~ Entre cafés, silêncios e algo que começa a florescer devagar demais para ser ignorado ~Era final de tarde quando saí com Yves enrolado no sling azul que Vanessa me ajudou a ajustar. A cidade estava fresca, com aquele ar de chuva que não veio, e o céu parecia um borrão pastel entre o cinza e o pêssego. Tinha colocado um casaco por cima da blusa leve e caminhava com passos calmos — mais para espairecer do que com algum destino definido.Mas, como sempre, acabei na confeitaria.Já não era mais apenas o cheiro do café ou a textura do pudim. Era o som da porta se abrindo. Era a cortina branca balançando discretamente. Era aquele espaço pequeno e seguro onde eu me reconhecia sem esforço.Yves dormia tranquilo, o rostinho encostado no meu peito, a respiração curtinha e quente. Liam sorriu quando me viu entrar.— Mesa de sempre?Assenti com um aceno pequeno e fui até o canto. O lugar parecia mais vazio que o habitual — ou talvez fosse só o mundo dentro de mim que estivesse espaçoso demais
Alec.Bonito demais para passar despercebido. Mas não era só isso. Ele tinha aquele tipo de beleza que incomoda — não pela arrogância, mas pela presença. O olhar profundo demais. O andar silencioso. A forma como parecia carregar um universo inteiro em silêncio, sem precisar justificar sua existência.Desde a primeira vez que o viu no estúdio, Marina sentiu que algo nela reagia de um jeito que não sabia nomear. Não era apenas desejo — embora fosse impossível negar a atração física. Era um incômodo mais sutil. Como se sua simples presença desarmasse suas defesas e a obrigasse a encarar tudo o que tentava esconder. Principalmente de si mesma.Havia algo no jeito como ele a observava... como se soubesse.Como se enxergasse não apenas Marina, mas Sara também.E por isso, naquela sexta-feira nublada, quando Leonardo lhe mandou uma mensagem casual — “Passa aqui mais tarde. Tem algo novo que quero te mostrar” —, Marina hesitou. Por segundos longos demais. Pensou em não ir. Em inventar uma des
A rua estava úmida pela garoa que insistia em cair desde o amanhecer. Eu quase não saí de casa. Quase. Yves teve uma crise de birra por não achar um dos desenhos preferidos dele e eu já estava com dor de cabeça antes das nove da manhã. Mas mesmo assim, mesmo com tudo me dizendo para ficar, vesti minha jaqueta jeans, amarrei o cabelo no alto da cabeça e saí. Sem maquiagem. Sem rumo definido. Só com vontade de silêncio — ou de qualquer coisa que se parecesse com isso.Meus pés seguiram sozinhos, como já faziam há semanas. Quando percebi, estava empurrando a porta da doceria.O som familiar do sino me trouxe uma sensação estranha de déjà-vu. Como se cada visita fosse uma repetição de outra versão de mim. A mesma mesa, perto da janela. O mesmo cheiro de café fresco misturado com baunilha e açúcar queimado. E claro, Liam, sempre atrás do balcão, com aquele sorriso de quem sabe de tudo e escolhe não dizer nada.— O de sempre? — ele perguntou, antes que eu dissesse qualquer coisa.— Sempre.
