Acordamos assim que o sol deu seus primeiros sinais de vida, iluminando toda a montanha. Subir até o local do acidente já seria uma missão demorada por si só. Procurar pelos destroços coisas que ainda sirvam e descer com elas iria levar o dia todo. Então não podíamos perder nenhum segundo.
Vesti novamente as calças do meu pai e fui ver se já estavam todos de pé. Lila já havia acordado e estava com toda a animação habitual dela – o oposto de mim que sempre acordo mal-humorada. Já o Richard... Não esperava outra coisa dele mesmo.
– Levanta logo, Bela Adormecida! – chutei de leve a barriga de Rich. Ele não acordou – Seu preguiçoso! – berrei em seu ouvido – Está pensando que isso aqui é colônia de férias? Vamos tratar de levantar imediatamente!
– Que foi? – ele resmungou – Resolveu madrugar?
– Estamos em uma ilha que sequer está no mapa. – continuei berrando – Aqui se acorda cedo para aproveitar a luz do sol! Ou você prefere subir aquela montanha no meio da noite? Porque se for assim então você vai ter que fazer isso sozinho, viu?!
– Então foi verdade? – Richard começava a acordar.
– Não diga que achou que fosse um sonho? – briguei, mas logo tentei me redimir – Quanto a isso eu não posso te julgar. Até hoje tem certas manhãs que eu acordo me perguntando se não foi tudo um sonho. Ou um pesadelo. – respirei fundo – Muito bem, já vimos que estamos ferrados real e que reclamar não vai ajudar. Agora levanta já daí ou te dou outro chute em um lugar que você não vai gostar.
– E bom dia para você também! – Richard já começava com as ironias.
– Você não dá uma trégua! – Lila apareceu com bananas e água de coco.
– Isso é o café da manhã? – Richard franziu as sobrancelhas.
– Cara feia pra mim é fome, sabia? – debochei – Se bem que no seu caso talvez seja só a sua cara mesmo.
– Susi! – Lila colocou os pratos no colo de cada um – E que não temos muitas opções aqui, Rich, mas garanto que está delicioso.
– E se estiver achando ruim, já sabe...
– Susi! – Lila me fuzilou com o olhar.
– O que foi que eu disse? – bufei – E se dê por satisfeito, viu?!
– Tudo bem, tudo bem – Richard ainda coçava os olhos – Mas onde fica o banheiro?
– Sério mesmo que você está me fazendo essa pergunta? – dei uma leve gargalhada.
– O que foi? – Richard estava assustado – Vou ter que fazer no matinho?
– Bem-vindo à selva, Richard! – gargalhei ainda mais.
– Fala sério! – ele saiu resmungando para fora de casa.
– E se for fazer o número dois, tome cuidado com a folha que for escolher! – gritei da janela – Não vou cuidar de traseiro de marmanjo não!
Richard resmungou alguma coisa que eu não compreendi e sumiu dentro do matinho. Aproveitei a ausência dele para saborear em silêncio o meu delicioso e repetitivo café da manhã. Ou foi o que eu pensava.
– Espere! – Lila berrou – Temos que esperar o Rich voltar.
– Sério isso? – bufei.
– Vai deixar que ele coma sozinho?
– Que diferença faz isso, Lila?
– Toda a diferença! Não é educado.
– Como se no meio da selva essas regras de etiquetas fossem servir de alguma coisa.
– Você às vezes é tão grossa! – Lila deixou sua voz em um tom de repressão.
– E você às vezes me irrita. – fiz careta – E olha que não são poucas vezes.
– Susi! Lila! – era a voz de Richard – Corram aqui!
– O que foi? – sai gritando – Qual foi o problema da vez? Uma formiga mordeu seu traseiro. Eu já disse que não quero ver essa cena!
– Para de besteira e corre logo aqui! – Richard se aproximava da casa com uma péssima expressão.
Lila e eu corremos para conferir o que de tão urgente havia acontecido. E eu não estava gostando nenhum pouco da expressão do rosto de Richard.
Não nos afastamos muito da casa. Foram poucos metros até Richard parar e ficar olhando para o chão.
