Capítulo 2

Bom, você pode imaginar como foi o meu final de semana? Uma batalha quase perdida para manter a calma e ficar centrada.

Naquele sábado, saímos do estúdio mais tarde do que imaginávamos. A tatuagem do Sérgio era grande e rica em detalhes e levou um tempo precioso para ser concluída. Meu marido me perguntou a necessidade de outra sessão, e foi nesse ponto que surgiu a primeira de muitas mentiras. “Estava doendo e comecei a ficar de saco cheio”. Lógico que ele acreditou, não havia motivos para suspeitar uma vez que nunca se submetera à dor.

Depois do estúdio, fomos direto para a casa dos meus cunhados, policiei-me o quanto pude para permanecer na conversa. Entretanto, regressei por várias vezes àquela sala, tão nítido quanto possível, ainda sentia o aroma do Gustavo, a cadência de sua voz e os olhos cor de azeviche.

 Quando regressei para casa, com as crianças tomando conta de tudo, as coisas ficaram um pouco mais acessíveis. E, naquele final de semana, não foi diferente com os filhos e marido, já possuía bastante distração. Contudo, foi impossível esquecer a figura de Gustavo que não saiu da minha mente em nenhum momento.

Não havia tanta diferença entre a minha vida e as demais famílias. Eu era a mais nova de três irmãos, todos ótimos, protetores, amigos e casados. O mais velho, Marcos, constituíra sua própria família havia dezoito anos com Sara e seus dois filhos, Guilherme e Rafael. O do meio, Alexandre, foi o último a se enforcar em uma união que já perdurava cinco anos, cimentada pela gravidez de apenas dois meses.

Fomos criados com muita união e cresci ouvindo meus pais – casados por quarenta anos – afirmarem que a família vinha sempre em primeiro lugar. Trabalharam muito para nos sustentar e só se aposentaram quando vieram os netos, pois desejavam curti-los o máximo possível.

Nós nos conhecemos na faculdade através de amigos em comum, eu começava o meu curso e ele já se formaria naquele mesmo ano. Namorávamos há meses quando fiquei grávida aos dezenove anos do primeiro filho, Alex. Uma coisa levou a outra e quando percebemos, estávamos em núpcias. Meus pais não me obrigaram a casar, mas enxerguei a decepção nos olhos deles, então me decidi pelo casamento e nunca planejamos nada, sempre deixamos as coisas acontecerem no seu fluxo. Depois veio o Flávio, oito anos; e a raspa da panela, minha princesa, companheira, Nicole, com cinco.

Se minha filha aparecesse em casa hoje e falasse: “mãe, estou grávida”, eu ficaria feliz no primeiro momento. Contudo, não seria hipócrita e, com certeza, seguiria o exemplo dos meus pais, talvez pela criação que recebi ou quem sabe por medo. Assim como eles, gostaria que tivesse sido de outra forma. Cumprir um ritual aprendido por gerações: estudo, realização tanto no profissional como no amor; casamento, para depois vir os filhos. Não me arrependo de ter casado e gerado meus filhos, mas sim, de não ter feito tudo no devido tempo. Entretanto, como acredito que o destino estava escrito, então, era para ser assim.

Mesmo grávida, continuei cursando a faculdade. No começo dava para conciliar, contudo, no final da gestação ficou insustentável. Tranquei a matrícula durante um ano, e só regressei quando Alex foi para a escolinha. Não queria desistir e não podia dar mais aquela decepção aos meus pais.

Durante os anos seguintes, fomos nos conhecendo como marido e mulher. Então, Flávio apareceu, um amor de criança. Lindo, bem branquinho e carequinha, com os olhos verdes do pai. Alex também era lindo, claro, com a sua pele morena, olhos castanho-escuros e com um sorriso encantador.

A vida trilhou seu percurso, porém, um pouco conturbada e exaustiva. Algumas prioridades no casamento foram deixadas de lado, devido à escassez de tempo e as obrigações com os filhos. Recebíamos ajuda das nossas famílias, mas quando se têm filhos, as responsabilidades mudam.

Consegui me formar, arranjei um emprego como secretária em uma empresa multinacional, onde ainda trabalho. Meu marido se formou em Direito, especializou-se como advogado criminalista e trabalhava em uma firma de grande porte numa cidade grande. A expectativa era de ele se tornar sócio ainda naquele ano.

Por último, e não menos importante, veio a Nicole. Loirinha de cabelos bem lisinhos, olhos castanho-claros e muito, muito serelepe. Sempre ao meu lado, me contando o seu dia na escola e me enchendo de perguntas.

Ah, esqueci de me descrever, né? Nem pensei muito nisso, não sei como fazer, sou morena com cabelo longo, até o meio das costas e olhos castanho-escuros. Tenho 1.65m, talvez a altura padrão. Meu peso? Nem morta eu revelo. Isso não é coisa que se pergunte! Vamos dizer que não sou gorda e nem magra. Não tenho a ilusão de ser jovem e com tudo em cima, pois com três filhos, algumas coisas mudaram em meu corpo. Não havia como impedir.

