P A R T E I _ M O N T E D E C I N Z A S
“Você me acendeu, monte de cinzas que sou,
E me transformou, em fogo.”
_Charles Dickens. Um Conto de duas Cidades.
F A G U L H A
“Aqui, rasteje miserável, sob um conforto
em um redemoinho: toda vida e morte se extingue, e todo dia morre com o sono.”
—Gerald Manley Hopkins. “No Worse, There is None”.Miriad. Mansão dos Espelhos.
Dezessete anos atrás
Eram muitas imagens para representar todas as faces de uma única pessoa.
“Espelhos. São tantos espelhos!”.
Qual era o problema com reflexos? O que eles deveriam refletir quando apelados? Como confiar nas imagens que seus olhos recriavam a sua frente? Como confiar em si mesmo, diante de tudo que deveria ser considerado?
Espere. Ele ainda considerava algo?
Sim. Tinha alguma coisa. Porém as razões fugiam de sua compreensão cada vez que tentava agarrar e se ater as lembranças, que fugiam como pequenos fios dançantes toda vez que sua mente ousava se aproximar de mais. Perigoso. Inconfiável. Fácil de ser descartado. Os sentimentos se confundiam entre si.
“Tente! Tente mais um pouco! Apenas... mais uma vez.”.
Mas então, a próxima vez, era quase tão ruim e agonizante quanto a anterior. Tentar lembrar doía. Como se a verdade corroesse seus ossos e zombasse das lágrimas quentes que afloravam das suas órbitas em chamas, distantes, sombrias e inalcançáveis.
Piorando. Estava piorando cada vez mais. Era o único fato sobre o qual as certezas ousavam se revelar.
Havia o fogo. Ele estava consumindo cada espaço apertado de seu coração. Estava correndo veloz pelas veias. Estava carbonizando todas as suas células e incendiando todas as lembranças. Já não existia mais nada dele ali dentro. Ou existia? Céus, como poderia fazer para se encontrar? Reflexos não eram suficientes. Não contra isso. Alguém deveria alertá-los.
Espere, alertar quem?
“Maluco! Estou ficando maluco!”.
O tic-tac do relógio em algum lugar desconhecido do ambiente ribombava em um ritmo fúnebre e inalcançável aos seus ouvidos, lhe alertando sobre o término de seu tempo a cada segundo a menos, lhe prendendo em um inferno particular enquanto a fagulha, lá dentro, se encarregava de incendiar o restante. A Fagulha era esperta. Ela nunca errava uma. Tic. Tac. Fogo. Tic. Tac. Fogo. Tic. Fogo. Tac.
“Seu tempo está acabando. Você vai queimar. Você vai ter o seu inferno, seu cafajeste! Você plantou, hora de colher. Tic. Tac.”.
Como um lunático, sentado no chão molhado de suor e lágrimas, ele se agarrava as pernas, balançando para frente e para trás numa sinfonia doente e maníaca, mordendo os lábios com tanta força, que fazia o sangue quente e amarelado brilhante escorrer pelo queixo.
Ele já não sangrava mais vermelho.
Era só uma questão de tempo agora.
O tempo. Aquela pequena constante que determinava todo um futuro.
Sabia qual era o seu. Sabia para onde estava indo. E sabia que muito em breve, teria companhia.
Quando a pequena informação escapou, concedida por piedade Celeste de suas memórias perdidas, permitiu que um amargo sorriso aflorasse entre os lábios sangrentos.
”Ah, sim. Companhia.”.
Tic. Tac. O tempo havia se esgotado.
“Até o Inferno...”.