– Alguma vez na vida vocês já viram isso por aqui? – Richard se agachou um pouco.
– Não mesmo! – respondi espantada.
– Nunca! – Lila complementou.
Não era apenas uma pegada, era praticamente uma cratera de quase 1 metro de largura. Não estava muito distante da nossa cabana e parecia que tinha sido deixada há pouco tempo. Mas o pior era que, ao que tudo indicava, a pegada deveria ser de um felino. Pelo menos era muito parecida com a de um felino. Isso não era nada bom. E eu estava com o pressentimento de que só iria piorar.
– Eu não sou especialista em mundo animal, mas acho que um bicho com uma pegada deste tamanho não deve ser pequeno. – Richard se levantou com a mesma expressão de espanto que todos nós estávamos.
– Nós nunca tivemos nada que comprovasse que uma onça estivesse mesmo rondando a ilha. – falei ainda sob o efeito do susto – É surpreendente.
– É aterrorizante, isso sim! – Lila quase embolou as palavras de tão rápido que as pronunciou.
– Mas uma onça? – cocei a cabeça – Uma onça não teria uma pata deste tamanho, teria?
– Susi, eu quero ir embora daqui! – Lila agarrou em meu braço.
– Calma, Lila! – passei a mão em seu cabelo – Seja lá o que for isso, não está por perto. Algo deste tamanho não fica tão bem escondido.
– Você já a viu alguma vez? – Richard estava muito tenso.
– Não, mas...
– Mas nada! – ele me interrompeu – Cada vez acredito mais que algo fora do comum acontece nesta ilha.
– Você diz algo sobrenatural? – Lila apertou ainda mais o meu braço.
– Sem dúvida! – Richard falou quase sussurrando.
– Eu não quero ficar mais aqui! – Lila berrou.
– Parem vocês dois! – berrei mais alto – Não existe nada de sobrenatural por aqui. Deve ser apenas um animal grande.
– Um animal bem grande! – Richard insistia em nos aterrorizar – Seja lá o que for que fez essa pegada, é perigoso e está à solta!
– Rich tem razão! – Lila finalmente soltou meu braço – Precisamos sair daqui!
– E ir para onde? – acabei sendo rude – Vocês já repararam que estamos em uma ilha? Não há para onde ir.
– E vamos ficar a mercê deste bicho? – Richard perguntou.
– Infelizmente não temos muito que fazer. – tentei ser o mais realista possível – A única coisa que nos cabe agora é ficarmos bem atentos a todo lugar. A Lila e eu passamos dois anos aqui e essa coisa sempre esteve por perto. Não estamos as duas muito bem? Então? Talvez estejam fazendo tempestade em copo d’água.
– De qualquer forma é melhor nos cuidarmos! – Richard se afastou devagar da grande pegada.
– Sim, concordo em ficarmos atentos. – falei tentando parecer que tinha tudo sob controle – Mas sem apavoramento. Não vai adiantar de nada perder a cabeça agora.
– Acho que você tem razão. – Richard baixou a guarda – Vigiar sem se apavorar. Se vocês estão dizendo que essa coisa sempre esteve aqui e nunca fez nada, eu vou acreditar.
– Muito bem! – bati as mãos como quem quisesse trazer todos de volta à realidade – Vamos seguir com o que estava planejado?
–E o que estava planejado? – Richard perguntou. Já começava a achar que inteligência não era muito o forte desse garoto.
– A busca dos destroços do avião! – bati na cabeça dele – Você é tapado assim mesmo ou só se faz?
– Com tanta coisa acontecendo e você querendo que eu me lembre de expedição aos destroços do jatinho? – Richard ficou nervoso – Ah vai tomar no...
– Olha! – tapei a boca dele – E ainda reclama de mim!
– No canto esquerdo do seu olho direito! – Richard se acalmou soltando o ar.
Não vou negar que ter uma prova de que nossas suspeitas sobre a onça eram reais mexeu comigo. Por mais que eu tentasse racionalizar essa situação, era claro que algo fora do comum estava acontecendo. Mesmo que eu quisesse negar. Não era possível que um animal tão grande como esse nunca tenha sido visto nem por mim e nem por Lila antes. Mas passamos dois anos percebendo que algo rondava a ilha e nunca ficamos em perigo – ao menos não por isso. Talvez se não cruzássemos o caminho dela, ela também não tentaria nada contra a gente.
