Tiros. Sua audição já identificava bem quando era a violência na rua ou quando eram fogos de artifício. Em outros tempos até tentavam maquiar o barulho das duas coisas, em alguns casos seguravam crimes para hora de jogos. Hoje em dia parecia não existir muito mais esse pudor. A questão já era tão banalizada, agora, que se o tiro não parecesse ser realmente perto o suficiente pro próximo atravessar a janela ou parede, nem importava mais.
Estava lavando a louça enquanto espiava se seus irmãos estavam mesmo fazendo o dever de casa. Sua mãe deveria estar pra chegar do trabalho e ele estava com todas as tarefas de casa atrasadas pois ficou lendo um livro que ganhou do Sr. Jonas, quando passou pela sua Banca de Jornal. A Banca do Pracista, nome que já estava apagado e quase não se conseguia ler, parecia mais um Sebo do que uma banca, de tanto livro velho, acumulado, para vender. Seu humilde dono, com certeza com mais idade que a maioria de seus livros, gostava muito de Jobson. Achava ele um garoto educado, estudioso, que merecia muito uma vida fora daquela comunidade. O livro era um daqueles que já foi obra obrigatória para os vestibulares famosos, um clássico da literatura brasileira. Não era a leitura que Jobson mais gostava, mas aquele tinha fisgado sua curiosidade. Se pelo menos Kelly, sua irmã o ajudasse de alguma forma, mesmo que só daquela vez. Fernanda, mãe deles, gostava muito do jeito que Jobson cozinhava, preferia a comida do filho mais velho. Bom, afinal ele era mesmo o único dos filhos que se dedicava com as tarefas. Kelly tinha um pensamento que aprendeu a respeito de direito adquirido. Se em algum momento ajudasse o irmão, nunca seria só daquela vez. O irmão teria conquistado um direito de sempre pedir aquela tarefa, então, não arriscava dar a chance de ter seu tempo livre perdido.Clebinho e Clayton, os mais novos, apesar de não serem tão levados quanto a maioria das crianças de sua idade, exigiam muitos cuidados para um jovem adolescente, que tinha que dar conta de tudo sozinho, dividido com as tarefas de casa e suas próprias tarefas escolares. Vida pessoal não parecia muito viável pra ele.Fernanda saía cedo de casa e voltava já era noite. Tinha dois empregos de meio período, como secretária e como atendente em uma loja. Seu sonho era ser psicóloga e sempre dizia que uma hora ou outra largava tudo pra fazer o curso.Jobson tinha consciência da situação e pena pela mãe. Tão jovem, com certeza menos madura do que ele próprio. Quantas vezes já não se pegou dando conselhos, incentivando, ajudando a traçar estratégias para conseguir dar conta das coisas de casa, das contas. Ele sabia que ela não teria como conseguir fazer seu curso.Mas, afinal, era ele também um jovem que precisava ter seu espaço, seus sonhos. Quando pensava assim, se sentia egoísta. Nenhum dos quatro teve a sorte de ter o pai por perto. Outro motivo que fazia Jobson ter pena de sua mãe. Ela nas três tentativas de relacionamento, realmente acreditou que daquela vez era diferente. Nenhum deles foi fruto de um lance momentâneo.O último com quem teve seus dois filhos mais novos, com diferença de 10 meses entre eles, era o relacionamento que Fernanda, Jobson e Kelly mais tiveram esperança, até acharam que daquela vez teriam um pai. Mas o pobre Marilson, dono de uma revendedora de gás, boa gente, muito querido na comunidade, trabalhador, simpático, apaixonado, morreu alvejado, por aqueles tiros comuns.A polícia diz que foi bala perdida, não houveram testemunhas. Alguns dizem que foram os milicianos que tentaram tirar algum dinheiro a mais do homem que não tinha como pagar mais. Fernanda sabia que não devia correr atrás. Ficou inconformada, mas tinha 4 filhos, desolada. Os próprios chefes da milícia a ampararam, o que deixou ela menos desconfiada deles ou mais conformada. O irmão de Marilson, assumiu os negócios e também ajudava a família. O pai de Jobson era traficante, ainda menor de idade, namorou Fernanda e a engravidou quando ela tinha 12 anos. Ela ainda não sabia nada da vida. Ele já era um mentiroso convicto, fazia o perfil do próprio malandro. Sumiu no mundo após a gravidez, também estava na mira de outros bandidos, era órfão e não tinha família. O pai de Kelly, com outro perfil, apesar de trabalhador, das promessas de casamento, também foi pra longe após a notícia da gravidez.Desse, Fernanda tem notícia, sabe que ele está em Juiz de Fora e já entrou com ação pelo advogado que presta serviço gratuito na comunidade para irem atrás dele. Mas por mais que existam boas almas que querem ajudar os mais pobres, ainda assim, sem