Miriad, Academia Elementar. Dias atuais. NÃO O SINTO EM MINHA MENTE.Era de propósito. Eu não queria que ninguém soubesse que eu havia corrido para a Academia Elementar assim que tive uma oportu
-WOW! MINHA COLUNA NUNCA MAIS VAI SER A MESMA... — Arbo reclamou em forma de uma bufada quando pulou por cima dos muros de pedra que circundavam a Academia.O crepúsculo já estava ameaçando encobrir o horizonte numa paleta indistinta de cores alaranjadas e vermelhas quando descemos as escadarias da Academia Elementar, cruzando o extenso Campo de Treinamento vazio, e voltando a subir o próximo lance de escadas cavados na terra escura que nos conduziria novamente a trilha.— Ás vezes, eu penso em tipo, oito mil maneiras diferentes de chutar o traseiro do seu namorado. — ela considerou.Mesmo me empenhando em trabalhar as pernas, detectei a palavra imediatamente, quão logo ela deixou os lábios de Arbo.Namorado.Ao mesmo tempo em que minhas sobrancelhas se franziram em estranheza ao som da palavra,
O VESTIDO ERA BONITO.Brilhava como se tivesse sido feito com pedaços do Sol. Eu me sentia como a estrela mais brilhante da constelação.— Por que dourado? — perguntei a Arbo, parada diante do espelho de corpo inteiro enquanto ela escovava meus cabelos sem graça para trás das orelhas, prendendo alguns grampos na parte superior do lado direito de minha cabeça, obrigando os cachos á caírem pelo ombro esquerdo e deixando meu rosto completamente limpo.— É a cor das festividades. É falta de educação usar roupas escuras em Cerimônias. — ela explicou — O escuro representa a morte, é o que usamos para matar. Mas hoje, vamos apenas celebrar. Dourado é cor do brilho e do furor das estrelas. E elas brilham quando estão felizes, é o que dizem.O vestido
LAYAN MUDOU DE POSIÇÃO PELO QUE LHE PARECIA ser a milésima vez no dia. Ou na noite, não havia como saber. O fato, é que já havia se acostumado à dor penetrante que se esvaia de cada célula sua, enervante, completando um ciclo de eterno tormento quando somada á todos os pensamentos que se sobrepujavam em sua mente durante seu grande tempo livre.Eles acoitavam sua mente quando Jade resolvia lhe dar um dia de folga. Como aquele.Estranhava esses dias, se perguntando o que a Falange demente poderia estar fazendo.De alguma forma, era como se ele se sentisse mais seguro quando Jade lhe fazia suas visitas constantes, se empenhando em fazê-lo descobrir novos limites de dor ao aplicar-lhe uma seção diária de tortura criativa. Pelo menos, nesses momentos, a atenção e criativida
OS RAIOS SOLARES PENETRARAM ATRAVÉS DE MINHAS pálpebras, pontuando a claridade para dentro de meus olhos.Os seixos oblíquos jaziam um calor sólido sobre meus braços descobertos, abraçados sobre um travesseiro da mesma forma que eu costumava abraçar um urso de pelúcia quando pequena. Piscando, me deparei com a cena reluzente pintada de laranja amarelado enquanto me espreguiçava na longa cama de mogno.Eu estava sozinha em casa.Era estranho e bizarro. Mas eu sabia.Depois que alguns de meus sentidos de Falange foram despertos, me deparei com esse sensor estranho que entregava a presença distinta de seres da mesma raça próximos a mim. Cada um tinha uma presença estranha de fazer sentir, as sensações jaziam como palavras através das mudanças de
JADE STELLAR ESTAVA EM MIRIAD.Yohanna Winchester estava em Miriad.E eu não sabia dizer qual dos dois era pior.Quem iria subitamente aparecer agora? A moça da propaganda de detergente do canal 9? O prefeito da Disneylândia? Um terrorista famoso? Não que Hanna Winchester não fosse meio terrorista quando ela queria. Ou quando não queria. Ou em todos os momentos em que respirasse.Depois de concluir que eu realmente ainda não havia tido nenhuma espécie de morte cerebral, meu primeiro impulso foi fechar a porta com força e torcer mentalmente que eu estivesse tendo alucinações. Até a possibilidade de estar ficando maluca era completamente mais aceitável do que a veracidade da imagem de Hanna Winchester parada em minha varanda. E de Herman servindo como seu guia.— Eveli
ESTAVA EM CIMA DA MESINHA DE CENTRO.A Biografia de Evangeline finalmente estava ali, em cima da mesinha de centro a minha frente, o objeto de meu desejo me observando inanimado de cima do vidro transparente da mesinha, exatamente abaixo de meu nariz, e tudo que eu conseguia fazer era olhar para ela com todo o corpo paralisado. Eu sentia como se estivesse tentando respirar em baixo da água, a tortura de imaginar o que eu poderia encontrar entre aquelas páginas era tão palpável que em me sentia escorregando por um enorme desfiladeiro, sem ter nada ao meu redor em que me firmar.Quando eu abrisse aquela biografia, as coisas iriam desandar, para mal ou para bem, e não havia muito que eu achasse que pudesse fazer sobre isso. Crescer tem essa coisa estranha de encarar o problema de frente, sejam quais forem as consequências. E eu descobrira tarde demais q
SENTADA SERENAMENTE NAQUELE ESTOFADO, tia Peg se parecia apenas com uma pessoa normal e amargurada enquanto encarava o chão, e não a anciã misteriosa que sabia muito mais do que o pouco que sempre ousava revelar. Sua postura me corroía, me sangrava, exatamente por ter plena consciência de que não havia muito que eu pudesse fazer para inverter a situação. Ver minha tia ruindo um pouco mais a cada dia era terrível, e exigir respostas parecia ser ainda pior, mas parecia não haver nada que fizesse mais sentido naquele momento.― A Grande Roda parece estar brincando com nosso mundo, nos aprisionando numa maré de repetições tortuosas que se repetem de erro após erro... e eu... eu não sei como parar isso! Eu não sei! ― ela enfiou o rosto entre as mãos, e meu senso primitivo de sanidade considerou as pr