Começamos a subir a montanha. O avião, ou melhor, o jatinho estava bem no alto. A sorte é que a montanha não era tão difícil de subir. Mas parecia que o Richard não estava muito acostumado com esse tipo de exercício físico.
– Então, marrento? – provoquei – Já cansou?
– Vai rindo! – ele apoiou as mãos em suas pernas e respirou fundo – Espere até eu me recuperar de todo esse tumulto que minha vida se transformou.
– Vai ficar usando isso como desculpa agora? – continuei provocando.
– Pelo menos por hoje, sim, vou usar.
– Mas é um mimadinho mesmo. – revirei os olhos.
– Susi, qual é a sua? – ele parou a caminhada – Você gosta de me ver nervoso? E algum tipo de fetiche? Parece até uma criança do primário quando se apaixona pela primeira vez.
– Para! – por algum motivo senti meu rosto corar.
– O que foi? – agora ele que me provocava – Acertei em cheio? Não vai me dizer que já está apaixonada. Tem certeza que está há apenas dois anos nessa ilha? Ou você nunca esteve tanto tempo na presença de um homem bonito?
– Você não acha que é convencido demais para quem acabou de chegar? – fechei a cara – Você não sabe absolutamente nada sobre mim e nem sobre o que eu passei.
– Pois eu digo o mesmo. Mas tudo bem, eu ultrapassei os limites. – ele levantou as mãos – Mas você bem que podia pegar mais leve comigo. Eu não acho que eu esteja fazendo nada pra merecer esse tratamento. Não acha, Lila?
– Sim! Que dizer... Não... Quer dizer... Eu... Eu acho que você é legal. – Lila sorriu meio sem graça. E eu não estava gostando nenhum pouco disso.
– Você está muito calada. – Richard fez uma boa observação – O que aconteceu?
– Na-nada. – ela gaguejou – Eu... Eu... Eu só estou com um pouco de...
– De medo? – Richard tentou completar a frase.
– Isso! – Lila continuava sorrindo sem jeito – Um pouco de medo daquela pegada.
– Eu também fiquei bem assustado. – Richard passou a mão no ombro de Lila.
– Vem cá – realmente não estava gostando nenhum pouco desse silêncio da Lila – Você falou que não sei nada de você. Então vamos falar um pouco de você. O que estava fazendo sozinho naquele avião?
– Já disse que aquele avião na verdade era um jatinho. – ele corrigiu – Por isso, pelo que vi da explosão, não coloco muita fé de que tenha se salvado alguma coisa. E não, eu não estava sozinho.
– Não me diga! – Lila gritou. Estava voltando a ser ela mesma – Não quero mais subir. Não sei se iria conseguir ver um corpo carbonizado de novo!
– Calma! – Richard sorriu – Essa pessoa não estava mais no jatinho quando aconteceu a explosão. Pulou primeiro.
– Não me diga! – agora eu que gritei – Eu devo ter feito algo hediondo em outras vidas pra merecer isso. Existe mais um tarado perdido por essas matas?
– Talvez sim, talvez não. – ele respondeu com desdém.
– E você não está preocupado com seu amigo? – perguntei estranhando a falta de interesse de Richard – Desde que chegou você nem tocou no nome desta pessoa.
– E que pra mim não faz diferença. – Richard parecia não estar gostando da ideia – Desde que esteja longe de mim.
– O que houve? – insisti – Brigou com seu amigo?
– Ela não era minha amiga. – ele arqueou a sobrancelha.
– Então é ela? – estava surpresa.
– Ela? Cof, cof, cof... – Lila começou a ter uma crise de tosse.
– O que foi, Lila? – Richard se aproximou de Lila.
– Nada. Acho que engoli um mosquito. – ela estava mentindo. Podia ver em seus olhos. E não estava gostando nenhum pouco mesmo disso.
– Voltando ao que estávamos conversando – puxei a atenção de volta para Richard – você não está nenhum pouco preocupado com essa sua amiga.
