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Doce Problema
Doce Problema
Por: QiShuang
Capítulo 01: Água e óleo

[OLIVER]

Não sei o que é pior. Os alto-falantes anunciando o atraso nas linhas aéreas, o clima seco que me deixa sem ar e com a garganta presa ou os curiosos que cercavam o desastre: eu.

Gregory apalpa toda a minha roupa do jeito que os policiais revistam um suspeito. Não tem nada demais na minha roupa, elas são pretas, exceto a minha calça que é xadrez, preta e vermelha, mas Gregory não aguenta manter as mãos longe dos meus bolsos. Ele percorre com os dedos pelo meu cinto de rebites e enfia a mão no bolso de trás.

Cara, isso é tão humilhante que preciso morder a língua. Seu rosto inteiro se contorce quando ele pensa que encontrou alguma coisa, mas ao puxar o objeto, percebe que é só o meu iPod com os fones enrolados. Haha, adoro como a cara dele desmancha. Ele me devolve o iPod, colocando de novo no bolso em que encontrou.

Gregory é um homem sério, seu olhar é uma das poucas coisas que me fazem pensar duas vezes antes de falar alguma coisa ou fazer algo totalmente fora de controle, coisa na qual eu sou muito bom por sinal.

Ele está com um terno de grife feito sob medida em alguma alfaiataria europeia, seus cabelos são quase grisalhos e suas sobrancelhas grossas e cinzas se curvam deixando-o parecido com uma carranca. Ele está bravo e eu já sei que foi porque ele achou no bolso interno da minha jaqueta o isqueiro que eu comprei agora a pouco na banquinha de revista enquanto ele foi ao guichê de embarque registrar minha passagem. Ele balança o objeto na minha frente, quase batendo o isqueiro Bic verde no meu nariz.

Sério?

É só um isqueiro.

Onde estão os cigarros, Oliver? Com certeza você também comprou cigarros.

Possuir um isqueiro pode ser caso de vida ou morte se eu sofrer um acidente de avião.

Gregory resfolega pesado, como se estivesse muito cansado, ele está de saco cheio das minhas mentiras, mas ainda acho que posso forçar um pouco o limite das coisas e quem sabe, escapar dessa. Coloca uma mão no queixo quadrado como o de um herói de quadrinhos que envelheceu, com a barba aparada em perfeição. Estende a outra mão para mim:

Me dê aqui. — Sua voz soa como uma ordem de um general, mas não surte efeitos imediatos.

Não estou com cigarros. — Solto a mentira por entre os snakebites de ferradura pretos que fiz às escondidas no verão passado. Haha, eu lembro a cara que ele fez quando eu cheguei em casa com piercings. Até hoje isso me diverte.

Gregory continua com a mão estendida e cara de impaciente, feito estátua na minha frente, oh, não. A mentira não vai colar, dificilmente cola, ele me conhece muito bem. Acho que é uma característica humana aprender como os outros se comportam, como preadores aprendem sobre suas presas.

Ou me dá aqui, ou vou arrancar suas roupas até encontrar. — Agora a voz dele sai tão ameaçadora e arranhando na garganta, que um pequeno arrepio de alerta percorre minha nuca.

Estou ferrado. Respiro fundo e reviro os olhos da forma que sempre faço e que o tira do sério, mas talvez pelo fato de que estou de óculos escuros de lentes sépias, ele me dá uma trégua nesse aspecto e apenas observa. Escorrego a mão para o bolso da minha calça e rapidamente retiro o maço de cigarros. É de uma marca barata estoura-peito, mas está dobrado com uma habilidade digna de um show de mágica. Aprender alguns truques tem sua utilidade.

Você ainda vai morrer se continuar fumando qualquer coisa. — Gregory comenta e tomando posse do meu maço já aberto (eu já fumei um), enterra meus recém-adquiridos cigarros dentro da lixeira que está aqui ao lado. Eu o observo ir e vir, sem me dar muito tempo de fugir. — Agora, me dê sua mochila.

Mas… — Ah, não, poxa a mochila já é demais!

Anda, me dê agora. — Gregory estica o braço e puxa a alça da mochila com estampa quadriculada branca e preta do meu ombro com tanta força que sei que ele já está sem a menor paciência comigo. Tem sido assim nesses últimos meses e ainda não entendi como ele passou de um padrasto legal para um canalha. — Quero ver o que mais você está escondendo aí.

