-WOW! MINHA COLUNA NUNCA MAIS VAI SER A MESMA... — Arbo reclamou em forma de uma bufada quando pulou por cima dos muros de pedra que circundavam a Academia.

O crepúsculo já estava ameaçando encobrir o horizonte numa paleta indistinta de cores alaranjadas e vermelhas quando descemos as escadarias da Academia Elementar, cruzando o extenso Campo de Treinamento vazio, e voltando a subir o próximo lance de escadas cavados na terra escura que nos conduziria novamente a trilha.

— Ás vezes, eu penso em tipo, oito mil maneiras diferentes de chutar o traseiro do seu namorado. — ela considerou.

Mesmo me empenhando em trabalhar as pernas, detectei a palavra imediatamente, quão logo ela deixou os lábios de Arbo.

Namorado.

Ao mesmo tempo em que minhas sobrancelhas se franziram em estranheza ao som da palavra, meus lábios se esticaram num sorriso torto e abobalhado de prazer. A palavra explicitava grande parte das inúmeras sensações que se desprenderam de algum lugar de meu peito.

— Nós... não estamos namorando. Eu acho.

Arbo estreitou os olhos azuis em minha direção ao levantar uma sobrancelha vermelha.

— Ah, não?

Me limitei a dar de ombros, arfando quando cheguemos ao topo das escadas.

— Bom, eu não sei se me lembro de um momento em que ele tenha me pedido em namoro...

Ela considerou, depois de rolar os olhos.

— Oh, claro. Isso deve ser porque “quase” ter morrido por você não foi suficiente, certo?

Foi minha vez de rolar os olhos para ela.

— Isso... não é a mesma coisa. Quero dizer... nada foi “oficializado” ainda. As pessoas não namoram até que uma deles peça. — tentei explicar, mas eu já não tinha certeza de nada. Falar sobre namoro não ocupava o topo da lista sobre assuntos que eu dominava. Se é que havia uma lista.

— ...humanos... — Arbo bufou.

— Não sou humana. Tenho um triskle do tamanho de uma bola de basquete tatuado no peito, para o caso de você não ter visto ainda.

— E eu tenho olhos do tamanho de duas luas, para o caso de você não ter visto ainda. — ela espichou a língua em minha direção — Corta essa, Eve. Vocês dois pegam fogo quando estão juntos. Se é de uma “discussão da relação” que vocês precisam, tenha uma com ele. Vocês precisam de um rótulo que os identifique se vou encontrá-los agarrados em todos os cantos e paredes daqui para frente. Aliás, também vou me certificar de nunca invadir seu quarto sem ser chamada...

Soquei seu braço com força, mas o máximo que ela fez, foi se desvencilhar teatralmente e rir.

— Você é sempre tão idiota ou esse é apenas seu modo usual de dizer coisas que não convém?

— Não estou sendo idiota. Apenas razoavelmente insana.

Arbo tinha um jeito esquisito de me fazer bem. Mas eu não sentia como se não gostasse. Era como se Arbo fosse uma metade oposta de Ivi. Uma metade que acabava me completando e enraizando ainda mais meus pés em meio a toda a verdade que existia sobre mim. Sobre ser uma Falange e sobre pertencer a tudo que ela também pertencia.

— Como você sabia onde eu estava?

Arbo ainda sorria enquanto cruzávamos o famoso Vale da Brigada Ligeira. O vale cercado de estátuas de pedra e granito que antecedia os limites da área da Catedral Elementar.

— Muito simples. Procure pelos lugares mais afastados, íntimos e desprovidos de vida e encontrará Eve e Eron...

— ARBOLENCE!

— Foi Ilínea! — ela grunhiu voltando a rolar os olhos — Ela é uma vidente, Eve. E será coroada como um dos Potenciais do Novo Punho. É claro que ela iria conseguir descobrir seu paradeiro. Sua presença na Cerimônia é um pouco mais do que “essencial”.

Por um momento, fitei Arbo á baixo dos raios amarelados que vertiam feito seixos transparentes e cada vez mais apagados das nuvens obscurecidas, criando um aspecto mágico e ofuscante. Miriad costumava ser assim o tempo todo. Mágica e ofuscante.

— Espere... Ilínea fará parte do Novo Punho? Céus, quanto disso eu perdi?

