Um vício inundava minha alma.

Com relutância, Gustavo afastou-se e encostou sua testa na minha. As mãos travadas na minha cabeça impediam que eu fugisse. Nossas respirações corriam sem controle. A boca parecia inchada, porém, não me importei. Necessitava de mais, muito mais. Ele entendeu a súplica do meu corpo ou, talvez, a sua necessidade fosse a mesma, pois selou os nossos lábios mais uma vez. Aproveitei para me aproximar, passei meus braços pela sua cintura e o apertei. Não poderia existir espaço entre nós.

Contra minha vontade, ele foi diminuindo o ritmo. Suas palmas quentes deslizavam sobre a minha face. A gentileza me pegou desprevenida, assim como a descoberta dos meus olhos marejados.

— Por que as lágrimas, Fabi? — Sorri ao perceber que era a primeira vez que me chamava assim.

— Estou feliz. A emoção de ter você assim.

— Ah, Fabi. — Ele me apertou em seus braços e descansou o queixo na minha cabeça. — Como sonhei com esse beijo. Você nem imagina. Não sei o que fazer sem você.

— Eu tentei te esquecer, Gustavo — confessei, ainda agarrada a seu peito. Recusava-me a soltá-lo. — Assim como você, meu último mês foi torturante. Fingi e menti para minha família. Não sei como lidar com os meus sentimentos desde que você entrou naquela sala. — As lágrimas, enfim, deslizaram pelo meu rosto.

— Também não, Fabi — beijou minha cabeça —, mas daremos um jeito. Eu prometo.

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