MIA
Tentei abrir os olhos, mas a luz forte me atingiu de imediato, me forçando a fechar as pálpebras novamente. Pisquei, tentando me ajustar à claridade. Cada piscada aumentava a dor na cabeça, mas eu precisava saber onde estava. Respirei fundo e, finalmente, consegui focar o olhar ao meu redor.
O lugar era pequeno e sufocante, com paredes de um bege antigo, descascadas em alguns pontos, revelando manchas de mofo e umidade. O cheiro era horrível, uma mistura de perfume barato e suor que me fez querer vomitar. As cortinas de veludo vermelho, gastas e sujas, pendiam das janelas minúsculas, bloqueando qualquer chance de luz natural. A única iluminação vinha de uma lâmpada no teto, piscando como se estivesse prestes a apagar a qualquer momento. Isso só deixava tudo mais sombrio e assustador.
Olhei ao redor e vi camas de metal espalhadas pela sala, os colchões eram finos e nojentos, como se nunca tivessem sido limpos. Roupas estavam jogadas por todo lado — lingeries e sapatos de salto alto, abandonados no chão como se as mulheres tivessem saído correndo. A única janela era pequena demais para tentar uma fuga, o que fez um calafrio percorrer minha espinha.
Eu estava em algum tipo de alojamento… mas não era um lugar qualquer. Era o tipo de lugar onde as pessoas, especialmente as mulheres, eram forçadas a ficar. Onde elas talvez nem tivessem o luxo de dormir em paz. De algum lugar distante, eu ouvia risadas de homens e música alta, provavelmente do andar de baixo, onde coisas ainda piores aconteciam.
Meu coração acelerou quando a porta de aço enferrujado rangeu, abrindo com um barulho estridente que ecoou pela sala. Meu corpo inteiro travou de medo. Me sentei no chão, abraçando minhas pernas, esperando o pior.
Mas, para minha surpresa, quem entrou foi uma mulher. Ela parecia exausta, quase como se a vida já tivesse lhe roubado qualquer traço de esperança. O coque desleixado em seu cabelo mal segurava os fios, e ela segurava uma peruca platinada em uma das mãos, como se fosse parte de uma armadura desgastada. Seus olhos, cercados por uma sombra azul mal aplicada, mostravam traços de um dia longo demais. O rímel e o delineador estavam borrados, como se lágrimas tivessem se misturado à maquiagem em algum momento. E os lábios, pintados de um vermelho intenso, pareciam fora de lugar no meio de tanto abandono.
Quando ela me viu encolhida ali, suas sobrancelhas escuras se arquearam.
— Não é de mim que você deve ter medo — disse ela, com a voz firme, mas sem qualquer ameaça.
Observei enquanto trocava as roupas minúsculas por um vestido curto de lantejoulas, sapatos de plataforma altíssimos e meias arrastão. A tristeza que se formou em seu sorriso me atingiu em cheio, um peso que eu também sentia no fundo do peito.
— Eu não tenho medo de você — respondi, a voz saindo trêmula. — Só que… Céus, esse lugar me dá medo.
Ela assentiu, como se entendesse perfeitamente.
— Me chamo Becky. E você?
— Mia — murmurei, sem muita força.
Becky franziu a testa e soltou uma risada curta, quase sem humor.
— Um bom nome, mas não para uma prostituta.
Encostei a cabeça na parede, tentando não desabar ali mesmo. O teto, sujo e cheio de teias de aranha, parecia tão sufocante quanto o peso da realidade que caía sobre mim. Eu queria chorar, mas as lágrimas já estavam presas há tanto tempo que não sabia se sairia algo além do desespero.
— Quer um conselho? — Becky falou, com a voz mais suave. — Quanto mais rápido você aceitar que está fodida, melhor.
Senti uma lágrima solitária escorrer pelo meu rosto.
— Sei… mas como posso aceitar isso? Me vestir assim? Fazer… essas coisas com homens?
Becky suspirou e veio se sentar ao meu lado, a proximidade dela me trouxe um estranho conforto.
— Do mesmo jeito que nós todas aceitamos — respondeu ela, mais gentil dessa vez. — Eu morava no Brasil. Vim para os Estados Unidos com a promessa de uma vida melhor, eles me garantiram isso. Mas, antes que eu percebesse, me tiraram o passaporte, minha liberdade, tudo. Acabei aqui. Tive que aceitar, ou… bom, você sabe.
Olhei para ela, tocada pela história. Dentro de mim, uma faísca de esperança ainda lutava para sobreviver, mas olhando ao redor, era óbvio que muitas das outras mulheres ali já haviam perdido isso há muito tempo. Elas foram arrancadas de suas vidas, seus países, suas famílias…
— Sinto muito — murmurei, envergonhada por minhas próprias lamentações.
Becky balançou a mão, despreocupada, como se dissesse: “Não se preocupe”.
— Olha, aqui escolhemos outro nome porque precisamos ser outra pessoa nesse lugar. Aqui sou a Becky, uma mulher que faria o que fosse preciso para sobreviver e ver os pais novamente — ela disse, a sinceridade em sua voz ecoando nas paredes mofadas.