Isso é realmente não confiar em mim. — Tento uma chantagem emocional e cruzo os braços, enquanto meu padrasto abre o zíper da minha mochila e percorre o interior com a mão.

Olho para o lado, nem quero ver a cara que ele vai fazer, mas acabo cruzando olhares com uma senhora baixinha e de cabelos brancos enrolados que me encara com tanto espanto que sou obrigado a olhar novamente para o homem que em um passado distante me chamava de “filho”.

Você me dá bons motivos. — Ele diz conferindo o conteúdo da minha mochila. Lá dentro tem a minha câmera fotográfica, meu único hábito saudável, meu notebook velho, algumas revistas que comprei do Batman e escondida atrás de uma camiseta preta de um show que eu fui da Bring me The Horizon e uma garrafa plástica de soda limonada. — Sabia. — Ele faz, devolvendo a mochila para mim e conferindo a garrafa. — O que é isso? Vodca?

Soda. Está escrito na garrafa. — Puxo o zíper pelo chaveiro do Jack Skellington para fechar a mochila e coloco de volta nas minhas costas. Faço questão de abaixar a cabeça e jogar a minha franja para frente de forma que ela cobre parte do meu rosto. Já preparo meus ouvidos, ele vai gritar tão alto que vou querer desaparecer.

Escuto o barulho do lacre abrindo. Não tem gás, não é realmente soda limonada como eu finjo que acredito ser. A garrafa vai parar na lixeira depois que ele cheira e faz uma careta.

Viro as costas por cinco minutos e você me apronta dessas, Oliver, sinceramente você só me decepciona. — Gregory revira os olhos castanhos e estou olhando para ele segurando um palavrão com a ponta da língua nos dentes.

Estamos quites.

Tira a sua bota.

Tá brincando?

Fico parado com a boca aberta em um círculo. Agora ele está exagerando!

Não vou pedir duas vezes.

Droga. — Eu me abaixo e começo a desamarrar o coturno do pé direito. Entrego para ele. — Tá vazio, juro!

Gregory olha o conteúdo, tirando inclusive a palmilha, desconfiado. Solta ar pela boca e devolve a bota militar para mim, mas continua com a mão estendida.

O outro pé.

Tá vazio! Pode confiar em mim.

Você também não tinha cigarros. — Não amolece nem por um segundo.

Tiro o segundo sapato, pisando de meias amarelas no chão do aeroporto e entrego a bota para meu padrasto conforme ele exigiu. Gregory confere o conteúdo do meu pé esquerdo enquanto amarro o pé direito de volta.

Não sei por que fico impressionado com sua cara de pau. — Gregory solta o segundo pé da bota no chão, cai bem do meu lado. Ergo os olhos e o vejo segurando entre os dedos o que encontrou dentro da palmilha: um pacotinho de plástico com dois comprimidos azuis. — Não aprendeu na escola que não pode tomar remédios para dormir com álcool, não?

Aprendi que dá barato naquele SPA que você me mandou mês retrasado. — Anuncio como se fosse a coisa mais normal do mundo, calçando o segundo pé. Na verdade não era SPA, era uma clínica de reabilitação psicológica para jovens.

Estou sem paciência pra suas malcriações. — Antes de me deixar amarrar o coturno, puxa-me pelo braço, fazendo eu ficar em pé. — Vamos logo.

Nem amarrei meu coturno!

Não precisa, ainda vão revistar você lá dentro. — Ele me puxa com mais força, me forçando pelo corredor do aeroporto. — Não sei qual o seu problema!

Talvez seja você!

É, talvez seja. — Gregory revira os olhos, enfastiado de brigar. Não é só ele que está de saco cheio, que fique bem claro aqui. Ele me empurra contra o segurança da companhia aérea, que está ao lado de um policial me esperando para a revista. — Pode revistar agora. Sinceramente, Oliver, não sei se você faz isso de propósito ou só para chamar atenção.

O policial faz seu trabalho da mesma forma que meu padrasto fez segundos atrás. Revira minha mochila jogando tudo no chão (e eu tenho que catar), olha dentro da minha bota, meia, calça, jaqueta (arranca até um dos bottoms, da Pink Floyd) e passa um detector de metal por todo o meu corpo. Ele me obriga a tirar os braceletes e me algema. Eu tinha a expectativa de que ele achasse meus cigarros ou minha vodca e me impedisse de embarcar, mas Gregory é mais esperto do que eu.

Vou mesmo ter que embarcar algemado? — Pergunto enquanto o policial tira meus óculos, entregando para Gregory. Não são meus, mesmo, estou usando para esconder meu olho roxo.

Talvez devesse pensar nisso antes de fazer merda. — Gregory sentencia. O policial carrancudo nem se dá o trabalho de responder, já me empurrando para dentro da sala de embarque. — Faça boa viagem.

Vá se ferrar. — Se eu não tivesse algemado, levantaria meu dedo para ele.

Tenho que ficar ali em pé na sala de embarque esperando todos os passageiros subirem primeiro no avião. Finalmente tiram minhas algemas (que vão colocar de novo assim que eu pisar no chão no desembarque ao destino) e eu posso embarcar.

Estou oficialmente expulso de casa. É isso. Meu padrasto me enviou de presente para o meu pai biológico, um cara que eu nem conheço e não faço a menor questão de conhecer.

A vida é uma droga.

❀ ❀ ❀

Ei, quanto tempo leva essa viagem? — Tive que segurar no braço da aeromoça. Ela já passou aqui duas vezes e simplesmente me ignorou em todas elas.

Uma hora e meia, agora por favor, permaneça em seu lugar ou vou ter que chamar o segurança. — A mulher segura na minha mão, livrando-se d emeus dedos. Ela é bonita, magra e arrumada, mas da forma que todas as outras aeromoças são. Gostaria de saber se elas são produzidas em série numa fábrica, são todas iguais! O mesmo sorrisinho simulado de simpatia, os cabelos arrumados em um coque e uniformizadas. Enfadonhas.

Suspiro imerso em tédio e viro para a janela do avião. A vista é um saco: branco, azul, branco, azul… às vezes o avião inclina um pouquinho e vejo verde, verde, verde… às vezes reflete o meu reflexo e sou obrigado a me encarar, coisa que ninguém (nem eu mesmo) aguenta. Queria que o avião se perdesse em uma tempestade cheia de raios, fosse atingido e caísse no meio do oceano… se bem que, não sei se nessa rota ele passa pelo mar, nunca prestei muita atenção na aula de geografia e não sei nem se ensinam essas coisas… mas capaz que se o avião cair, seja bem em cima de uma fazenda cheia de cocô de gado.

Não é drama, estou sendo sincero em relação aos meus sentimentos, como me sinto acerca de mim mesmo e dessa situação irritante. Normalmente, sinto tantas coisas que pareço que não sinto nada. É estressante e procuro sempre desviar o foco ou cortarei meus pulsos.

Tento pensar em alguma coisa me faça sentir bem, como quando eu tinha doze anos. Fui para a Disney. Minha mãe ainda era viva e meu padrasto ainda me chamava de filho. Visitamos o parque do Harry Potter — até me vesti de Harry Potter na época, mamãe desenhou a cicatriz de raio na minha testa com o lápis de sobrancelha — e me entupi de cerveja de manteiga (sem álcool e doce como guaraná). Comi tanta jujuba que passei mal.

Ainda passo mal com cerveja, mas agora tomo com álcool mesmo. O que me leva a desistir de ficar pensando na Disney, na minha mãe, em tudo o que um dia a vida me ofereceu de bom. Por que permitem que a gente conheça a felicidade e depois arrancam tudo da gente? Não tenho mais nada, apenas me restou a saudade, a solidão e a tristeza.

Mães deveriam ser eternas!

Tiro o cinto assim que o aviso luminoso para usar o cinto de segurança se apaga. Olho para os dois lados antes de sair da poltrona, certificando-me de que todo mundo está ocupado demais para reparar em mim. Sabe, não importa o quanto eu me vista de forma excêntrica, todo de preto, com um moletom de caveiras ou o escambau, as pessoas se ocupam facilmente com seus celulares, revistas ou simplesmente ignorando os outros… É como se eu fosse invisível e falando sério, gosto disso.

Passo pelas cortinas cinzas do avião, trocando de ala e com alguns passos chego ao carrinho de bebidas. O primeiro carrinho está repleto de sucos e refrigerante, nada que me interesse, mas o carrinho do lado, prontinho para passear pela primeira classe está cheio de minigarrafas de Red Label e é exatamente o que eu preciso. Alcanço uma latinha de refrigerante do carrinho dos caretas, engulo o máximo que consigo em um gole só e despejo duas garrafas de uísque dentro da latinha. Fecho as duas garrafas e as coloco bem para o fundo do carrinho.

O que você tá fazendo? — Levo um susto e me viro, encarando aquela mesma aeromoça antipática de momentos atrás. Ela está de braços cruzados por cima dos peitos murchos.

