O saguão parecia mais vazio do que o normal, apesar da luz oscilante refletida no piso frio. Jonas ainda ouvia o som abafado da rua atrás de si, mas era como se, ao cruzar o portão, tivesse entrado em outro lugar. Um lugar onde o tempo era mais lento, ou mais espesso.No fundo do saguão, atrás da mureta de vidro, o porteiro estava sentado.Jonas quase não o reconheceu.Seu nome era Valdir. Um senhor calvo, de voz grave e riso fácil, sempre com um copo de café na mão. Mas agora, sentado imóvel na cadeira giratória, Valdir parecia... paralisado. Os olhos abertos demais. A boca entreaberta como se quisesse falar algo, mas tivesse esquecido o quê.Jonas se aproximou devagar.— Seu Valdir...?O porteiro virou a cabeça num movimento seco, abrupto. O pescoço estalou alto demais. Ele demorou a focar os olhos, como se estivesse emergindo de um sono profundo.— Ah... Jonas. — A voz saiu arrastada, pastosa. — Foi... lá fora?— Fui pegar o remédio da minha mãe. A farmácia. Tá... diferente aqui. O
Um pouco antes, estava perdido sobre aquilo Ao pisar no terceiro andar, Jonas parou.O corredor diante dele estava silencioso, mas não era o silêncio de sempre. Não era o silêncio normal de um prédio no fim da tarde, quando moradores estão nos quartos e o som da cidade se filtra pelas janelas.Era outro tipo de silêncio. Um que parecia respirar.Ele se encostou levemente na parede, tentando puxar o ar devagar. A sacola pendia da mão como um peso morto. Olhou para ela de novo. O remédio ainda estava lá, envolto no papel da farmácia, com o nome da mãe escrito à caneta no canto da caixa. Letra apressada. Nome meio errado.Dona Estela. Minha mãe. Sempre tão certa das coisas. Sempre no controle.Lembrou-se do jeito como ela o olhava quando estava lúcida — com aquele olhar direto, que enxergava através das desculpas dele. E lembrou-se também de quando ela não estava bem, quando ficava sentada por horas, murmurando palavras sem sentido, segurando um terço invisível nas mãos.Ela dizia que a
O som da porta batendo ecoou pelo apartamento como um trovão abafado. Jonas ficou alguns segundos encostado nela, o peito subindo e descendo, a testa úmida de suor frio.O silêncio ali dentro era diferente do corredor. Não era pesado, nem cheio de intenções ocultas — mas também não era confortável. Era o tipo de silêncio que carrega ausência. O tipo de silêncio que só existe em lugares onde alguém que devia estar ali… não está.Ele se levantou devagar e deu alguns passos pelo piso frio da sala.Tudo estava no escuro.A luz da janela mal atravessava a neblina lá fora, então os contornos dos móveis eram apenas sombras grossas contra um fundo cinzento. A televisão desligada refletia seu vulto de forma distorcida. O sofá parecia mais velho, mais gasto do que lembrava — como se tivesse absorvido o peso dos dias ruins.Não acender a luz. Se eu acender a luz, as coisas se tornam reais. Melhor deixar assim. Melhor não ver direito o que pode ter mudado.Jonas passou pela mesa da sala, tirou os
Jonas se afastou da porta do quarto aos poucos, como se temesse que o simples ato de virar as costas fizesse ela se abrir de novo.A cabeça estava cheia de ruído. Os pensamentos atropelavam uns aos outros, tentando formar alguma explicação coerente — mas nada encaixava.Mãe não tá bem. Não é gripe. Não é esquecimento. Não é uma crise. Aquilo... aquilo não era ela. Não daquele jeito. Parecia… vazia. O corpo tava ali, mas ela não.Aos poucos, ele foi até a janela da sala. A neblina ainda estava lá fora, espessa e leitosa, como se tivesse apagado a rua do mundo. Mal dava para ver os postes. Nenhum carro passava. Nenhum som da cidade.Ele olhou para a entrada do corredor, hesitou, e então foi até a porta.Abriu uma fresta, só o suficiente para espiar.O corredor parecia mais escuro do que antes — como se a luz estivesse sendo sugada, centímetro por centímetro. Ele foi até o fim, perto do Hall do elevador. O visor digital do painel estava apagado. Nem número, nem luz. Nada.Mas então ouviu