— Se você estivesse menos preocupada em descobrir quantos movimentos diferentes a língua do Sr. Tocha Humana consegue fazer e se focasse mais em...

Dessa vez, chutei Arbo na canela, e o ataque inesperado a fez quase cair, se encolhendo de dor ao mesmo tempo.

— Ai! Sua cria de ornitorrinco cruzado com abelha!!!

— De nada. Me avise quando precisar de mais.

Ela fechou a cara numa carranca quando prossegui.

— Talvez fosse gostar de saber que sua tia Pégasus também foi convidada á ser coroada como um dos Potenciais.

Minhas pernas travaram, e rendida, me voltei á Arbo, quem mancava massageando a canela.

— Como é que é?

— Exatamente isso que você ouviu.

Mas a informação se negava a entrar e ser digerida.

— Espere. Não! Ela é... Peg. Apenas Peg. Minha tia Peg não pode ser um dos Potenciais do Novo Punho! Isso seria... não sei.

— E ela não vai ser. — Arbo entoou enquanto retomava o caminho de volta. — Ela negou o convite. E mesmo que não tivesse negado, existem políticas que impedem que uma Mestiça aceda á um dos Cinco Tronos. Legalmente, nosso Punho deveria ser constituído por Puro Sangues, mas como eles estão praticamente extintos...

O alívio desceu por minha garganta, me fazendo voltar a caminhar.

— Isso soa como algo que eu iria querer ouvir. Pensar em tia Peg como um tipo de autoridade dentro de Miriad é um pouco... estranho. Aliás... fazemos parte de uma das famílias, mas ofuscadas e envergonhadas de Miriad. Imagino que ela não se sentiria bem com isso.

Arbo deu de ombros.

— Vocês duas são duas peças completamente isentas de culpa da vergonha que sua linhagem causou. Você e Pégasus podem construir uma nova fama sobre o sobrenome Hatthwey, Eve. Na verdade, é responsabilidade de vocês fazerem isso. Limpar o sobrenome Hatthwey não vai ser tão fácil, mas vai valer a pena. Eu garanto.

Me calei diante de sua afirmação, no momento exato em que atravessemos a vale e adentremos em Bauryn.

Porque era estranho caminhar pelo condado de pedra agora, depois de tudo que acontecera desde O Julgamento, onde fui a responsável pela morte de Zórem, e onde todos descobriram que eu era filha de Hera. Miriad estava cheia de Falanges agora, por consequência da Cerimônia, e mesmo as que haviam vindo de longe sabiam quem eu era. Os olhares que eu recebia enquanto caminhava ao lado de Arbo deixava isso estritamente claro. Afinal, eu era o suposto interesse romântico de um cataclista, Falanges que tinham a fama de sempre recuar da facção da Luz. As Falanges do Fogo tinham a igual tendência de serem Invocadas pelas Trevas, e eu nunca fui capaz de negar toda a negritude que assolava o passado de Eron Stellar. Fora que ver um triskle marcado no peito de alguém não era algo que se visse todos os dias, e eu podia saber que meu nome estava anexado á palavras como “traição”, “Predecessora”, e “assassina” em meio ás pessoas. Eu tinha plena consciência de que nem todas estavam contentes com a morte do Zórem, porque ainda estavam muito apegadas á Política e ao termo que permitia apenas Puro Sangues no comando das coisas.

Eu também podia imaginar que poderiam haver desacordos com a coroação de Ilínea como um dos Potencias, já que Ilínea nascera nas Trevas.

Respirei fundo ao pensar em todas as dissensões que poderiam haver em meio á um número tão grande de Falanges reunidas.

O olhar que Arbo me enviou evidenciava que ela pensava na mesma coisa.

— Eu sei. Essa noite tem tudo para ser de matar. — ela piscou, e voltei a rolar os olhos pela milésima vez no dia com sua tendência de aplicar sentidos ambíguos, “antríguos” e polígonos á tudo que falava.