Eu estava com sede e você vive me ignorando. — Dou um gole na latinha adulterada.

A aeromoça inspira tentando se acalmar e me tira dali. Ela me leva para o meu assento e me faz sentar, sem paciência comigo. Se fosse Gregory, ele arrancaria a latinha das minhas mãos, despejaria o conteúdo fora e acabaria com a diversão. Eu diria que estou com sede, ele me daria uma garrafa de água sem graça transparente e controlaria astutamente cada gole que eu daria com os olhos… Mas a aeromoça é só uma funcionária, ela provavelmente acha que sou só mais um garoto mimado fazendo ela perder o precioso tempo. Sou do pior tipo.

Fique sentado, por favor. — Diz aborrecida e passa o cinto por mim, basicamente amarrando-me no assento. — Além de um refrigerante, vai querer alguma coisa?

Um Martíni? — Faço brincando com um sorriso, o que a aborrece e a faz fechar a cara, saindo dali. Exatamente o que eu queria: ela bem longe.

Bebo todo o conteúdo da latinha em vinte minutos, o pouco de álcool que tinha não serviu nem para dar sono, por isso, continuo olhando pela janela desejando simplesmente que a viagem acabe logo.

[JOYCE]

Joyce! Joyce! — Escuto a voz da minha mãe no andar de baixo e jogo a cabeça para trás.

Ai que inferno! Ela não me dá um sábado de folga. Encho as bochechas de ar bufando, fecho a tela do computador (estava lendo o blog de duas amigas minhas) e levanto da cadeira da escrivaninha. Enrolo meus cabelos nas mãos, formando um coque e prendo fio com fio para segurá-lo na cabeça. Solto meus óculos de leitura em cima da mesa e abro a porta.

Joaquim fecha a porta dele no mesmo instante. Encaro o adesivo que tem escrito “You shall not pass!” e uma silhueta de um homem com braços abertos segurando um cajado. Grosso! Meu irmão mais velho é meio-a-meio, depende do humor dele.

Joyce! — Mamãe berra de novo.

Já vou!

Calço minhas pantufas, são fofas e tem o formato de uma joaninha com direito a antenas! Desço as escadas e encontro com minha mãe no meio da sala de estar, em seu conjunto taier azul-marinho.

Você ainda está de pijamas? Sabe que horas são? — Mamãe é uma mulher muito rígida e fria, às vezes fico até na dúvida se ela me ama, pois tudo o que faz é achar defeitos em mim.

Confiro meu corpo, coberto por um shorts de algodão cor-de-rosa e uma blusinha com um yorkshire de lacinho.

Desculpe. Estava estudando.

Bem, não tem importância agora. — Ela agarra meu pulso e me puxa para a outra sala, perto da porta da cozinha. Meu corpo inteiro já começa a tremer só de olhar para a balança. — Mas depois vá se trocar.

Tá bem. — Respondo em puro desânimo, mas por sorte não fiquei de castigo.

Mamãe tem uma agenda de horários que devemos seguir. Coisas como: 4h45 levantar e arrumar a capa. 5h Correr pela vizinhança. 6h ir pro banho, 6h20 tomar café… Bla bla bla. Não cumprir com essas regras é pedir para apanhar. Quando eu era criança, desobedecia mais. Passou, agora eu obedeço sem pestanejar.

Anda, suba. — Ela acerta os óculos no rosto, para enxergar direito cada grama do meu peso. Reparo como seus cabelos castanhos escuros estão perfeitamente presos em um coque, são naturais, nunca receberam tintura.

Mas, mãe…

Joyce. — É o primeiro aviso.

Tiro as pantufas e subo na balança. Coloco a mão na minha barriga, em uma tentativa de fazer ela desaparecer por mágica para que eu não tenha engordado.

Hmmm. — Mamãe resmunga enquanto acerta os pesos da balança. É uma daquelas de médico, pois são mais precisas que as digitais. Eu começo a suar frio, minhas mãos ficam úmidas.

Acho que tenho pânico de balança. Acho, não. Tenho certeza. É só me dizer que preciso me pesar que eu preferia ser uma melancia em um campo de tiro-ao-alvo. Mamãe se demora analisando a posição do peso da balança e eu vou ficando cada vez mais nervosa. É como se a cada segundo que me demoro por ali, ganho um quilo a mais nessa balança.

Você não engordou.

Ufa! Até respiro, notando só agora que prendi a respiração por tanto tempo que quase fiquei tonta.