– Já disse que ela não era minha amiga! – desta vez Richard ficou bravo.
– Olha, isso pra mim está com cara de mentira. – falei – Até por que se realmente tivesse mais alguém com você, mesmo que não fosse sua amiga, você teria o mínimo de consideração, não é? A menos que você seja um monstro psicopata.
– Susi! – Lila quase gritou – Não fale assim. Nós iremos achar a... pessoa que estava com você. Não se preocupe.
– Isso é mentira dele, Lila. – eu realmente não estava acreditando nessa história – Ele mente na cara dura.
– Eu não estou mentindo. – Richard falou baixo – E vamos parar por aqui. Eu não quero falar neste assunto.
– Mas se você vai conviver conosco terá que falar! – entrei na frente dele – Não queremos viver com um completo estranho.
– Mas não foi você mesma que fez questão de dizer que não me quer por perto? – ele bufou – Então me deixe em paz e vamos seguir logo para essa porcaria de avião.
– Mas não era um jatinho? – tive que provocar.
– Mas é você, Susi? – Richard parecia realmente nervoso – Não quer conviver com um estranho, mas eu sou obrigado a conviver com alguém que eu nunca vi na vida e só fez me agredir desde que cheguei. E talvez você tenha razão. É melhor cada um seguir seu rumo. Vamos logo pro jatinho.
Após o surto de Richard, ninguém teve coragem de pronunciar uma palavra. Nem mesmo a Lila. Só não era um silêncio total devido aos sons da mata, mas o clima havia ficado tão pesado que tive a sensação de ter ficado surda.
Chegamos aos destroços do avião, digo, do jatinho. Era impossível conter a decepção. De longe era possível ver que poucas coisas seriam reaproveitadas.
– Não disse! – Richard quebrou o silêncio – Não tem nada aqui para resgatar.
– Vamos pelo menos conferir melhor? – insisti.
– Olha! – Lila gritou – Este lado do avião não está tão danificado assim.
– É um jatinho! – Richard e eu falamos juntos.
– E faz alguma diferença? – Lila fez uma careta – Olha só pra isso! Essa poltrona aqui ainda dá para ser usada.
– Mas está furada! – Richard reclamou.
– Não tinha reparado! – fui bem ácida – Você está realmente achando que isso aqui é uma colônia de férias? Nesta ilha nós nos viramos com o que temos. E isso é o que temos.
– Acha que dá para fazer alguma coisa com essa porta? – Lila perguntou apontando para uma porta que estava jogada no chão.
– Vamos separar! – respondi.
– Olha! – Lila parecia um pinto no lixo – Achei um copo!
– Mas está quebrado! – Richard reclamou novamente – Vocês não vão me fazer usar um copo quebrado. Posso furar minha boca com isso!
– Você bem que merecia! – fechei o rosto – Mas não se preocupe. Tenho muitas ferramentas nessa caixinha aqui. A gente serra essa ponta quebrada e vê no que pode ser útil.
– Vocês querem levar todo o jatinho? – Richard parecia espantado.
– Tudo o que der para ser reaproveitado! – respondi – Apesar de não ter tanta coisa assim para se levar.
– E vai dar para levar tudo isso de uma vez? – ele parecia estar suando frio. Provavelmente já sabia a resposta.
– E quem disse que vamos levar tudo de uma vez? – sorri maliciosamente – Acordamos cedo para isso, meu bem!
– Mas você não acha perigoso ficar subindo e descendo a montanha com esse monte de tralha? – Richard estava realmente assustado com a possibilidade.
– Olha o que eu encontrei! – Lila gritou novamente. Mas desta vez o grito dela não parecia de felicidade.
– De novo! – Richard também gritou.
Novamente aquela grande pegada havia aparecido. Era estranho que em dois anos nem eu e nem a Lila nunca tivéssemos encontrado aquelas pegadas. Isso estava começando a me assustar.
– Vamos levar tudo o que der de uma vez! – falei.
– Você está doida? – Richard gritou mais alto que de costume. Isso acabou fazendo sua voz falhar um pouco.