A música, principalmente rock, servia de combustível para a alma; dançar, sair para jantar, viajar e passear com meu marido e as crianças. Meus filhos eram a minha vida. É por eles que vivia. Está vendo o motivo de eu ter ficado confusa? Possuía tudo: família, amigos, casa, filhos, emprego e amor.

Por essa razão, me perguntei tanto naquela época o motivo do Gustavo ter aparecido no meu caminho. Não procurei por mudanças e nem sabia se existia algo para ser alterado. Será?

Lógico que com a gravidez e com o casamento precoce deixei de viver muitas aventuras. Na realidade, sem ser egoísta, o meu marido também. Nós poderíamos ter presenciado outras experiências. Talvez nem continuássemos juntos, quem sabe? Reafirmo, ele era um excelente marido e um pai maravilhoso. Talvez o problema fosse comigo, mas fazer o quê? Não tinha como mudar, a vida foi simplesmente me levando.

 Às vezes, pensava se fora esse o motivo pelo qual resolvi me arriscar e regressei ao estúdio para terminar a tatuagem. Acho que, no fundo, desejei vivenciar o algo a mais, além de mãe e esposa. Procurei pelo risco, percebendo muito tarde que tudo na vida tinha um preço.

Passei por aquele domingo sem grandes acontecimentos, almoço em família e a tão angustiante ociosidade caseira. Até tentei ler um livro, sem sucesso, a concentração parecia algo ilusório. Com a aproximação do início da semana, aumentava a minha expectativa e angústia com o que viria.

Inúmeras vezes repassei a segunda mentira que contaria. Precisava inventar uma desculpa para sair mais cedo do serviço e uma para o meu marido.

— Fabiana?

— Oi? — Cheguei à sala, imaginando o que ele falaria. Na realidade, esperei por aquela pergunta desde a hora em que concordei em voltar.

— Amanhã você sairá mais cedo do trabalho, certo? Por que não marcou para o sábado? Assim, eu te levaria.

“Porque preciso ir sozinha”, pensei.

— Ele não tinha e não quero ficar com a tatuagem inacabada. O horário mais próximo era esse. — Não conseguia encará-lo, por esse motivo, mantive-me de costas recolhendo os brinquedos da Nicole.

— Ainda não entendo como não conseguiu terminar no mesmo dia. Sei que estava doendo, mas você já fez tantas. Não dava para aguentar?

— Talvez, mas fiquei de saco cheio. Sei lá. Não se preocupe com o meu trabalho, tenho algumas horas extras e vou tentar trocar.

— Você vai de carro ou quer que eu te leve? Posso dar um jeito no escritório.

— Acho que vou de carro. Não mude seus compromissos por mim, ainda vou ligar amanhã para confirmar. Talvez nem dê certo e você viria à toa.

—Tudo bem. Só me avise se precisar da minha ajuda. Vou tomar um banho, estou cansado e sujo de tanto jogar bola com o Alex. Não quer vir comigo? — A sugestão nítida no tom da sua voz. Meu coração pesou dentro do peito.

— Agora não dá, preciso arrumar o material escolar das crianças para amanhã.

Ele não reclamou, claro. Passou por mim, me fez um carinho e caminhou para o banheiro. Não havia como acompanhá-lo. Não estava no clima, não conseguiria fingir e ele perceberia, então me esquivei. Só depois percebi que não seria a única vez que o evitaria.

                                                ***********

Não aguentava mais ficar na cama e acabei me levantando bem antes do horário normal. Passei a noite em claro considerando o que estava fazendo, ou melhor, o que estava prestes a acontecer. Imaginei vários cenários: sobre o que conversaríamos e qual seria a sua reação diante a minha presença. As perguntas cresciam, conforme a minha ansiedade aumentava. Será que sua reação fora a mesma que a minha? Era casado? Qual a idade dele? Teria filhos? Há quanto tempo fazia tatuagens? Se gostava...? Eram tantas, que no íntimo, desejei mais de um encontro.

Deixei as crianças na escola e fui para a empresa. Geralmente trabalhava de saia, porém, coloquei uma calça para esconder a perna semitatuada. Era óbvio, pelo menos para mim, que não tinha como largar o serviço por causa de uma tattoo, meu chefe não gostaria. Nunca tivemos nenhum problema, e torcia para continuar dessa forma. 

Meu chefe, senhor Antônio, era um homem maravilhoso. Quase todos acreditavam que ele deveria se aposentar para curtir a esposa de longa data. Porém, ele me confidenciara que sairia da empresa somente se fosse obrigado. Ficar em casa, ocioso, não combinava com sua personalidade.

Menti ao dizer que precisava ir ao médico. E claro, ele nem questionou. Mesmo atribulada, ainda me sentia apreensiva ao olhar o relógio. O horário agendado para às 15h30, exigia pelo menos a minha saída trinta minutos de antecedência. Não era longe a empresa do estúdio. Contudo, não queria correr o risco de perder nem um minuto sequer.

