Insensatez

Carolina

Certos dias deveria ter a noção de que sair de casa não é uma opção, entretanto, para uma órfã isso é impossível, principalmente quando depende de dois empregos para conseguir se manter sem precisar recorrer a venda de drogas ou prostituição, algo do qual vi muitas colegas durante o ensino médio buscarem. Hoje, mais uma vez precisei aguentar os desaforos da madame Mikhail, todos sabem com o que seu marido trabalha e mesmo que minha vontade fosse puxar seus fios um a um jamais faria algo assim.

Entretanto quando o primeiro disparo soou, fui incapaz de manter o olhar no chão, no meio da testa do soldado havia uma marca de bala fazendo o sangue escorrer para a ponte do nariz, seu corpo grande e pesado caindo no chão com um baque pesado. Soltei o ar com força pensando em sobreviver a mais um dia de trabalho para poder ir a universidade pela noite, nenhuma das minhas dividas estudantis vai se pagar por milagre.

Juntei forças e orei, acredito que orei pela primeira vez nos últimos dez anos, uma oração curta pedindo a Deus para que permitisse sobreviver a mais um dia, para que esse momento se tornasse apenas mais um pesadelo na cota das noites mal dormidas. Foi quando a voz esganiçada da cliente que me maltratava com requintes de crueldade ao jogar o café quente nas minhas roupas atraiu toda a minha atenção. O ardor do liquido quente foi esquecido pelo olhar desesperado no rosto pálido dela, sua boca pintada de vermelho falava algo que para mim era inaudível e mais uma vez tive a certeza de que Deus não viria ao meu auxilio, por desejar não precisar aguentar suas humilhações.

Aparentemente tenho uma certa afinidade com o demônio, já que no momento seguinte observei a bala atravessar o espaço entre seus olhos, fazendo o grito de Nuno repercutir finalmente trazendo a minha audição de volta para o presente. Quando sai do torpor encontrei os olhos mais verdes que já vi na vida, brilhantes como duas esferas, o rosto angelical esculpido pela barba bem cortada e os fios desgrenhados dando um charme ainda maior as suas feições.

Um único momento de insensatez e jamais poderia imaginar ser condenada um dia, na realidade nem ao menos percebi estar respondendo até agora ao estar dentro de um carro com o desconhecido que atirou em duas pessoas a menos de uma hora atrás. Observo as minhas mãos contra os joelhos e sinto o coração subindo para a boca em batidas descompassadas, as ruas se passam rápido demais, perco o controle da minha respiração, sinto como se estivesse caindo ou quebrando em pedaços outra vez.

Aquela velha sensação, o mesmo tormento, a face avermelhada volta a minha mente enquanto os olhos azuis cheios de malicia analisam cada parte do meu corpo, uso os braços para abraçar-me tentando proteger de algo que não sei, não entendo, mas logo iria entender. Os pontos pretos começam a aparecer finalmente fazendo com que a imagem daquele verme desapareça da minha memória, escuto uma voz do lado de fora mas estou perdida demais dentro de mim mesma.

É quando estou prestes a quebrar que sinto o calor envolvendo meu corpo de uma maneira completamente estranha e ao mesmo tempo acolhedora, quero gritar e implorar para que solte-me mas apenas me sinto mais acolhida, o toque nos fios do meu cabelo acalmam as batidas frenéticas do meu peito. Enquanto pisco freneticamente voltando a enxergar a divisória que separa os bancos da frente.

— Apenas respire.

— Obrigada. — Consigo responder.

— Não me agradeça garota costumo causar ataques de pânico por menos do que você viu.

Suspiro pesadamente e acabo inspirando o perfume caro e amadeirado, misturado a nicotina e talvez álcool.

— Infelizmente a minha crise não foi por sua culpa. — Admito baixinho.

O que parece despertar o homem para a posição em que nos encontramos: Abraçados. Rapidamente ele volta para o seu lugar enquanto ergo o queixo encontrando seu olhar desconfiado, por isso espero a pergunta.