– Mas você não disse que isso não era nada? – Lila começava a tremer.
– E ainda acho que não estamos correndo todo esse risco que você e o Richard estão pintando. – tentei manter a calma – Mas de qualquer maneira, seja lá o que isso for, é melhor não ficarmos de bobeira. Se não cruzarmos o caminho dela, ela não faz nada contra a gente.
Não deu para levar muita coisa. Além da poltrona e da porta, só levamos mais alguns pedaços do jatinho que poderiam servir para construir a cabana do Richard. Amarramos tudo o que deu com a corda que tinha trazido em minha maleta de ferramentas. A corda não era tão grande, então muita coisa a gente teve que ir apoiando na "tralha amarrada" e tomando cuidado para não cair na descida. Demoramos mais que o terço do tempo que levamos para subir, mas pelo menos já tínhamos algo para começar a casa do Richard.
– O que iremos comer? – foi a primeira coisa que Richard perguntou quando chegamos – Estou com muita fome.
– Todos nós estamos! – fiz questão de ser grossa – E isso tudo é culpa sua!
– Mas o que foi que eu fiz? – ele perguntou fingindo confusão.
– Você caiu nesta ilha! – bufei – Só pra atrapalhar nossas vidas.
– Olhe aqui – ele ficou nervoso – eu não planejei me acidentar!
– Você está sendo muito dura com o Rich! – Lila interveio a favor dele – Você não é assim, Susi. Pelo menos não tão inflexível igual você está sendo.
Respirei fundo. Eu realmente não era assim. Não conseguia entender bem o que estava acontecendo. Eu sabia que estava sendo estúpida com o Richard, que ele era tão vítima quanto nós. Mas toda vez que eu olho para ele algo acontece. E o que me dava mais medo era que no fundo, bem lá no fundo, eu desconfiava do que estava acontecendo comigo. E não estava gostando nenhum pouco disso.
– Desculpa. – tive que ser justa – Eu estou um pouco nervosa. É muita novidade. Não estou mais acostumada a ter a minha rotina interrompida por tantos acontecimentos. E muito menos em conviver com outra pessoa que não seja a Lila. Acho que isso pirou a minha cabeça.
– Tudo bem! – Richard respirou fundo – Eu te entendo. Também não está sendo fácil para mim. Mas acho que podemos tentar conviver pacificamente, não é?
– Amigos? – estendi a mão.
– Amigos! – ele apertou.
– Muito bem! – Lila bateu palmas – Agora estão agindo como duas pessoas civilizadas!
– Está nos chamando de selvagens? – brinquei.
– Deixa de ser boba! – Lila sorriu – Agora precisamos encontrar um lugar para construir a casa do Rich. E mais materiais também, afinal, só isso não vai dar para construir muita coisa.
– Um quarto e uma cozinha já estão de bom tamanho para ele! – provoquei um pouquinho. Só para não perder o hábito.
– Engraçadinha! – Richard fez uma careta – Mas desta vez você está certa. Não preciso de mais que isso.
– Nossa! – fiquei surpresa – Podia jurar que você iria querer uma casa triplex.
– Está me achando com cara de riquinho mimado? – Richard perguntou.
– Mas não é o seu apelido, Rich? – lembrei-o do fato.
– Pois pensou errado! – ele sorriu – Não sou nenhum riquinho.
– Então o que estava fazendo com um jatinho? – desta vez foi Lila quem perguntou. Algumas vezes ela até que raciocinava bem.
– Isso é uma história que eu não quero contar. – Richard fechou a cara de repente. Pelo visto havia algo de muito grave. Como eu desconfiava.
– Richard – tentei ser o mais séria e calma possível – nós vamos conviver juntos por um bom tempo. Talvez pelo resto das nossas vidas. Seria bom se você começasse a revelar um pouco da sua história para a gente.
– Se é assim então prefiro ficar bem longe de vocês! – ele voltou a se irritar.
– Qual é Richard? – estranhei – O que de tão grave pode ter sido? Por acaso roubou o jatinho? Matou alguém? O que de tão terrível você cometeu que não pode nos contar.
– Não é nada disso! – ele berrou – E você deixa de ser tão intrometida!
– Mas você é um estúpido mesmo! – gritei – Não sei como pude imaginar que poderíamos nos dar bem.
– Gente – Lila começou – não vamos voltar para a estaca zero. Vocês já tinham superado isso.
– Não, Lila! – falei alto – Nós não vamos voltar para a estaca zero. Nós nem saímos dela!
– Vamos fazer o seguinte – Lila tentou amenizar a situação – ninguém toca mais nesse assunto! Quando o Rich quiser contar, se ele quiser contar, então ele conta. Eu vou preparar alguma coisa para comermos.
– Pois prepare só para vocês duas. – Richard foi igual uma bala em direção à porta – Eu perdi a fome.
– Viu o que você fez! – Lila estava nervosa. De um jeito que eu só tinha visto em pouquíssimas vezes.
– Lila eu só acho que...
– Não, Susi! – ela me cortou – Chega desse assunto.
– Tudo bem! – suspirei – Não vou deixar que um completo estranho estrague a nossa amizade.
– Eu também não quero que isso aconteça. – Lila se aproximou de mim – E nem deixaria. Mas vamos com calma. Ele está em estado de choque. Você sabe muito bem o que é perder toda a sua vida de repente.
– Eu sei, Lila – também me acheguei – mas você não acha essa reação do Richard um pouco exagerada? E essa moça que estava com ele? Quem era? Se ele não era nenhum riquinho, o que estava fazendo no jatinho?
– Será que isso realmente importa? – Lila já estava mais calma – Nas condições que estamos, bem, se ele era um ladrão ou coisa parecida, com a gente ele não vai ter muito que roubar.
– Não sei não – ainda estava desconfiada – Mas tem algo estranho nessa história! E eu vou descobrir!
Passamos o restante do dia sem nos falarmos. Na verdade ninguém abriu a boca para falar absolutamente nada com ninguém. Mas, tirando o fato da minha irmã estar zangada comigo, não ouvir a voz do Richard não me fez nenhuma falta. Na realidade foi algo até conveniente. Não queria falar com ele mesmo. Estava fazendo até bem para a minha saúde, inclusive. Todas as vezes que o Richard chegava perto eu meio que tinha um ataque do coração de tanta raiva. Como pode uma pessoa causar uma emoção tão forte assim? Seria ele um tipo de demônio? Sei lá, tanto tempo nessa ilha. Vai que eu e a Lila havíamos morrido e estávamos no inferno. Mas os sentimentos que corriam em meu corpo eram vivos demais para serem apenas truques de um demônio. E eu não sabia o que era pior. Na manhã seguinte fiquei surpresa de ver que Richard já estava acordado. Ele estava juntando um amontoado de galhos e folhas e fazendo a maior bagunça. T
Minha perna ainda doía, mas já estava bem melhor. Assim que consegui ficar de pé não quis esperar nenhum segundo para seguir em frente. Não sabia exatamente para onde estávamos indo, só sabia que precisávamos continuar. Lila precisava que continuássemos. – E então, capitã? – Richard tentou soar carinhoso. Mas não sei se gostei. – Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui? O meu coração se aqueceu e se espantou neste momento. Era um trecho de Alice no País das Maravilhas que Richard estava citando ou apenas uma coincidência? – Isso depende bastante de onde você quer chegar. – continuei o diálogo do livro. – O lugar não importa muito.
– Quem ou o que é Tadita? – perguntei. – Tajita – Savite me corrigiu. Novamente – Ela é a líder da tribo Rambek. – A onça é a líder de uma tribo? – não sei se tinha entendido. – Não! – Savite fez um sinal de desdém com a mão – Não tem nada disso. As patas são de Giba, a jaguar gigante que Tajita usa para montar. – Então não tem onça? – perguntei. – Susi? – Richard se espantou – Por essa eu não esperava. – O que foi que eu fiz? – perguntei. – Jaguar e onça são a mesma coisa! – Richard respondeu com uma cara péssima. – Agora eu que não entendo! – Savite coçou a cabeça.
