Um pouco antes, estava perdido sobre aquilo
Ao pisar no terceiro andar, Jonas parou. O corredor diante dele estava silencioso, mas não era o silêncio de sempre. Não era o silêncio normal de um prédio no fim da tarde, quando moradores estão nos quartos e o som da cidade se filtra pelas janelas. Era outro tipo de silêncio. Um que parecia respirar. Ele se encostou levemente na parede, tentando puxar o ar devagar. A sacola pendia da mão como um peso morto. Olhou para ela de novo. O remédio ainda estava lá, envolto no papel da farmácia, com o nome da mãe escrito à caneta no canto da caixa. Letra apressada. Nome meio errado. Dona Estela. Minha mãe. Sempre tão certa das coisas. Sempre no controle. Lembrou-se do jeito como ela o olhava quando estava lúcida — com aquele olhar direto, que enxergava através das desculpas dele. E lembrou-se também de quando ela não estava bem, quando ficava sentada por horas, murmurando palavras sem sentido, segurando um terço invisível nas mãos. Ela dizia que algo vinha à noite. Sempre falava isso. “Tem coisa aqui que não é daqui, Jonas. Tem coisa que entra quando ninguém tá olhando.” Eu achava que era a doença falando. Mas e se... Ele fechou os olhos por um segundo, tentando reorganizar os pensamentos. A volta da farmácia também havia sido estranha. Ele conhecia aquele caminho desde criança. Três quadras. Um cruzamento. A banca de jornal com o rádio sempre ligado. Mas hoje… parecia mais longo. Como se os prédios tivessem se esticado. Como se as pessoas estivessem se movendo em outra frequência. E aquela neblina… De onde veio aquilo? Nunca teve neblina aqui. Nem em dia frio. Nem à noite. Hoje tava sol. Hoje... não deveria estar assim. Jonas abriu os olhos e deu mais alguns passos. O corredor parecia o mesmo de sempre, mas cada detalhe parecia fora de lugar. A pintura nas paredes estava mais descascada do que ele lembrava. Um número de apartamento estava meio torto. E lá no fim… Aquela luz tremeluzente. Uma vela. E perto dela… algo maior. Algo com formato. Algo que não deveria estar ali. Não é possível. Isso não tava aqui antes. Isso nunca esteve aqui. O coração começou a acelerar de novo, como se respondesse antes da mente. Mas por que parece que eu tô voltando pra algum lugar… e não indo? Ele respirou fundo. Os dedos trêmulos ao redor da sacola. O corredor se estreitava na escuridão à frente. E o altar esperava. Jonas deu mais alguns passos, vacilantes, como se o chão pudesse ceder a qualquer momento. A vela no chão tremia levemente, sua chama oscilando como se respirasse. E à luz dela, o altar se revelava aos poucos — uma silhueta escura, sólida, como uma cicatriz aberta no corredor. Era alto, improvisado com madeira escura, veludo gasto e pedaços de coisas que ele não conseguia identificar à distância. Sobre ele, objetos estavam dispostos com uma precisão quase obsessiva: castiçais tortos, velas pretas, fotos antigas parcialmente queimadas, um crucifixo quebrado, e algo que parecia ser um pedaço de espelho — manchado de sangue seco ou tinta escura demais para ser distinguida. No centro, uma espécie de caderno aberto. As páginas tremiam como se alguém tivesse acabado de soltá-lo. Mas não havia ninguém ali. Nenhuma alma viva. Ou melhor — nenhuma que ele pudesse ver. Jonas travou. O peito apertou de um jeito que doía. A sacola de plástico escorregou da mão e caiu no chão com um estalo seco, mas ele nem se deu conta. Isso não é pra mim. Isso não devia estar aqui. Isso não tava aqui quando eu saí. Um arrepio gelado correu pela espinha. O altar parecia... pulsar. Não com luz, mas com intenção. Como se soubesse que ele estava ali. Como se tivesse sido colocado para ele. Por um segundo, seus pés não obedeceram. Ele ficou parado, olhando aquilo — e jurou que a vela tremulou mais forte. Que as sombras se curvaram em sua direção. Que alguma coisa, dentro do altar, o encarava de volta. — Não — murmurou, a voz baixa, engasgada. Então virou-se e correu. As solas do tênis arranharam o chão do corredor. O coração martelava nas costelas. O prédio parecia mais escuro de repente, mais fundo. Como se ele estivesse correndo por dentro de um pesadelo familiar. A chave já estava na mão antes que percebesse. A porta do apartamento 308 se aproximou como um porto seguro — ou uma cela prestes a se fechar. Ele girou a chave com mãos trêmulas, abriu a porta e entrou, batendo-a atrás de si com força. Silêncio. Nada seguiu ele. Ou pelo menos era o que ele queria acreditar. Jonas deslizou até o chão, respirando fundo, tentando se convencer de que tudo ainda fazia sentido. Mas a imagem do altar continuava queimando por trás dos olhos.O som da porta batendo ecoou pelo apartamento como um trovão abafado. Jonas ficou alguns segundos encostado nela, o peito subindo e descendo, a testa úmida de suor frio.O silêncio ali dentro era diferente do corredor. Não era pesado, nem cheio de intenções ocultas — mas também não era confortável. Era o tipo de silêncio que carrega ausência. O tipo de silêncio que só existe em lugares onde alguém que devia estar ali… não está.Ele se levantou devagar e deu alguns passos pelo piso frio da sala.Tudo estava no escuro.A luz da janela mal atravessava a neblina lá fora, então os contornos dos móveis eram apenas sombras grossas contra um fundo cinzento. A televisão desligada refletia seu vulto de forma distorcida. O sofá parecia mais velho, mais gasto do que lembrava — como se tivesse absorvido o peso dos dias ruins.Não acender a luz. Se eu acender a luz, as coisas se tornam reais. Melhor deixar assim. Melhor não ver direito o que pode ter mudado.Jonas passou pela mesa da sala, tirou os
Jonas se afastou da porta do quarto aos poucos, como se temesse que o simples ato de virar as costas fizesse ela se abrir de novo.A cabeça estava cheia de ruído. Os pensamentos atropelavam uns aos outros, tentando formar alguma explicação coerente — mas nada encaixava.Mãe não tá bem. Não é gripe. Não é esquecimento. Não é uma crise. Aquilo... aquilo não era ela. Não daquele jeito. Parecia… vazia. O corpo tava ali, mas ela não.Aos poucos, ele foi até a janela da sala. A neblina ainda estava lá fora, espessa e leitosa, como se tivesse apagado a rua do mundo. Mal dava para ver os postes. Nenhum carro passava. Nenhum som da cidade.Ele olhou para a entrada do corredor, hesitou, e então foi até a porta.Abriu uma fresta, só o suficiente para espiar.O corredor parecia mais escuro do que antes — como se a luz estivesse sendo sugada, centímetro por centímetro. Ele foi até o fim, perto do Hall do elevador. O visor digital do painel estava apagado. Nem número, nem luz. Nada.Mas então ouviu
O terraço não era o fim.Jonas seguiu por entre as sombras, cruzando as caixas d’água, sentindo o ar rarefeito, tentando não pensar em quantos lances de escada havia subido. Mais ao fundo, a silhueta da estrutura da casa de máquinas do elevador se destacava como um bloco escuro recortado contra a neblina noturna.A porta estava aberta.Ele parou.Por quê? Quem abriu? Isso nunca tá aberto...A dúvida piscou na mente, mas o corpo já ia à frente. Devagar, ele entrou. Os pés pisaram o chão coberto de fuligem e graxa seca. O espaço cheirava a óleo velho e ferrugem. Havia um zumbido grave, contínuo, como se a própria engrenagem do prédio estivesse respirando.E então… ele viu.Não diretamente.Apenas um movimento.Rápido, fluido, quase sem som.Ele se escondeu atrás de um dos pilares de concreto que sustentavam a sala. Segurava a respiração. Não sabia se era o medo ou o instinto que dizia pra não se mover.A criatura passou.Alta.Esguia.A pele… se é que era pele… era lisa, úmida, de um to
Os degraus pareciam multiplicar-se. Cada andar descido era uma batalha contra o cansaço, a angústia, e o peso de não saber o que esperava lá embaixo.No terceiro andar, algo chamou sua atenção.Uma porta.Entreaberta.A luz do apartamento piscava de leve, como se lutasse contra um curto-circuito. Havia um cheiro forte — um misto de fritura antiga, mofo e... algo mais. Algo metálico, quase como ferrugem.Jonas parou diante da entrada. O número da porta era torto — 302 — o três pendia como se estivesse tentando cair.Ele hesitou.E se tiver alguém ali? Alguém que sabe o que tá acontecendo. Alguém normal.Mas logo outro pensamento bateu: E se não for alguém?Mesmo assim, empurrou devagar a porta com a ponta dos dedos. O som das dobradiças arranhou o silêncio como unha em vidro.Lá dentro, o apartamento parecia intacto... à primeira vista.A TV estava ligada, mas sem imagem. Só chiado. Um sofá coberto por um lençol amarelado ocupava o centro da sala, e ao lado dele, uma mesinha de centro
Jonas desceu mais alguns degraus, mas logo percebeu algo: a escuridão era total.A cada passo, o breu parecia engoli-lo. Não havia mais nenhuma luz de emergência, nenhum reflexo vindo das janelas dos andares. Era como se o prédio tivesse sido engolido por um vazio absoluto.Ele parou.Tentou acionar a lanterna do celular, mas a bateria estava quase morta. Um lampejo breve, depois silêncio eletrônico.Preciso de luz. Qualquer luz.Olhou para cima. Ao longe, lá no hall do seu andar, uma fraca chama ainda resistia.A vela no altar.A única coisa visível em meio ao escuro total.A única opção.Mas a ideia de se aproximar daquilo de novo fazia sua pele arrepiar. Aquela estrutura... aquela presença no ar ao redor do altar... não era só incômodo. Era como se estivesse sendo observado, avaliado. Como se algo se alimentasse da atenção dele.Não. Melhor voltar ao apartamento. Ver se tem alguma vela na gaveta da cozinha. Pelo menos lá eu conheço os cantos.Com passos cuidadosos, Jonas subiu de v
Jonas permaneceu parado diante do altar, os olhos fixos nos nomes escritos à mão no caderno. A chama da vela tremulava como se reagisse à sua inquietação interior. Os nomes... não eram apenas aleatórios. Eles carregavam memórias.Camila S. Andrade.O nome reverberou dentro dele com uma nitidez dolorosa. Camila era brilho — aquele tipo de pessoa que parecia iluminar os ambientes por onde passava, mesmo quando falava de temas sombrios como Nietzsche ou psicanálise. Eles se conheciam da faculdade, dividiam seminários, longas conversas no pátio e tardes rabiscando ideias em cadernos rabugentos. Mas o melhor de tudo vinha depois das aulas.O bar.Um canto pequeno e meio sujo na esquina da rua Augusta. As paredes repletas de pichações, os bancos desconfortáveis, mas a cerveja era barata e a música alta o suficiente para abafar os ruídos dentro da cabeça dele.Era lá que Camila ria com vontade, jogando o cabelo para trás e zombando dos professores mais sisudos. Lá também estava Victor Almeid
Flashback: Faculdade de Filosofia, quatro anos atrás.Era o terceiro semestre. Jonas estava sentado no fundo da sala, os olhos fixos na borda do caderno. Tinha anotado quase nada da aula de Epistemologia até agora. Sua mente saltava entre os fragmentos da fala do professor e os ecos de risos baixos que vinham das fileiras da frente.Camila, sentada à sua esquerda, tentava manter o foco. Victor, mais adiante, fazia anotações com precisão obsessiva.E então, como sempre, ele apareceu.Hugo Martins.Aluno do último ano, fazia matérias optativas com os calouros só para “lembrar os fundamentos” — ou pelo menos era o que dizia. Alto, sempre vestido com camisetas de bandas que ninguém mais ouvia, Hugo tinha o tipo de carisma venenoso que se espalhava como mofo: primeiro parecia engraçado, depois, insuportável.Ele adorava dominar a conversa. Adorava mais ainda apontar o estranho da sala.— E aí, Jonas — disse Hugo, alto o suficiente para todos ouvirem, virando-se de costas para o professor.
Algumas semanas depois do último episódio com Hugo, algo mais caiu sobre Jonas.A mãe, dona Lurdes, começou a esquecer coisas simples. Primeiro eram os nomes de remédios, depois as panelas no fogo, e por fim, os próprios dias da semana. No começo, Jonas achou que era só cansaço. Ela sempre fora forte, mesmo após a viuvez, e lidava com tudo sozinha enquanto ele tentava manter os estudos na faculdade.Mas quando ela caiu na cozinha, desacordada por segundos que pareceram horas, Jonas soube que algo estava muito errado.Veio o diagnóstico: demência inicial. Talvez Alzheimer, talvez algo mais agressivo. Os médicos não souberam afirmar com certeza. Só disseram que ela precisava de cuidados constantes.E então, Jonas tomou uma decisão que, embora dolorosa, parecia inevitável: abandonou a faculdade.Ele não falou nada para Camila nem Victor. Não teve coragem. Enviou apenas uma mensagem breve, dizendo que “precisava dar um tempo”. Depois disso, desligou o celular por semanas.Preencheu o form