A primeira coisa que percebo é o cheiro. Um perfume forte, adocicado demais. Não é meu.Meus olhos se abrem devagar. A luz é baixa. Os lençóis, desconhecidos. E o teto... definitivamente não é o da minha casa.Meu corpo está dolorido, como se eu tivesse dançado a noite inteira ou brigado com o mundo. Talvez as duas coisas. Minhas pernas doem. Meus lábios ardem. Há uma nota de cinquenta dobrada no bolso da minha jaqueta. Não lembro de tê-la colocado ali.A sensação de vazio no peito é mais familiar do que eu gostaria de admitir.— Que dia é hoje? — murmuro, tentando encontrar respostas que nunca vêm.Levanto cambaleando, tentando montar o quebra-cabeça da noite anterior. Mas tudo que encontro são peças que não se encaixam: um salto quebrado no chão, um copo de uísque pela metade, uma gargalhada que ainda ecoa na minha cabeça, mas que não é minha.Foi ela de novo.A mulher que vive dentro de mim.A que desperta quando eu apago.Não sei o nome dela. Só sei que, quando ela assume, eu desa
O uniforme da lanchonete ainda gruda no meu corpo quando chego na faculdade. O cheiro de gordura impregnado na jaqueta me dá náuseas, mas não tenho tempo — nem dinheiro — para pensar nisso agora. Trabalho, estudo, sobrevivo. E repito. A sala está quase cheia quando entro. Sento no fundo, como sempre, torcendo para que ninguém repare nas olheiras profundas ou no leve tremor das minhas mãos. — Você está um caco — diz uma voz familiar ao meu lado. Milles. Com aquele sorriso de canto e os olhos castanhos atentos demais, ele se senta ao meu lado como se já estivesse ali há horas. Milles sempre sabe quando algo não está certo. — Bom dia pra você também — murmuro, tentando brincar. — Trabalhou até tarde de novo? — É. Mais do que devia. Ele me encara, mas não insiste. Milles tem esse dom. Não pressiona, mas está sempre ali, como se bastasse. — Você precisa de uma distração — diz, tirando da mochila uma garrafa de café e me oferecendo. — Que tal uma noite de jogos hoje? Sem aula aman
— Merda! — grito, pulando da cama com o despertador apitando há pelo menos meia hora.O uniforme ainda está pendurado na cadeira, amarrotado, e a toalha que eu deveria ter lavado ontem me encara do chão com cheiro de desespero. Não dá tempo. Pulo o banho, amarro o cabelo num coque torto, escovo os dentes com uma mão e enfio o pé no tênis com a outra.A lanchonete já está abrindo quando chego, e Dona Nair me recebe com aquele olhar de julgamento que só ela sabe dar.— Atrasada. De novo.— Não vai acontecer de novo — minto com a cara mais convincente possível.Começo o turno me sentindo ainda fora do lugar. Meus olhos estão pesados, como se tivessem assistido a um filme inteiro durante a noite. E talvez tenham.O sonho — ou o que quer que tenha sido — ainda pulsa na minha cabeça como um eco surdo. A risada, o vestido vermelho, o espelho... Não eram só imagens. Tinha cheiro. Tinha gosto.A sensação de que eu realmente vivi aquilo me dá calafrios.— Marina! Mesa 4! — grita a cozinheira.P
A escuridão vai se tornando cor.Primeiro, um vermelho profundo. Como veludo. Depois, um borrão de luzes tremeluzentes, como faróis vistos à distância em uma rua molhada.Estou em um lugar que não reconheço, mas que não me assusta. A música é baixa, envolvente. Um jazz antigo, talvez. Sinto o salto dos meus sapatos contra o chão de madeira — e estranho estar usando salto, já que nunca uso.Ao meu redor, risos abafados e vozes que parecem estar sempre ao fundo, nunca claras o suficiente para eu entender.Eu caminho. Meus passos são firmes, confiantes. Meus dedos tocam o corrimão de uma escada espiral. A luz é quente, amarelada, e tudo parece girar em câmera lenta.Então, me vejo passando por um espelho. Só que não paro. Não olho de verdade. Mas sei que era eu. De um jeito que não costumo ser. Cabelos soltos, lábios pintados de um tom escuro, vestido justo. Olhar decidido.E uma frase ecoa dentro de mim, mas não sei de onde vem:"Você não precisa ter medo de quem é de verdade."Acordo c
O silêncio pesa entre nós como uma tempestade prestes a cair.— O quê?— Ela apareceu hoje de manhã. A Celine. Bateu na minha porta com o bebê no colo, disse que era meu, entregou a certidão e... foi embora.— Ela o quê?! — Dou um passo mais perto, ainda sem saber se devia rir, gritar ou sentar.— Eu também não tô conseguindo acreditar — ele diz, olhando para o pequeno rolinho de cobertor no sofá, que até então eu não tinha notado. — Marina, esse é o Yves. Ele tem dois meses.Me aproximo devagar. O bebê dorme, bochechas rosadas, as mãozinhas fechadas como se segurassem o universo inteiro.— Ele é... lindo — murmuro, sentindo algo dentro de mim que não sei nomear.Milles sorri com um misto de orgulho e pavor.— Tentei montar o berço, mas... — ele aponta para a bagunça de parafusos e tábuas. — Eu não consigo nem entender o manual.Suspiro, tirando o casaco.— Então vamos lá, pai de primeira viagem. Me passa a chave Philips.Enquanto montamos o berço, ele me conta tudo. O sumiço repentin