recurso, a justiça que já é lenta, fica quase parada.Aparentemente, após ele ser intimado, mudou de domicílio, que mudou a jurisdição, que transferiu o processo, por um erro judicial. Então, o advogado dele (pensão ele não paga, mas advogado particular ele contrata), se aproveitou de uma brecha e conseguiu um recurso, que depois acabou em solicitação de DNA, que entrou numa fila e ainda se espera alguma resposta.Fernanda acredita que não deve esperar muito desse lado, pois o cara piorou sua situação de vida, provavelmente não vai pagar muita coisa, se for obrigado a pagar, e pode mesmo é acabar sendo preso, o que na opinião dela, pode traumatizar mais Kelly, que já é uma garota bastante rebelde.Jobson pensava sobre toda essa estrutura familiar complicada, enquanto tentava se lembrar da parte dele que teria que apresentar em um seminário de História e ficava repetindo mentalmente sobre o governo português no Brasil, entre seus pensamentos. Ao mesmo tempo, picava cebola, refogava, contava os copos de arroz, de água, media o sal, enquanto o feijão já pegava pressão na panela.No final das contas, parecia que ia dar tempo de ter tudo feito para a chegada da mãe, os garotos já tinham ido pro banho, terminada as tarefas. Aliás, não olhou a hora, será que a mãe estava atrasada? Esse rápido pensamento já o deixou preocupado.Sentou no sofá e foi ver a hora, em seu celular, aparelho que basicamente funcionava apenas para isso.A água não estava tão gelada. Os treinos na piscina fechada do condomínio costumavam ser difíceis porque o Sol iluminava pouco tempo ali e a água não era aquecida. A mãe de Nicolas já tinha até proposto contribuir com um valor maior do que os vizinhos pro sistema de aquecedor, mas a assembleia não concordou por hora, pois eles estavam reformando a quadra de tênis.Nicolas recebeu uma carga nova de treinos, um pouco mais pesada. Quando tinha que treinar em casa, sozinho a vontade de não fazer nada era grande, mas o treinador sabia quando ele não tinha feito as séries corretamente. Às vezes ele acreditava que era observado pelas câmeras de segurança, mas lembrava que era proibido pelas regras do condomínio. Com a influência de seu pai, não seria muito difícil ele conseguir isso, mas acreditava mais na capacidade de seu treinador em perceber a evolução.Ficava triste, nessa solidão da piscina olímpica. Lembrava de quando era menor e su
“Um completo absurdo!” Era o que Viviane pensava sobre aquilo. Quem aquela garota imaginava que era? Na verdade, com quem ela imaginava que estava falando? Será que ela não conseguia imaginar o quão sortuda ela era por estar trabalhando para aquela família? Quantas vizinhas dela deveriam estar morrendo de inveja por ela estar no bairro mais rico da cidade, a maior parte do seu dia, segura, bem alimentada, com bons benefícios. Afinal, sua família era muito boa com seus empregados.Viviane não gostava da ideia de sua governanta cuidar da contratação das empregadas. Afinal, governanta era algo tão provincial, antiquado. Mas, seu finado pai valorizava tanto, não só aquela função, mas a sua ocupante, e havia prometido a si mesma que manteria Aurora enquanto ainda estivesse viva. Mas possivelmente estava gagá, teria que conversar com ela de novo pois as contratações não estavam de acordo. Onde já se viu, logo no começo do dia, já dar uma res
Mais uma noite mal dormida. O médico do posto de saúde já havia dito que ela não podia ficar sem seu calmante e seu remédio da pressão. Mas já faziam 15 dias que ela rigorosamente ia toda manhã saber se já tinha chegado. Eram muito caros para serem comprados, mais do que ela gastava com comida no mês, apesar de menos do que o marido ainda devia com bebida no bar.Então, às 5h da manhã, Maria Aparecida, a Dona Cida já estava em pé, fazendo seu café. As mãos trêmulas já não ajudavam mais como antes e a dificuldade era do tamanho da colher que ela usava para evitar desperdiçar.Não eram só os movimentos. A vista falhava de longe, mas era de perto que dificultava mesmo. Forçava tanto que no final do dia a dor de cabeça só se resolvia com analgésico. Esse pelo menos o posto de saúde ainda tinha.Ligava o rádio e escutava as notícias do seu programa preferido. Uma pena que aquele locutor da sua geração havia falecido, mas o jornalista
A maioria das vezes, Nicolas não se sentia à vontade no colégio. Não era pra menos, afinal existiam câmeras espalhadas por todos os lados. E a grande maioria delas poderia ser acessada pelos pais remotamente. Não que ele acreditasse que seus pais poderiam estar observando-o. Com certeza estariam ocupados demais para tanto. Mas ainda assim, a sensação de ter quase todos os seus passos vigiados lhe era bastante estranha. O lugar parecia uma mistura de shopping center com centro empresarial. Realmente era muito bonito, recém reformado, tinha conquistado, além de pais dispostos a gastar, ou investir como eles costumavam pensar, no futuro dos filhos (ou no próprio), também, empresas investidoras. Eram universidades particulares, eram empresas que prometiam empregar as mentes mais brilhantes, já ali, antes de terminarem os estudos, que nomeavam turmas com suas marcas, fornecendo treinamentos, estruturando.Mas tinha um ar de prisão de primeira classe. Catracas na entrada, portões a
Aquele sinal barulhento, como uma corneta distorcida, estridente que precisava ser arrumado a tanto tempo, indicava a tentativa de trazer alguma ordem para aquela “reunião” social, que qualquer um poderia, de longe, imaginar ser mais uma espécie de “convulsão” social. Jobson ia para a escola ainda, muito mais para incentivar os irmãos e acompanhá-los e porque sua mãe insistia que ele precisava. Mas estudar era uma das poucas coisas que ele conseguia fazer, ali. Preferia fazer a maioria das tarefas, que os poucos professores que ainda se importavam passavam, em casa. Até porque, mesmo que fosse dividindo-se em outras atividades do lar, lá, ele ainda tinha algum sossego. Mas na escola, durante a aula, a bagunça lhe dava dor de cabeça, se tentasse ler. Nas aulas vagas, na ausência de algum professor, tentava se isolar para ler, sem sucesso ou buscava a "pseudo" biblioteca da escola, mas o cheiro de lá não era muito agradável. E ele, por algu
Todos os dias, mais de uma vez por dia, Jobson e Nicolas passavam pelo mesmo lugar. Nunca tinham se encontrado. Era como se fossem duas realidades diferentes, como se num universo Jobson passasse num ponto e num outro universo paralelo Nicolas passasse no mesmo ponto, exatamente ao mesmo tempo e atravessassem um ao outro. E não fosse uma coincidência do destino, se ao destino pertencerem coincidências, o encontro deles nunca aconteceria. Jobson caminhava 50 minutos só na volta pra casa. Andava, não, quase corria. Aliás, essa é uma qualidade natural a todos aqueles que são financeiramente desfavorecidos: andar rápido. Por todos os motivos, o pobre aperta seu passo. Seja para aproveitar o pouco tempo que tem de alguma forma, seja para fugir de algum perigo que pode estar próximo. Afinal, por menos dinheiro, posses e bens que uma pessoa possa carregar consigo, ela nunca está segura, sempre terá alguém que tentará tirar alguma coisa dela. Ainda mais onde Jobson morava. Mas a insegur
Jobson estava achando estranho que até aquele horário sua mãe ainda não havia chegado. Algumas vezes ela fazia hora extra, por isso, uma hora ou duas de atraso para chegar em casa não o espantavam. Mas já era tarde da noite e apesar de seu dia ter sido longo, ele decidiu que deveria fazer alguma coisa.Chamou uma das vizinhas, Dona Idalina, que mais que depressa, preocupada, foi até o final da rua procurar seu cunhado que deveria saber a quem procurar. Não adiantava ir atrás da polícia, pois desaparecidos só podem ser reclamados após 24 horas. E Jobson sabia que depois de 24 horas desaparecida, se isso acontecesse, seria só cumprir uma burocracia na delegacia.Vander trabalhou muitos anos como segurança e tinha alguns contatos que poderiam ajudar naquele momento. Em poucos telefonemas, descobriu a informação de um lugar onde talvez pudesse começar a procurar por ela. Dona Idalina foi ficar com os irmãos de Jobson, que entrou na parati de Vander e iria com ele até lá. Segundo a
Nicolas precisava ir em uma festa. Não era por diversão, era um compromisso, um evento social. Sua mãe disse que era muito importante, que tinha prometido para uma de suas amigas que providenciaria para que ele fosse conhecer a filha dela. Nicolas pensava que, da mesma forma que o trabalho escravo havia acabado, com a lei áurea, os casamentos arranjados entre as famílias da elite também tinham sido erradicados. Só que não. No máximo, foi dada a ilusão da existência de escolha. Você não é obrigado a fazer isso, você pode escolher entre isso, algo parecido com isso e algo menos parecido com isso que vai te colocar em uma situação ainda pior. O rapaz já havia dado outras desculpas para outras tarefas e se viu encurralado. No final das contas, ele condicionou sua ida a apenas conhecer a garota, ficar umas duas horas e voltar para casa. A mãe consentiu e tudo ficou arranjado. Nicolas analisou o convite, que pedia traje fino e imaginou uma