Mas também não emagreceu. Que desastre, Joyce! — Mamãe sentencia e me dá as costas. Mordo a boca, prensando o lábio inferior contra meus dentes. Meus olhos se enchem de lágrimas, é inevitável. — Vou agendar a nutricionista de novo!

Fico parada encarando a balança, medindo meus 56 kg. Oh, meu Deus, estou gorda! Gorda! Muito gorda! Mamãe gira de novo e vem na minha direção com a fita métrica na mão. Já fico em pânico. Quando ela perceber que eu estou alguns centímetros maiores será o meu fim!

Levante o braço. — Mamãe estende a fita amarela na minha frente. Meus braços estão cruzados por cima do meu corpo, como se eu estivesse com frio ou pelada, querendo me esconder. Relutante, abro os dois braços devagar. Mamãe mede cada circunferência do meu corpo. Braço, antebraço, pescoço, busto, barriga, quadril, coxa, panturrilha, pé… é uma vistoria completa de deixar qualquer um maluco. Ela anota tudo em um caderno, aperta meu pescoço, conferindo a banha que fica nos ossos da clavícula, afundando os dedos de um jeito que até doí. — Ai, que horror, Joyce, você está retendo água. Melhor você passar o dia tomando suco de limão para desinchar, que caos!

Isso quer dizer que hoje ela não me permitirá comer nada. Normalmente posso comer um cabo de salsão no almoço. Que droga.

Você não fez sua corrida de manhã, melhor dobrar a da tarde. Vi que tem uma academia aqui perto, do outro lado da praça, vou te matricular lá. — Ela avisa.

Prefiro correr no parque.

Melhor um profissional acompanhar você. — Mamãe enrola na mão a fita métrica. — Falei com a agência. Você não foi aceita no último teste e eles passaram novas medidas que você precisa alcançar. Menos na coxa e mais no bíceps se quiser ser requisitada na próxima. — Ela bate a mão duas vezes animada com a possibilidade. — As novas seleções serão semana que vem. Passei um charme na mocinha ao telefone e fiquei sabendo que eles estão a procura de garotas mais pálidas, acho que precisamos escurecer seus fios… — Ela segura uma mexa do meu cabelo. — Credo, estão muito ressecados, já sei do que você precisa.

Do quê? — Fico até com medo.

Uma vez a “mocinha ao telefone” com quem mamãe conversou disse a ela que uma marca de moda praia buscava garotas mais bronzeadas e tive que encarar bronzeamento artificial. Minha pele ficou laranja como cenoura, tive uma alergia horrível e agora não posso tomar Sol. Por causa disso mamãe encasquetou que eu posso ser selecionada para as campanhas de inverno.

Eu sou sempre selecionada, mas mamãe não gosta de fazer campanhas pequenas e para marcas inferiores, ela diz que o investimento é mais alto que o valor que as agências querem pagar. Sinto-me um fracasso, nunca me selecionam para grandes coisas. Há muita concorrência e é especialmente difícil para quem está iniciando carreira. Eu comecei aos doze, agora tenho quase dezesseis.

Vamos ao cabeleireiro. — Sua boca estica em um sorriso.

Precisamos mesmo ir? Estou tão cansada. — Eu vivo cansada, como se não tivesse energia para nada. Queria ficar debaixo do meu cobertor lamentando as medidas que eu não tenho.

Claro que sim, além do mais, não vejo a hora de passar um tempo com minha filha. — Ela me aperta em uma espécie de abraço que me coloca para fora da balança. Ufa, acabou? — Vamos fazer compras e você pode provar as roupas que eu trouxe para você da França quando voltarmos. — Ela guarda a fita métrica na gaveta do armário perto da balança, onde fica todas as coisas que ela usa para medir tudo em mim.

Sabe, minha mãe viaja demais a trabalho e quando aparece fica de marcação em cima de mim, mas eu não deveria ser tão ingrata. Sempre que ela volta, ela pensa em passar o dia comigo, me traz um monte de presentes e suas medições são a forma dela se preocupar com meu bem-estar.

Realmente, eu deveria ser mais grata.

❀ ❀ ❀

Chego do shopping com sacolas novas de produtos de higiene, cremes para o corpo, cabelo, mãos, pés, essas coisas. Mamãe achou que minha pele estava ressecada demais. Ganhei também um perfume com cheiro floral e adocicado como açúcar, muito bom! Até que ir ao cabeleireiro não foi tão ruim! Toda garota gosta de receber atenção e um banho de beleza.

