VISTA DO CÉU

A cidade antiga e pequena exalava perfume de rosas por toda a parte. Provavelmente deveria ser pela maioria da população idosa do local. Gabriel andava pelas ruas procurando o endereço que não seria muito difícil de encontrar, as ruas eram extremamente apertadas e curtas. A cada rua que ele passava, conseguia ver um casal de idosos caminhando sorridentes pelas praças que eram comuns por ali.

Algumas barracas de venda sobre a calçada, mais idosos jogando xadrez em uma outra praça pouco movimentada. O bad boy em cima da moto, venerada por ele, ainda não acreditava que viveria um inferno ali. Ele acabara de perder sua vida, sua faculdade, seus jogos de futebol, suas festas e o que ele mais temia perder: suas mulheres.

— Vamos ter que aprender a gostar de velhas. — Gabriel resmungou para sua moto. Ele era incapaz de amar alguém que não fosse sua motocicleta ou ele mesmo.

Frio e cheio de si, estacionou-a em frente a velha casa de madeira que dava arrepios só de olhar. Talvez ela não vê uma reforma há bastante tempo. Ele pegou o bilhete amassado, dentro de sua jaqueta preta de couro, e confirmou o número do local. Era ali mesmo. Assim que estacionou, percebeu que estava tudo tão quieto e as janelas fechadas. Gabriel deu três passos em direção a pequena escada velha a sua frente, ele parou por um instante e voltou para a moto.

— O Pr. Carter está no seu escritório, fica lá em cima. — um velho com um chapéu enorme sentado na sombra de uma árvore gritou para o rapaz desconhecido. — Pode subir.

Gabriel concordou, agradecendo-o com um aceno e voltou a caminhar para a entrada da casa. O seu interior era completamente o que ele esperava, velha e sinistra. Aquilo era feio aos seus olhos, nenhum porta-retrato, nenhum enfeite, nada. Ele era sozinho, com certeza. Um velho rabugento e fedorento, Gabriel pensou. O garoto estava decidido que não receberia ordens de um idoso solitário e muito menos frequentaria sua igreja aos domingos, para ouvir sermões sobre que quem não seguia os mandamentos da bíblia arderia no fogo do inferno. Ele não estava a fim disso. Após esbarrar-se no sofá velho, mas incrivelmente limpo da sala de estar, um barulho vindo do segundo andar o fez subir os degraus barulhentos. A cada passo, um rangido mais forte. Uma voz incrivelmente doce e macia fez o jovem parar de caminhar em direção a porta fechada que estava escrito com letras pretas "Escritório Pr. Carter" e virar no sentido da melodia. A porta de onde vinha a música acolhedora, com notas de seda, estava entreaberta, e o garoto não hesitou para olhar entre ela. Cabelos excepcionalmente lisos, que batiam até a cintura desenhada, escorriam através da água, que fazia o percurso no corpo esculpido da garota em sua frente. Ela estava de costas debaixo do chuveiro e cantava ainda mais alto. Sua voz era tão doce e linda, que Gabriel não conseguia parar de olhá-la. Seus cabelos castanhos deslizavam sobre sua bunda pequena e delicada enquanto ela se ensaboava. O garoto engoliu seco, obcecado pelo que via. Ele queria aquilo.

— Safado! O velho é casado com uma gostosinha dessa, não acredito. — Gabriel cochichou para ele mesmo.

A porta em suas costas se destrancou e o rapaz pulou assustado, interrompendo sua vista dos céus. Ele saiu apressado antes que alguém o visse ali.

— Tem alguém aí? — a voz doce saiu do banheiro.

Gabriel caminhou rapidamente até onde indicava ser o escritório, e antes que pudesse bater e se anunciar, a porta abriu saindo dali um imenso homem que aparentava ter pouco mais que cinquenta anos. Sua pele um pouco destruída pelo sol e pela idade, seus cabelos grisalhos e ralos, um suéter cinza e muito feio, o fazia aparentar ser um senhor reservado e rigoroso.

— Você é o famoso Gabriel Herculano? — a voz grossa e intimidante do homem a sua frente o fez olhá-lo.

— Bom, famoso eu não sei, mas gostoso sim, sou eu. — Gabriel deu um meio sorriso malicioso e ergueu uma de suas sobrancelhas enquanto estendia sua mão direita.

Pr. Carter não se deu o trabalho de levantar sua mão e cumprimentar o garoto, ele apenas pigarreou e virou as costas adentrando em sua sala.

— Temos regras aqui, não sei se você vai se adequar a elas. — o Pastor caminhou até se sentar na poltrona cinza atrás de uma mesa. Gabriel se aproximou sentando na cadeira da frente. — Eu não sei o que você fez de tão grave para o seu tio te m****r para cá, mas eu sei que você não vale o chão que pisa. Já estou ciente disso, você não presta. Eu só te aceitei aqui por um motivo, eu devo um favor a seu tio. — a voz fria do homem a sua frente não o incomodava, Gabriel dava risadas por dentro. O garoto cruzou as pernas relaxado e arqueou as sobrancelhas.

— Interessante, continue. — ele passou uma das pernas por cima da mesa e deixou sua bota encostar na madeira antiga. Encarando o homem a sua frente sem nenhum medo ou submissão, ele balançou suas mãos para que o mesmo continuasse.

— Eu não estou nem aí pra quem você é ou deixa de ser, só te digo uma coisa. Me cause algum problema e eu arranco as suas bolas para longe daqui. Você terá trabalho pesado todos os dias na obra social em minha fazenda e aos domingos, vai me ajudar na igreja.

Uma gargalhada alta e debochada saiu de Gabriel. Ele abaixou sua perna, se acomodando na cadeira.

— Igreja? Eu não piso em igrejas, não faz meu tipo. Pode me m****r limpar cocô de vaca, mas na igreja eu não piso.

O Pastor se endireitou rapidamente na poltrona e o seu semblante mudou.

— Meu jovem, você tem muito o que aprender. Pegue suas coisas, eu vou te levar para a fazenda. — o velho homem se levantou e caminhou em direção a porta.

— Fazenda? Eu não vou dormir aqui na sua casa velha? — Gabriel se levantou espantado enquanto caminhava ao lado do Pastor.

— Nem na nova e nem na velha, você vai dormir no celeiro. — Pr. Carter trancou a porta da sala e se direcionou à escada.

— Pensei que o senhor era pastor, não comediante. — Gabriel riu alto.

Ele percebeu que a porta do banheiro agora estava fechada, continuou descendo as escadas olhando ao redor tentando encontrar a garota. Assim que saíram da casa sem mais nenhum deslumbre da dona da voz mais sedosa que Gabriel já tinha escutado, o Pastor apontou para a moto parada e nem sequer mudou seu olhar para o garoto.

— Você veio nisso? De qualquer forma, você não vai usá-la por aqui. Me siga com ela — o Pastor entrou em sua caminhonete vermelha antiga e começou a dirigir.

Gabriel sentiu uma dor imensa invadir sua perna enquanto tentava subir na motocicleta. Ele respirou fundo enquanto via o pastor já um pouco distante. O caminho não muito longo de estrada de chão, estava quase impossível de andar por causa da lama. Havia chovido na noite anterior e o barro estava invadindo as rodas de sua moto. A fazenda, não muito grande a sua frente, parecia tranquila. Algumas vacas pastavam no campo a frente do lugar e uma lagoa do outro lado apresentava alguns patos se refrescando nela. O local parecia acolhedor, mas Gabriel não estava nada satisfeito em entrar ali. Flashes da noite passada invadiam sua cabeça agora, ele sentia algo que nunca havia sentido: remorso. Ele estava sentindo uma dor que talvez ele nunca imaginava que sentiria, o garoto afastou as lembranças da cabeça enquanto estacionava sua moto. Ele sentou sobre ela esperando o homem descer da caminhonete e pegou seu celular, sem área.

— Se quiser telefonar para alguém, tem um telefone na cozinha. Não vai precisar disso aqui. Tem meu número e o da igreja ao lado do aparelho, alguns outros que talvez você precise também. — o velho homem caminhava ao redor da fazenda mostrando cada lugar pro garoto, explicando cada detalhe.

Assim que chegaram no celeiro, Gabriel jogou sua mochila sobre a pequena cama no pequeno quarto nos fundos. O cheiro de estrume era terrível naquela região, ele tampou seu nariz enquanto olhava para o pastor.

— Com o tempo você se acostuma. — ele deu as costas para o garoto e estava prestes a sair dali, mas antes que ele saísse disse algo. — José, Stone e Judi foram a cidade fazer compras. Eles só voltam à tarde e você já tem tarefas hoje. Deixei um papel aqui com seus afazeres. Está tudo detalhado, espero que não me cause problemas. Estarei no meu escritório.

E foi assim que Gabriel ficou sozinho no celeiro abafado e com o cheiro terrível em suas narinas. Ele se sentou, suspirando forte e passando as mãos na cabeça. Mais uma lembrança da mulher no carro o ocorreu. Ele se levantou rapidamente e caminhou em direção a cozinha da casa. Foi até o telefone e discou o número do tio. Ele não queria falar com o homem que o odiava desde criança, na verdade todos o odiavam, mas ele precisava tirar um peso desconhecido de seu peito.

"Tio Robert? Sou eu, Gabriel."

"Já conseguiu algum problema aí? Não posso acreditar, Gabriel! Não irei te pegar"
 — a voz deixava o ódio transparecer pelo telefone.

"Não, ainda não estou no clima de fazer algo. Eu só liguei pra saber sobre o acidente. Tem alguma notícia?" — Gabriel disse um pouco receoso, ele não sabia o que fazer.

Uma gargalhada vinda do homem do outro lado da linha podia ser ouvida na outra sala da casa.

"Você está preocupado? O que você tem? Este lugar já está te fazendo bem, seu bastardo"

"Eu só quero saber o que deu, será que você pode me falar? O garotinho está bem? Eles têm família?"

"Eu não sei o porquê está tão interessado, você só liga pra sua bunda e sua moto idiota. Não, eles não têm. Se quer saber, eles acabaram de se mudar da Flórida. O pai era militar e faleceu há poucos meses. Satisfeito?"

"E o garoto?"
 — Gabriel disse.

"Quebrou alguns ossos, cortou a cabeça e vai ficar internado por alguns dias. Se não tivesse chamado a ambulância rápido, ele tinha morrido. Mas agora ele não está morto."

Um suspiro de alívio correu pelo corpo do garoto. Gabriel sabia que isso não iria aliviá-lo, mas saber que não machucaria outras pessoas o fez um pouco mais leve. Isso era novo pra ele, um sentimento que ele nunca havia sentido. Tristeza. Ele estava ciente que tinha machucado duas pessoas, três naquela noite. Aquilo estava o consumindo de uma forma nunca vista como antes, nem mesmo quando ele tinha 11 anos.

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