— E qual outro motivo seria?

Abafo uma risadinha para a previsibilidade, desde cedo aprendi a ser pragmática e apesar de buscar sempre enxergar o melhor nas pessoas algumas coisas acabaram moldando-me de uma maneira forte demais. Por isso decidi ser médica, dedicar a minha vida a ajudar os outros fazendo o meu melhor sempre sem esperar por nada em troca.

— Responda garota! — Sua voz autoritária tirou-me dos devaneios.

— Desculpe Senhor, mas não quero responder. — Estremeci enrolando os dedos contra o tecido da calça cinza gasta.

O rosto angelical se contorceu revelando os dentes alinhados, fechei os olhos imaginando que poderia ganhar algum tapa como as clientes mais ricas do salão costumam fazes quando estão irritadas e precisam de alguém para descontar. Só que o tapa não veio o ar pesado e a respiração quente contra os meus lábios atraíram toda a minha atenção, abri os olhos mirando as íris verdes tão próximas a fúria se expressando apenas pelo movimento do nariz ao soltar o ar.

— Quem te batia ali? — Questionou e o hálito mentolado atingiu um ponto desconhecido dentro de mim.

— Quem não me batia ali.— Consegui responder sem desviar os olhos sentindo o coração acelerado outra vez.

O homem se afastou outra vez escondendo o rosto para a janela enquanto permaneci como uma tola observando o perfil do seu corpo modelado pelo terno, os dedos tatuados com alguns anéis que reconheci serem caros.

— Você irá trabalhar na minha casa. — Não é uma pergunta, na verdade acredito ser uma ordem.

— Posso perguntar com o que senhor? — Tento me manter neutra.

— O que você sabe fazer além de ser o animal de estimação das socialites da cidade?

Engulo em seco com certa dor, finalmente parando de observar seu perfil e seus aneis virando-me para a janela, as pessoas caminhando pela rua, cada uma com sonhos  a serem realizados. Por isso estufo o peito e respondo mesmo sabendo que posso ser motivo de alguma piada como já fui tantas outras vezes.

— Sou estudante de medicina, pela manhã sou um animal de estimação e a noite sou interna do hospital central. — Digo a última parte sem conseguir esconder o sarcasmo. — Não acredito ter alguma serventia nos negócios do dono da cidade.

— Se sabe que sou o dono desta cidade então sabe que a minha palavra é lei. — Sua voz autoritária preenche o carro. — Preciso de alguém que saiba costurar, você sabe fazer isso?

— Sim, senhor. — Engulo em seco aterrorizada pelo tipo de costura a que ele se refere.

— Ótimo, então o seu trabalho começa hoje.

Viro para ele de maneira rápida, seu olhar duro não deixa questionamentos, mas o medo não sai tão rápido.

— Preciso que suture um tiro que levei de raspão durante a madrugada. — Esclarece.

Mordo o lábio inferior nervosa, mas incapaz de dizer qualquer coisa que vá contra ele, as freiras sempre diziam que ir contra o demônio é mais difícil do que ir com ele. Nesse momento, o carro para, não tenho tempo para responder pois um homem já está abrindo a porta, começo a me afastar quando ele próprio empurra o outro da minha visão e estende a mão. Outra vez como uma oferenda indo em direção ao próprio calvário seguro na mão firme e quente, sem desviar do olhar felino que faz as minhas pernas ficarem instáveis.

Quando consigo terminar de descer do carro alto, acabo escorregando e caindo para frente sendo segurada por ele, sinto seu nariz passando pelos fios do meu cabelo até que a sua boca está contra o lóbulo da minha orelha.

— Pelo visto você é o poço da insensatez. — A voz baixa, rouca e grave constata mais uma vez o que percebi horas atrás e para piorar envia espasmos pela minha espinha, aquecendo o meu baixo ventre.

Suspiro incapaz de rebater, pois se fosse lucida o suficiente já estaria embarcando para o polo norte para fugir dele e especialmente teria aceitado esse lado que grita perigo.

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