Assenti devagar, absorvendo suas palavras.
— Outra persona, certo?
Becky sorriu, mas havia uma tristeza nos olhos dela.
— Qualquer uma. Vá em frente, seja quem você quiser ser e sobreviva a esse inferno — disse ela, apertando minha mão gentilmente.
Sequei as bochechas, sentindo a determinação começando a tomar forma dentro de mim. Eu iria fazer aquilo. Daria o meu melhor para ajudar meu pai. E quando finalmente conseguisse sair daquele lugar, acabaria com Vittorio.
— Por onde começo? — perguntei, a ansiedade borbulhando dentro de mim.
— Aqui, sua vida depende das suas escolhas e de como você se apresenta ao mundo. Aprenda a usar isso a seu favor — Becky gesticulou para o lado de fora da porta. — Mas primeiro, você precisa de uma nova identidade. Venha.
Ela se virou e caminhou em direção a um pequeno cômodo nos fundos do quarto. Relutantemente, levantei-me e a segui. O cômodo estava repleto de roupas e acessórios, como uma vitrine de desejos proibidos e sedução.
— Escolha. Isso vai te ajudar a sobreviver — disse ela, com a voz carregada de pesar por mim.
Olhei para as peças expostas. Cada vestido, cada acessório parecia prometer uma nova vida. Mas, ao mesmo tempo, uma parte de mim se revoltava. Não queria isso, não queria me tornar alguém que não era. Porém, no fundo, eu sabia que a realidade era cruel: eu não tinha escolha. Para salvar meu pai, para escapar desse pesadelo, eu precisava me adaptar, precisava lutar.
Com um suspiro profundo, avancei até o armário.
Era hora de me reinventar.
Enquanto as roupas se empilhavam em meus braços, uma determinação crescia dentro de mim. O medo poderia me paralisar, mas eu não deixaria isso acontecer. Eu encontraria uma maneira de retomar o controle. Antes que eu pudesse processar tudo, a porta se abriu com um estrondo, e um homem grandalhão entrou. Sua presença imponente fez meu coração disparar.
— O Diabo quer avaliá-la — ele disse, com um tom gelado que cortou o silêncio como uma faca.
Aquelas palavras ecoaram em minha mente, enquanto o medo se transformava em uma onda avassaladora.
MIAAssim que me vesti com a nova persona, segui Becky pelo corredor, onde luzes fluorescentes vermelhas lançavam sombras ameaçadoras nas paredes. O lugar parecia vivo, pulsando com sons que me faziam querer fugir. De trás das portas, o que eu ouvia me embrulhava o estômago. Risadas, gemidos, gritos de desespero. O caos abafado daqueles quartos era sufocante. Não podia me permitir imaginar o que se passava lá dentro. O corredor, de repente, parecia apertado demais, e uma sensação de claustrofobia tomou conta de mim, me afogando em pavor.— Mantenha a calma — murmurou Becky, apertando minha mão.— Sem conversinhas — o segurança latiu, friamente.O som dos nossos saltos no piso metálico da escada em espiral ecoava como um relógio que contava o tempo até algo inevitável. Quando descemos, o ambiente mudou, tornando-se ainda mais opressor. O segurança nos guiou até uma porta pesada, de onde eu já podia ouvir a música pulsante e risadas que soavam distantes, abafadas. Pela fresta da porta,
MIAMeu pai estava morto, e Vittorio era o assassino. Tive certeza disso assim que nossos olhares se cruzaram.Engoli o choro com força, apertando a bandeja até meus dedos doerem. Com passos firmes e decididos, caminhei pelo salão. A cada sorriso falso que eu forçava, a cada impulso de me encolher e chorar, um pensamento me mantinha em pé: meu plano de fuga.Eu não ficaria ali. Não com meu pai morto.— Venha — a voz de Becky me puxou de volta à realidade, sua mão segurando meu braço com urgência. — Vittorio quer ver como você se sai na dança.Sem pensar duas vezes, peguei as últimas cinco tequilas da bandeja e engoli de uma só vez, como se fosse água. O líquido queimou minha garganta, mas levou junto a vergonha e a timidez que costumava sentir. O álcool se misturava ao ódio que corria nas minhas veias, inflamando a coragem que antes eu não tinha.Eu seria a ruína de Vittorio, o Diabo.A música reverberava por toda a boate, uma batida pesada que parecia pulsar dentro de mim. A luz verm
MIAElijah sorriu, sua expressão se iluminou com a possibilidade de uma dança particular. Ele se inclinou para mais perto, e eu me deixei levar pela adrenalina da situação, alimentando meu plano de fuga.— Onde podemos fazer isso? — perguntei, olhando para Vittorio, desafiando-o silenciosamente. Era uma forma de cortar as amarras que ele tentava me impor, um ato de rebeldia que alimentava meu desejo de vingança.Vittorio hesitou, avaliando a cena diante dele. Sabia que, ao me deixar ir, ele estava permitindo que eu me aproximasse do perigo, que eu fizesse minhas próprias escolhas. Em um lugar como aquele, a liberdade tinha um preço, e eu estava disposta a pagá-lo, mesmo que isso significasse flertar com o abismo.— No andar de cima — ele finalmente disse, a voz baixa, mas firme. — Não se esqueça de quem você é, Mia.Aquelas palavras ecoaram em minha mente, mas, em vez de me intimidar, me motivaram. Eu não era mais a mesma garota que ele conheceu. Compreendi que, naquele mundo, você ou