Na minha opinião, o escritório ficava na parte mais bonita da cidade, numa avenida de muito prestígio por agrupar uma boa parte de empresas importantes. E como o local ficava bem próximo de um parque renomado, não levaria mais do que quinze minutos para chegar até o local. Sim, eu sei, você está se perguntando o motivo dos trinta minutos, se chegaria em quinze? Preciso responder? bom. Isso se chama ansiedade. Quem pode me culpar por isso?

 Quando olhei mais uma vez para o relógio, estava quase na hora. Fui à toalete, escovei os dentes, penteei os cabelos e refiz a maquiagem. Antes de ir, caminhei até o escritório do meu chefe para avisá-lo da minha partida.

 — Senhor Antônio, preciso ir. Deixei todos os relatórios prontos na sua mesa com as pastas que me pediu. Qualquer dúvida, me ligue no celular.

— Tudo bem, Fabiana. Obrigado, se precisar, eu telefonarei. Mas tenho certeza de que está tudo em ordem. Até amanhã, e boa sorte no médico.

Agradeci e saí da sala me sentindo um pouco corada, envergonhada por mentir. Assim que entrei no carro, recebi uma ligação do meu marido.

— Alô? — Respirei fundo e atendi. As mãos trêmulas segurando o aparelho.

— Oi, Fabi, já saiu? Tem certeza de que não quer que eu te leve?

— Oi, querido. Não precisa se preocupar. É bem pertinho daqui, nem vou pegar trânsito. Estou saindo um pouco mais cedo para ver se ele me atende antes do horário, assim volto logo. — Estava ficando craque nas mentiras.

— Tá bom. Qualquer coisa, me liga. Até mais tarde. Te amo.

— Também te amo. Tchau.

Após aquela conversa, fiquei quase cinco minutos só pensando nos meus passos. Meu Deus, meu marido acabara de dizer que me amava e eu estava prestes a cometer um erro que poderia magoá-lo, pior, destruir o nosso casamento. Por quê? Por que não conseguia resistir?? Será que era só luxúria? Acabei desistindo de responder às perguntas e fui em busca de respostas.

Cheguei, claro, bem antes do horário e a recepcionista me pediu para aguardar, pois ele estava com um cliente. Tentei ler uma revista, navegar na internet, ouvir música, assistir TV na sala da recepção, mas fora em vão. De nada adiantou seguir a minha ansiedade e sair mais cedo. Saber que o Gustavo estava tão próximo, piorava o meu desejo em vê-lo.

Antes de atacar as minhas unhas, decidi ir ao banheiro. Joguei, com cuidado para não estragar a maquiagem, um pouco de água na minha nuca e nas têmporas, refrescando meu corpo acalorado e me arrumei outra vez. Regressei à sala, buscando ocupar o tempo, de repente, minha atenção foi conquistada pela canção que vinha da televisão. O clip da banda Bon Jovi – Living in Sin, muito apropriado, diga-se de passagem, ditava as regras para aquele encontro. Aos olhos dos outros, eu viveria um pecado, enquanto os meus encontravam-se cegos. Perdida na complexidade do momento, voltei à realidade quando Gustavo parou na minha frente. Sua matiz negra exibia a satisfação da minha presença. Imediatamente, a minha ansiedade e expectativa se acalmaram. Fora perfeito, quase um bálsamo. A energia pulsante que nos envolvia, deu-me a certeza da minha escolha.

Ele estava lindo, dentro da sua simplicidade. Vestia jeans, camiseta e tênis igual ao que me lembrava e, mais uma vez, fui sugada pela sua intensidade. Como alguém poderia reagir daquela forma em tão pouco tempo? O que estava acontecendo comigo? Meu coração retumbava no peito por outras razões, mais perigosas. Tensão emanava dos nossos corpos, deixando o ar rarefeito. Suas mãos abrindo e fechando, demonstravam seu nervosismo. Sabe o que ansiei fazer naquele momento? Tocá-lo. Sentir a minha mão passando pelo seu rosto, tirar o vinco de dúvida ou preocupação formado em sua testa, mas me contive. E só percebemos o que acontecia, quando alguém ao nosso lado falou com ele:

— Valeu, Gustavo. Te ligo na próxima semana para agendar outra sessão. — Com relutância, ele conseguiu desviar o olhar para o seu cliente.

— Eu que agradeço, cara. — Deu um aperto de mão.

O cliente foi embora e ele se virou para mim.

— Obrigado. — A voz profunda beijava minha pele.

— Pelo quê?

— Por ter voltado. Eu realmente precisava te ver mais uma vez. — As palavras me faltaram. Em contrapartida, o sorriso preencheu o meu rosto, que, com certeza, exibia as bochechas coradas.

— Vamos? — Estendeu a mão em minha direção e eu... aceitei.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo