Jonas se afastou da porta do quarto aos poucos, como se temesse que o simples ato de virar as costas fizesse ela se abrir de novo.A cabeça estava cheia de ruído. Os pensamentos atropelavam uns aos outros, tentando formar alguma explicação coerente — mas nada encaixava.Mãe não tá bem. Não é gripe. Não é esquecimento. Não é uma crise. Aquilo... aquilo não era ela. Não daquele jeito. Parecia… vazia. O corpo tava ali, mas ela não.Aos poucos, ele foi até a janela da sala. A neblina ainda estava lá fora, espessa e leitosa, como se tivesse apagado a rua do mundo. Mal dava para ver os postes. Nenhum carro passava. Nenhum som da cidade.Ele olhou para a entrada do corredor, hesitou, e então foi até a porta.Abriu uma fresta, só o suficiente para espiar.O corredor parecia mais escuro do que antes — como se a luz estivesse sendo sugada, centímetro por centímetro. Ele foi até o fim, perto do Hall do elevador. O visor digital do painel estava apagado. Nem número, nem luz. Nada.Mas então ouviu
O terraço não era o fim.Jonas seguiu por entre as sombras, cruzando as caixas d’água, sentindo o ar rarefeito, tentando não pensar em quantos lances de escada havia subido. Mais ao fundo, a silhueta da estrutura da casa de máquinas do elevador se destacava como um bloco escuro recortado contra a neblina noturna.A porta estava aberta.Ele parou.Por quê? Quem abriu? Isso nunca tá aberto...A dúvida piscou na mente, mas o corpo já ia à frente. Devagar, ele entrou. Os pés pisaram o chão coberto de fuligem e graxa seca. O espaço cheirava a óleo velho e ferrugem. Havia um zumbido grave, contínuo, como se a própria engrenagem do prédio estivesse respirando.E então… ele viu.Não diretamente.Apenas um movimento.Rápido, fluido, quase sem som.Ele se escondeu atrás de um dos pilares de concreto que sustentavam a sala. Segurava a respiração. Não sabia se era o medo ou o instinto que dizia pra não se mover.A criatura passou.Alta.Esguia.A pele… se é que era pele… era lisa, úmida, de um to
Os degraus pareciam multiplicar-se. Cada andar descido era uma batalha contra o cansaço, a angústia, e o peso de não saber o que esperava lá embaixo.No terceiro andar, algo chamou sua atenção.Uma porta.Entreaberta.A luz do apartamento piscava de leve, como se lutasse contra um curto-circuito. Havia um cheiro forte — um misto de fritura antiga, mofo e... algo mais. Algo metálico, quase como ferrugem.Jonas parou diante da entrada. O número da porta era torto — 302 — o três pendia como se estivesse tentando cair.Ele hesitou.E se tiver alguém ali? Alguém que sabe o que tá acontecendo. Alguém normal.Mas logo outro pensamento bateu: E se não for alguém?Mesmo assim, empurrou devagar a porta com a ponta dos dedos. O som das dobradiças arranhou o silêncio como unha em vidro.Lá dentro, o apartamento parecia intacto... à primeira vista.A TV estava ligada, mas sem imagem. Só chiado. Um sofá coberto por um lençol amarelado ocupava o centro da sala, e ao lado dele, uma mesinha de centro
Jonas desceu mais alguns degraus, mas logo percebeu algo: a escuridão era total.A cada passo, o breu parecia engoli-lo. Não havia mais nenhuma luz de emergência, nenhum reflexo vindo das janelas dos andares. Era como se o prédio tivesse sido engolido por um vazio absoluto.Ele parou.Tentou acionar a lanterna do celular, mas a bateria estava quase morta. Um lampejo breve, depois silêncio eletrônico.Preciso de luz. Qualquer luz.Olhou para cima. Ao longe, lá no hall do seu andar, uma fraca chama ainda resistia.A vela no altar.A única coisa visível em meio ao escuro total.A única opção.Mas a ideia de se aproximar daquilo de novo fazia sua pele arrepiar. Aquela estrutura... aquela presença no ar ao redor do altar... não era só incômodo. Era como se estivesse sendo observado, avaliado. Como se algo se alimentasse da atenção dele.Não. Melhor voltar ao apartamento. Ver se tem alguma vela na gaveta da cozinha. Pelo menos lá eu conheço os cantos.Com passos cuidadosos, Jonas subiu de v
Jonas permaneceu parado diante do altar, os olhos fixos nos nomes escritos à mão no caderno. A chama da vela tremulava como se reagisse à sua inquietação interior. Os nomes... não eram apenas aleatórios. Eles carregavam memórias.Camila S. Andrade.O nome reverberou dentro dele com uma nitidez dolorosa. Camila era brilho — aquele tipo de pessoa que parecia iluminar os ambientes por onde passava, mesmo quando falava de temas sombrios como Nietzsche ou psicanálise. Eles se conheciam da faculdade, dividiam seminários, longas conversas no pátio e tardes rabiscando ideias em cadernos rabugentos. Mas o melhor de tudo vinha depois das aulas.O bar.Um canto pequeno e meio sujo na esquina da rua Augusta. As paredes repletas de pichações, os bancos desconfortáveis, mas a cerveja era barata e a música alta o suficiente para abafar os ruídos dentro da cabeça dele.Era lá que Camila ria com vontade, jogando o cabelo para trás e zombando dos professores mais sisudos. Lá também estava Victor Almeid
Flashback: Faculdade de Filosofia, quatro anos atrás.Era o terceiro semestre. Jonas estava sentado no fundo da sala, os olhos fixos na borda do caderno. Tinha anotado quase nada da aula de Epistemologia até agora. Sua mente saltava entre os fragmentos da fala do professor e os ecos de risos baixos que vinham das fileiras da frente.Camila, sentada à sua esquerda, tentava manter o foco. Victor, mais adiante, fazia anotações com precisão obsessiva.E então, como sempre, ele apareceu.Hugo Martins.Aluno do último ano, fazia matérias optativas com os calouros só para “lembrar os fundamentos” — ou pelo menos era o que dizia. Alto, sempre vestido com camisetas de bandas que ninguém mais ouvia, Hugo tinha o tipo de carisma venenoso que se espalhava como mofo: primeiro parecia engraçado, depois, insuportável.Ele adorava dominar a conversa. Adorava mais ainda apontar o estranho da sala.— E aí, Jonas — disse Hugo, alto o suficiente para todos ouvirem, virando-se de costas para o professor.
Algumas semanas depois do último episódio com Hugo, algo mais caiu sobre Jonas.A mãe, dona Lurdes, começou a esquecer coisas simples. Primeiro eram os nomes de remédios, depois as panelas no fogo, e por fim, os próprios dias da semana. No começo, Jonas achou que era só cansaço. Ela sempre fora forte, mesmo após a viuvez, e lidava com tudo sozinha enquanto ele tentava manter os estudos na faculdade.Mas quando ela caiu na cozinha, desacordada por segundos que pareceram horas, Jonas soube que algo estava muito errado.Veio o diagnóstico: demência inicial. Talvez Alzheimer, talvez algo mais agressivo. Os médicos não souberam afirmar com certeza. Só disseram que ela precisava de cuidados constantes.E então, Jonas tomou uma decisão que, embora dolorosa, parecia inevitável: abandonou a faculdade.Ele não falou nada para Camila nem Victor. Não teve coragem. Enviou apenas uma mensagem breve, dizendo que “precisava dar um tempo”. Depois disso, desligou o celular por semanas.Preencheu o form
Ao reorganizar os papéis, Jonas encontrou uma pasta amarelada, esquecida no fundo de uma gaveta do armário da sala. Estava sob algumas anotações antigas, recortes de receita médica e um panfleto dobrado da farmácia onde ele comprava os remédios da mãe. A pasta estava cheia de documentos de quando ele deu entrada no LOAS — laudos, RGs escaneados, declarações da assistente social. Mas, preso com um clipe enferrujado no fundo da pasta, havia um pedaço de papel envelhecido, dobrado quatro vezes, como se estivesse ali escondido de propósito. Ele estranhou. Aquilo não era papel de laudo médico. Era de uma folha de caderno antiga, com uma caligrafia que ele não reconheceu de imediato. Desdobrou com cuidado. No topo da folha, havia apenas três palavras, escritas em letra firme, quase tremida: “Filho, me perdoe.” O coração de Jonas disparou. A letra era do pai. Ele reconheceu aos poucos — aquela caligrafia que ele havia visto apenas uma ou duas vezes, em assinaturas antigas em formulár