Eu e tia Peg ainda estávamos temporariamente instaladas na casa de Ilínea Pinnbolrg, de modo que foi para lá que eu e Arbo nos direcionamos. Arbo morava com sua família em uma Ilha chamada Walpole. De acordo com as descrições de Arbo, era em Walpole que moravam as famílias Inominadas. Ou seja, as que tiveram membros Invocados pelas Trevas. E em Ybrien, uma cidade privilegiada que ficava além das fronteiras da Catedral Elementar, era o lar das “famílias de ouro”, ou seja, as que nunca tiveram seus membros Invocados pelas Trevas. Era onde estava a família de Dublemore. Até onde eu havia entendido, depois da destruição da cidade de Pheeton, Bauryn se tornara o lar de todas as Falanges que não tinham poderes elementais. As que não eram ou não possuíam descentes Guerreiros. O que queria dizer que quando Edra, a filha de Ilínea completasse dezessete anos e fosse Invocada como uma Falange Guerreira, a família Pinnbolrg se mudaria para Ybrien.

Miriad, no momento, se encontrava em transição, num pequeno caos que destoava todas as leis, porque ainda não havia uma autoridade predominante. Mas as coisas mudariam depois da coroação.

E eu preferia estar no Rio de Janeiro quando isso acontecesse. Só não sabia como iria conseguir convencer tia Peg a me deixar fazer isso.

Ilínea nos esperava nas escadarias da mansão de pedra polida, como se soubesse do exato momento em que chegaríamos. O aguçamento de seu poder se devia a recente restauração da Ordem, graças a Invocação da Esfera. A mesma coisa que desejava ser uma só coisa comigo.

— Eve! — Ilínea sorriu — Eu só não queria que se atrasasse... me desculpe se fui a culpada por interromper algo...

Meu rosto corou, e Arbo ofegou um riso grasnado a meu lado.

Eu ainda não tinha muita intimidade com Ilínea, mas gostava dela. Seu jeito pequeno e independente de ser rendia uma sensação suave de conforto. Devia ser ótimo ser sua filha. Seus olhos terrosos beiravam a cor chocolate, se confundindo com a pele e cabelos da mesma cor. Seu típico suéter marrom também estava presente, como as calças jeans simples e familiares.

— Não interrompeu nada, Ilínea... — eu sorri em sua direção, ignorando Arbo enquanto subia as escadas, e algo no olhar malicioso de Ilínea me dizia que ela sabia que eu estava mentindo — Onde está tia Peg?

— Sua tia passou a tarde toda nas Alamedas, perto das ruínas de Pheeton.

Cruzei as sobrancelhas. Eu nunca sabia o que tia Peg, uma Falena, fazia em suas horas vagas, mas a resposta realmente me surpreendeu.

— E o que, exatamente, minha tia maluca está fazenda lá?

— Restaurando a Mansão Hatthwey. Ela quer que vocês se mudem ainda amanhã.

Chocada, me resignei a abrir a boca em espanto.

Talvez eu não conseguisse sair de Miriad tão cedo quanto imaginava.

Manson estava empoleirado num dos estofados da sala, com a perna ferida erguida em cima de um puf cor de vinho e os olhos absortos em um livro aberto em seu colo. Seus olhos castanhos se voltaram atentos em minha direção quando entremos.

— Boa noite, Eve. É uma pena que tenha sumido esta tarde. Edra procurou por você a tarde toda...

Sorri mansamente em sua direção. Sempre que via Manson, eu me pegava pensando se meu pai, Tobias Wasterson, teria sido como ele. Mesmo sabendo que Tobias era um filho da mãe sem escrúpulos, sempre pensei que iria gostar de ter um pai como Manson. Sua coxa ferida por um tentáculo assassino no Julgamento já estava curada, porém, ele ainda não havia recuperado todos os movimentos da perna e do joelho, o que o incapacitava de andar muito pela mansão.

— Eu só estava dando uma volta... — menti, e quase senti um instinto paternal aflorando dele enquanto balançava a cabeça num gesto brando.

— Certo. Talvez fosse melhor se você fosse se arrumar. Mais algumas horas e vocês iram se atrasar...

Ele parecia muito calmo a cerca de sua esposa estar prestes á se tornar um dos Potenciais no Novo Punho.

— Estou indo... — concordei, arrastando Arbo comigo para as escadas.

Ela não discordou, e quando nos distanciemos o suficiente, a cutuquei entre as costelas.

— Como eu devo me vestir para esta Cerimônia!?

A excitação antecipada correu livre pelos olhos azuis de Arbo.

— Não se preocupe. Tenho tudo programado. Você vai ficar linda!

Rolei os olhos.