Agendamos também uma massagem com pedras quentes. Disseram que é bom para relaxar. Estresse faz coisas terríveis conosco, como diminuir a elasticidade da pele e você fica mais propensa às rugas. Cuidado, meninas! Procurem não se estressar com provas de colégio, amigos falsos e namorados.

Por falar em namorado…

Rolo na cama e alcanço minha bolsa. Pego meu celular e procuro pelo número de Adam. É um dos primeiros na ordem alfabética. Disco e fico esperando ele me atender.

Alô?

Adam? Oi! — Mordo a boca para conter um sorriso. Adam é da minha turma, o conheci esse ano e logo ficamos. Começamos a namorar no dia seguinte e estamos juntos desde então. São três meses e meio, ainda estou conhecendo-o, mas até agora está tudo bem e Adam é mesmo um rapaz brilhante.

Ah, oi, Joyce. — Noto desânimo em sua voz, acompanhado de um bocejo e muito barulho ao fundo. — Tudo bem? Aconteceu alguma coisa?

Onde você está? — Ué, ele nem me disse que ia sair.

No aeroporto.

Por quê? Vai viajar?

Não. — Ele dá uma risada amarga. — Vim conhecer o Oliver, ele chega hoje. Já era para estar aqui, na real.

Ah. Oliver. Desde que conheci Adam tudo o que ele sabe dizer é que está nervoso, ansioso, passando por uma situação complicada e empolgante ao mesmo tempo em casa. Oliver é o nome do meio-irmão dele, eles tem a mesma idade, filhos do mesmo pai e de mães diferentes; mas que nunca se encontraram. Adam está mesmo empolgado com o lance de finalmente poder conhecer o irmão e ter alguém para “dividir a vida”, como ele diz. O problema é que Adam nunca fala comigo a fundo sobre nada, ele não me disse que dia seria.

Oh, é hoje? Por que você não me avisou? Teria ido com você.

Te falei que era um lance enrolado. Não ia dar para você vir.

Fico triste com isso. Eu gostaria de estar lá com ele, dando apoio para o meu namorado quando algo importante assim em sua vida acontecesse! Às vezes, fico com a sensação de que Adam me deixa um pouco excluída e isso me faz pensar se não sou apenas uma distração.

Nos vemos mais tarde então, na casa da Vivian? — Ouso perguntar.

Affe, não sei, Joyce. — Ele se impacienta. — O voo atrasou, estamos esperando. Minha mãe já está nervosa e meu pai uma pilha. É complicado, já te disse isso.

É verdade, ele sempre me diz que o caso é “complicado” e eu não entendo exatamente qual a complicação, deve ser coisa de família. Gostaria que Adam se abrisse mais comigo, mas, ao mesmo tempo, procuro não forçar. Estamos namorando há pouco tempo e não quero soar controladora ou chata.

Hm, okay. Bem, vamos nos falando por W******p e você me avisa se vamos ou não na casa da Vivian.

Beleza, gatinha. — Adam solta um suspiro. — Te ligo mais tarde.

Sem se despedir direito, Adam desliga. Solto o celular. Gosto de Adam, mas às vezes sinto como se as coisas estivessem sempre mornas entre nós. No início de namoro não deveria ser mais empolgante e apaixonante? Nos conhecemos de um jeito tão raso e rápido que parece forçado. Vivian foi quem nos apresentou e fez de tudo para ficarmos juntos, até que eu cedi para um beijo. Vivian é a melhor amiga de Adam, uma garota linda do colégio, superpopular. Ela é amiga de Sophia e Cecília, as donas do pedaço, donas mesmo, elas possuem um blog que dita as regras de tudo do colégio.

Suspiro, rolando na cama e encaro o teto. Sempre ouvi falar que beijos perfeitos nos deixam suspirando, transformam nosso coração em fogos de artifício! Nada disso aconteceu quando beijei Adam, mas todo mundo o adora… A sensação é de cegueira, como se eu fosse incapaz de perceber alguma coisa que todo mundo enxerga.

Pego o celular e envio uma mensagem para Adam, dizendo:

Boa sorte com seu irmão! Quando acha que poderemos conhecê-lo também?”

Mas não chega nenhuma resposta, eu envio mais um monte de mensagens a tarde toda e continuo no vácuo. É uma mania de todos os namorados ou só o meu que é relapso comigo assim mesmo?

Ai, isso é tão irritante!

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