VITTORIOA ousadia de Mia me incomodava mais do que eu estava disposto a admitir. A garota assustada que havia chegado desapareceu. Agora, ela parecia ter encontrado uma confiança nova, uma audácia que cresceu depois do mal-entendido sobre a morte de Charles.Eu planejava contar a verdade para Mia, mas apenas no momento certo. Sabia que havia algo muito maior e mais perigoso por trás de suas ações. A forma como ela aceitou dançar para Elijah me parecia uma provocação calculada, e a sensação de que estava sendo manipulado corroía meu orgulho. Nem o gosto ardente do uísque que descia pela minha garganta era capaz de acalmar o desconforto que tomava conta de mim.Para piorar, Don Mauricio resolveu aparecer na minha boate. Ele tinha um talento único para surgir nos momentos mais inoportunos, sempre com aquele olhar de quem tinha visto tudo. Estava lá para garantir que eu não tomasse mais nenhuma decisão importante sem sua bênção. Sentado no meu escritório, eu sentia o peso do julgamento n
MIADepois que o impacto de ter matado alguém se dissipou, o desespero de ser pega se instalou como uma sombra opressiva. Eu sabia que precisava sair daquele lugar o mais rápido possível. Se Vittorio descobrisse o que eu fiz, com certeza seria morta, assim como meu pai fora.A primeira coisa que fiz foi pegar o dinheiro de Elijah e juntá-lo com toda a grana que haviam colocado no cós da minha saia. Embolei todo o dinheiro e enfiei dentro do meu top. Para meu alívio, a porta estava trancada; eles demorariam um tempo até conseguirem entrar no quarto.Eu precisava encontrar uma maneira de fugir sem que soubessem para onde eu tinha ido. E eu iria usar a única câmera naquele quarto a meu favor.Caminhei a passos largos até a janela, que, infelizmente, estava fechada, mas tinha um vid
VITTORIOSeis meses se passaram desde a fuga de Mia, e tudo o que eu conseguia pensar era que meus inimigos agora tinham um motivo para rir de mim. E que Don Maurício estava furioso.Mia era só uma mulher comum, então como ela conseguiu fugir tão facilmente e se manter escondida por tanto tempo? Ou talvez Mia não fosse quem dizia ser?Desde que aquela diabinha fugiu, eu simplesmente não consegui sossegar. Sabia que só ficaria aliviado no momento em que a encontrasse, porque ninguém me humilhava daquele jeito. Ninguém me transformava em piada.Nos três primeiros meses, eu a procurei com a desculpa de que ninguém brinca com a Cosa Nostra. Mas agora, minha motivação era outra. Eu queria provar para aquela garotinha idiota que ela nunca seria mais
MIAAquele não era um bom dia, e eu soube disso assim que acordei para ir trabalhar. Um peso pressionava meu peito, um aviso silencioso de que a dor da ausência da minha mãe voltaria a me consumir. Se ela ainda estivesse viva, eu estaria comprando um bolo confeitado para celebrar mais um ano de vida. Mas o câncer a levou de mim, e com ele, todas as nossas celebrações.Eu não podia nem visitar seu túmulo.Por causa do fraco do meu pai. Pensar nele sempre fazia meu coração se contrair. A dor de não ter tido a chance de me despedir era uma ferida aberta. E a raiva... a raiva por Vittorio tê-lo arrancado de mim.Todos os dias, nos últimos seis meses, eu me perguntei se Vittorio me encontraria. E se encontrasse, se eu também seria morta.Eu nunca quis matar ninguém.As minhas noites eram atormentadas por pesadelos, e a imagem de Elijah morrendo por minhas mãos era um fantasma que me perseguia. Eu não era uma assassina, mas naquela noite foi necessário. Eu sabia o que me aguardava se não ag
VITTORIOA primeira coisa que vi assim que estacionamos o carro em frente à cafeteria foi Mia e os meses a haviam favorecido. Ela parecia mais bonita. Seu corpo, que antes era magrinho e esguio, agora exibia curvas sutis. Os cabelos negros e ondulados continuavam os mesmos, mas havia uma franja nova, que caía sobre sua testa, dando ao seu rosto um toque de suavidade que antes não existia.— Vamos? — Giuseppe perguntou ao meu lado, inquieto.Neguei com um aceno firme de cabeça.— Você fica — respondi com frieza. Ele abriu a boca, pronto para argumentar, mas eu levantei a mão, silenciando qualquer objeção. — Vou resolver isso sozinho. Fique atento. Não sabemos até onde vai a estupidez da Mia.Saí do carro sem olhar para trás, batendo a