— Da última vez que você disse isso, acabei enfiada em um modelo “pornografado” da chapeuzinho vermelho...

  Jade bebeu um gole de outra garrafa de vinho, voltando a enrugar a testa com o gosto amargo do mesmo. O conteúdo azedo de todas as garrafas lhe pareciam iguais. Sem gosto. Isentas de qualquer coisa que despertasse seu interesse por mais que alguns segundos. Ele se virou, arremessando a garrafa cheia de encontro a parede atrás de si, e seus cacos se juntaram aos muitos outros amontoados no chão, o líquido escorrendo por entre eles e lustrando o chão como sangue fervido.

Quanto mais os segundos se passavam, mais as coisas lhe pareciam amargas.

Ele arqueou novamente o corpo sobre a janela da enorme mansão de vidro, espreitando por entre os salgueiros lá fora, seus olhos perspicazes à procura do último mensageiro que enviara ao mundo terreno. Tamborilando os dedos no metal gelado, sentia sua paciência se esgotando conforme o tempo que havia estipulado também se esgotava.

Quanto mais o tempo passava, mais ele ansiava por ela.

Seus dedos coçavam, seu corpo formigava, e sua mente lhe traía com alucinações da figura feminina instigando-lhe e cravando os dedos em sua pele, sussurrando seu nome e lhe prometendo coisas que ninguém jamais prometera antes.

Não havia nada que lhe distraísse o suficiente a ponto de não pensar. De não cogitar. De não planejar. De não desejar.

Seus olhos azuis como cristais transparentes vaguearam de encontro à porta entreaberta do quarto, de onde havia recém saído, onde os corpos entrelaçados das duas Falanges ainda descansavam depois de trabalharem a seus serviços a maior parte do dia. Uma loira, muito bonita, e outra morena, quase tão bonita quanto a primeira. Bem podiam ser confundidas como deusas em outras cidades que conhecia.

Mas nenhuma delas era ela.

E aquilo estava se tornando sufocante.

Quanto tempo mais você vai demorar, doce anjinho? Vai pagar por cada minuto que me fez esperar... cada minuto...

Quando achou que sua impaciência ultrapassaria qualquer limite de loucura, ouviu os passos ruidosos se aproximando pelas escadas, e logo em seguida, o mensageiro chegou. Sua audição perspicaz detectando o ruído irritante da respiração ofegante, que supunha que o mensageiro havia feito uma descoberta muito importante para correr daquela maneira.

— Jade! — ele não demorou a ouvir, porém, não manifestou nenhuma reação. Estava irritado demais para isso. — Você nunca vai adivinhar!! Nunca poderia sequer “pensar” o que foi que eu descobri! Vim correndo pra cá quão logo pude e...

— E o que, no inferno, te fez correr tanto!? Diga de uma vez! Ou tenho cara de Falange Vidente?

Não houve nenhuma pausa depois do acesso súbito de aspereza.

— Ela está viva!

Por um momento, os enormes ombros tencionados de Jade enrijeceram, ressaltando as marcas escuras que faziam dele tudo que ele era. Seus olhos cresceram mais nas órbitas, e seus dedos se apertaram contra o metal corrediço que sustentava as bases da janela. Ele mal podia acreditar. Eram poucas as vezes em que já se sentira apreensivo, e esse momento, era exclusividade no seu acervo de coisas que nunca fazia.

— Você descobriu onde ela está?

— Eu não pude. Ela sumiu antes que eu pudesse segui-la ou descobrir qualquer coisa sobre sua localização... — a Falange expeliu de forma rápida, adentrando salão á dentro, e parando ao lado da grande mesa forrada de comida e bebida.

Jade se virou, enviando um olhar fulminante ao homem esguio de porte atlético á sua frente.

— Pois volte até lá e não regresse enquanto não descobrir!

Na mesma hora, em meio ao desespero do que toda a situação significava, as pontas esticadas de um plano foram tomando conta de sua mente, fazendo com sua apreensão crescesse ainda mais ao vislumbrar o sucesso que poderia ter entre outras cogitações que cercaram seu subconsciente.

— Mas... por que aparecer só agora? O que você acha que ela quer?

Jade soltou um suspiro agressivo antes de caminhar novamente para o quarto, fechando a porta atrás de si ao mesmo tempo em que soltava o murmúrio.

— O mesmo que eu.