Eu achei que estava tudo perdido quando a passagem se fechou. Lila iria ficar presa naquele universo paralelo estranho e eu ficaria aqui, presa, com o Richard para sempre. Nada parecia muito justo naquele momento. Mas parece que eu não tinha muitas escolhas além de aceitar. – Eu ainda não sei se foi uma boa ideia ter voltado para cá. – Richard falou andando de um lado para o outro – Se acontecer alguma coisa com a Lila? – Pensa que eu não estou preocupada com isso? – respondi seca – Mas o que poderia ter sido feito? Você viu a guerra que foi instaurada naquele lugar. O que nós poderíamos fazer? – Não sei, mas não acho certo. Voltar para cá parece voltar à estaca zero. – Eu também tenho essa sensação, mas não nos foi dado muitas escolhas, não é?
Não sei se era a minha ansiedade, mas o caminho para a passagem que nos levou para o outro lado da ilha na primeira vez parecia mais distante do que nunca. Meu corpo doía e eu estava física e mentalmente exausta. Mas sabia que não poderia parar. Já tinha passado por situações de grande pressão desde que cheguei a essa ilha. E por mais que tudo o que estava acontecendo fosse extremamente maior do que qualquer outra coisa que eu já tivesse vivido, eu não iria deixar isso me abalar. Pelo menos não mais do que eu já estava. Eu precisava focar na minha missão: encontrar Lila. Chegamos ao local da passagem. Como da primeira vez, a passagem estava escondida. Não demorei em retirar as pedras e plantas que cobriam a passagem. Mas algo não estava certo naquilo. Na verdade, não fazia o menor sentido – não que isso fosse alguma novidade. Parece que o lógico agora era nada ter lógica nenhuma.
Continuamos seguindo em silêncio. O som do rugido não voltou a aparecer, mas preferi continuar sem fazer barulho. O isqueiro eu acabei guardando e resolvi acender novamente a tocha. Nosso caminho não parecia ter mudado muito e pelo pouco que consegui enxergar, ainda tínhamos muito chão pela frente até chegar em onde quer que aquele caminho desse. Estranhamente percebi que o sol começava a nascer outra vez. Tudo bem que eu estava meio perdida em relação ao tempo e espaço, mas isso já era ridículo. Não deveria ter nem três horas desde que o sol se pôs, como ele já poderia estar nascendo? – Nós estamos andando faz quanto tempo? – Richard pelo visto também estava estranhando. – Não o suficiente para a noite já ter acabado. – respondi séria. – Tem certeza? – Richard parec
Não demorou muito para que o cenário mudasse mais uma vez. Estávamos agora dentro de uma selva de verdade. As árvores e flores em perfeita harmonia foram trocadas por um emaranhado caótico de plantas selvagens, cipó e bichos correndo no topo das árvores gigantes. E novamente era como se tudo sempre estivesse lá. E o mais incrível é que eu nem percebi o momento em que tudo mudou. Eu simplesmente estava andando e, quando olhei ao redor, já não era mais o cenário que eu estava andando antes. Olhei para Richard e ele devolveu o olhar como quem dizia “desisti de entender faz tempo”.O som da música continuava rondando todo o ambiente e estava ficando cada vez mais alto. Por alguns instantes eu cheguei a pensar que já estávamos dentro da tribo, no meio do povo, tamanho era a sensaç&a
Fui levada até um quarto que ficava no andar abaixo do grande salão em que o Rayem se encontrava. Assim como tudo dentro daquela pirâmide, o quarto era um exagero em todos os aspectos. Todo revestido de ouro, o quarto deveria ter o tamanho de uma casa. Ele tinha uma cama que caberia tranquilamente quatro pessoas e ainda sobraria espaço, além de um tipo de guarda-roupa sem porta que só tinha dois modelos: a toga e o collat. Na parede tinha uma imensa tapeçaria que retratava uma guerra - provavelmente a guerra contra os Karvals - e espalhados por vários cantos, pequenas réplicas da estátua que estava exposta na entrada da pirâmide.Os dois Rambeks me deixaram no quarto e saíram. Eu fiquei por algum tempo paralisada, apenas observando, até que como em um passe de mágica eu voltei a me sentir no controle do meu corp