O terraço não era o fim.Jonas seguiu por entre as sombras, cruzando as caixas d’água, sentindo o ar rarefeito, tentando não pensar em quantos lances de escada havia subido. Mais ao fundo, a silhueta da estrutura da casa de máquinas do elevador se destacava como um bloco escuro recortado contra a neblina noturna.A porta estava aberta.Ele parou.Por quê? Quem abriu? Isso nunca tá aberto...A dúvida piscou na mente, mas o corpo já ia à frente. Devagar, ele entrou. Os pés pisaram o chão coberto de fuligem e graxa seca. O espaço cheirava a óleo velho e ferrugem. Havia um zumbido grave, contínuo, como se a própria engrenagem do prédio estivesse respirando.E então… ele viu.Não diretamente.Apenas um movimento.Rápido, fluido, quase sem som.Ele se escondeu atrás de um dos pilares de concreto que sustentavam a sala. Segurava a respiração. Não sabia se era o medo ou o instinto que dizia pra não se mover.A criatura passou.Alta.Esguia.A pele… se é que era pele… era lisa, úmida, de um to
Os degraus pareciam multiplicar-se. Cada andar descido era uma batalha contra o cansaço, a angústia, e o peso de não saber o que esperava lá embaixo.No terceiro andar, algo chamou sua atenção.Uma porta.Entreaberta.A luz do apartamento piscava de leve, como se lutasse contra um curto-circuito. Havia um cheiro forte — um misto de fritura antiga, mofo e... algo mais. Algo metálico, quase como ferrugem.Jonas parou diante da entrada. O número da porta era torto — 302 — o três pendia como se estivesse tentando cair.Ele hesitou.E se tiver alguém ali? Alguém que sabe o que tá acontecendo. Alguém normal.Mas logo outro pensamento bateu: E se não for alguém?Mesmo assim, empurrou devagar a porta com a ponta dos dedos. O som das dobradiças arranhou o silêncio como unha em vidro.Lá dentro, o apartamento parecia intacto... à primeira vista.A TV estava ligada, mas sem imagem. Só chiado. Um sofá coberto por um lençol amarelado ocupava o centro da sala, e ao lado dele, uma mesinha de centro
Jonas desceu mais alguns degraus, mas logo percebeu algo: a escuridão era total.A cada passo, o breu parecia engoli-lo. Não havia mais nenhuma luz de emergência, nenhum reflexo vindo das janelas dos andares. Era como se o prédio tivesse sido engolido por um vazio absoluto.Ele parou.Tentou acionar a lanterna do celular, mas a bateria estava quase morta. Um lampejo breve, depois silêncio eletrônico.Preciso de luz. Qualquer luz.Olhou para cima. Ao longe, lá no hall do seu andar, uma fraca chama ainda resistia.A vela no altar.A única coisa visível em meio ao escuro total.A única opção.Mas a ideia de se aproximar daquilo de novo fazia sua pele arrepiar. Aquela estrutura... aquela presença no ar ao redor do altar... não era só incômodo. Era como se estivesse sendo observado, avaliado. Como se algo se alimentasse da atenção dele.Não. Melhor voltar ao apartamento. Ver se tem alguma vela na gaveta da cozinha. Pelo menos lá eu conheço os cantos.Com passos cuidadosos, Jonas subiu de v
Jonas permaneceu parado diante do altar, os olhos fixos nos nomes escritos à mão no caderno. A chama da vela tremulava como se reagisse à sua inquietação interior. Os nomes... não eram apenas aleatórios. Eles carregavam memórias.Camila S. Andrade.O nome reverberou dentro dele com uma nitidez dolorosa. Camila era brilho — aquele tipo de pessoa que parecia iluminar os ambientes por onde passava, mesmo quando falava de temas sombrios como Nietzsche ou psicanálise. Eles se conheciam da faculdade, dividiam seminários, longas conversas no pátio e tardes rabiscando ideias em cadernos rabugentos. Mas o melhor de tudo vinha depois das aulas.O bar.Um canto pequeno e meio sujo na esquina da rua Augusta. As paredes repletas de pichações, os bancos desconfortáveis, mas a cerveja era barata e a música alta o suficiente para abafar os ruídos dentro da cabeça dele.Era lá que Camila ria com vontade, jogando o cabelo para trás e zombando dos professores mais sisudos. Lá também estava Victor Almeid