Inicio / Fantasía / Do Outro Lado da Ilha - Livro I / Capítulo 2: Isso não é A Lagoa Azul não, viu?!
Capítulo 2: Isso não é A Lagoa Azul não, viu?!

ormi quase como uma pedra. Se não fosse os pesadelos. Mas isso já é comum. Desde que tudo aconteceu eu nunca mais tive uma noite realmente tranquila. Mas, como eu disse, isso já era comum. O que não era comum era eu dormir até tão mais tarde. E, principalmente, acordar com um barulho tão estrondoso quanto o que tinha acabado de ouvir. Era um barulho estranho vindo da parte oeste da ilha. Não era barulho de nenhum animal ou qualquer outro ruído típico da natureza. Parecia barulho de explosão. Uma grande explosão.

Sai rapidamente de casa para conferir o que tinha acontecido. Pela posição do sol, já deveria ser quase meio-dia. Eu realmente não costumo dormir tanto assim. E justo quando eu durmo, algo estranho acontece. Parecia até um aviso de que as coisas estavam prestes a mudar.

Fui em direção ao local de onde o barulho parecia ter vindo. Fiquei atenta ao meu redor. Se fosse o que eu estava pensando que era eu teria tantas coisas pra fazer. E confesso que estava com um pouco de medo. Eu já estava entrando na mata quando ouvi um barulho vindo em minha direção. Peguei uma pequena tora de madeira que estava próxima da casa e já me preparei para o ataque. O que quer que fosse estava se aproximando cada vez mais. E mais. E mais... 

– Susi? –Lila surgiu do meio da mata – Você viu o avião caindo?

Dessa vez eu respirei aliviada. Soltei a tora no chão e me aproximei de Lila tentando entender o que ela estava falando.

– Avião? – eu perguntei já me recuperando do susto.

– Eu vi tudo! – Lila parecia ter engolido uma pilha – Ele estava voando no céu e de repente começou a perder o controle e foi perdendo o controle e perdendo e perdendo e BOOM! Bateu na montanha! Será que morreu?

– Será que o que? – eu não estava entendendo direito. 

– Quem estava no avião. – Lila falava como se fosse algo muito comum – Queria saber se morreu. 

– Você viu se tinha alguém pulando do avião? – perguntei.

– Acho que não. – ela coçou a cabeça – As árvores atrapalharam um pouco minha visão. Estava tão divertido!

– Lila! – tentei tirar esse tom de brincadeira da voz da minha irmã – Você sabia que isso é muito sadismo de sua parte? Você, melhor do que ninguém, deveria saber que isso não é uma brincadeira.

– Mas eu me preocupo com a pessoa que estava naquele avião– ela fechou o rosto em uma expressão de total angústia – Eu não sou assim tão má. Mas quase não acontece nada nesta ilha.

– Pare de fazer essa cara! – dei um tapa em seu ombro – Vá conferir o que aconteceu e deixe de falar besteira.

– Credo, Susi! – Lila pôs as mãos no rosto – Ás vezes você é tão má comigo.

– Tudo bem. – revirei os olhos – Quer vir caçar, então?

– Caçar? – ela berrou – Quem agora está sendo sádica? 

– O que? – perguntei surpresa – Eu? 

– Você sim! – Lila fez cara séria, mas não convenceu – Estou aqui te contando que um avião caiu e você preocupada em caçar? Onde está seu coração? E você sabe muito bem que eu detesto ver você matando seres vivos.

– Você detesta é ter que pegar no pesado! – zombei.

– Mentira! – Lila retrucou – Eu pego no pesado todos os dias! Ou pensa que manter essa casa limpa é fácil? Mas acho que não é isso que importa no momento, não é mesmo, Susi?

Fiquei calada. No fundo eu sabia que ela tinha razão. E só estava meio assustada demais para encarar aquilo outra vez.

– Odeio ter que admitir, mas você está certa. – falei em tom de desculpas – Porém foi você quem viu o avião caindo, logo você que tem que ir conferir o que aconteceu. Estou te dando uma missão importantíssima. 

– E você não pode vir comigo? 

– Eu deveria. Mas preciso pegar aquele javali que você me fez perder ontem. Caso contrário, não teremos jantar. Sem contar que você vive reclamando que eu te trato igual criança. Então, prove que consegue fazer as coisas sozinha.

 – Mas e se eles realmente estiverem mortos? – a voz de Lila tremeu.  

– Está bem, Lila. – apertei o seu ombro – Não precisa ir até lá, mas tente sondar ao redor. Vai que tenha alguém vivo precisando de ajuda? Como disse, é sua missão agora. 

– Sim, senhora capitã! – Lila se recompôs zombando de mim batendo continências.

– Engraçadinha. – fiz uma careta.

Eu sabia que não deveria ter deixado Lila ir até lá sozinha. Mas por algum motivo eu estava apavorada – por mais que não quisesse admitir. Um avião caindo nesta ilha depois de dois anos sem nada acontecendo. Não sei o que deu em mim, mas eu travei. Tentei encarar aquilo como uma coisa corriqueira e nem sei dizer o motivo. Ou talvez eu soubesse. E isso era apavorante. Passei tanto tempo presa aqui esperando o dia de ser resgatada e agora que poderia ter tido essa chance, o possível resgate está tão preso a essa ilha quanto Lila e eu. E se quem estivesse naquele avião tivesse realmente morrido. Não me parecia justo.

Tentei afastar os pensamentos e ir caçar. Por mais que esse acontecimento estivesse me abalando o bastante para tirar minha concentração. Mas para minha sorte, consegui recuperar um pouco do foco assim que reencontrei o javali de ontem. No mesmo lugar e dormindo da mesma forma. Desta vez ele não iria escapar. 

– Um... dois... três...

Sucesso!

Voltei para casa com o javali nas costas. Por alguns instantes eu consegui até esquecer o que tinha acontecido mais cedo, mas logo a imagem da montanha me fez lembrar que tinha algo mais acontecendo e que, mais cedo ou mais tarde, eu teria que encarar aquilo. No caso mais tarde mesmo.

Ouvi barulhos de passos vindo de dentro da casa. No princípio achei que fosse Lila, mas os passos estavam pesados demais para serem os dela. Fui me aproximando devagar da casa e o encontrei. Um rapaz!

Ele era um rapaz bem jovem. Tinha cara de ter uns 23 anos, a mesma idade que a minha. Apesar de estar com uma típica jaqueta de couro de aviador um pouco larga demais, ele parecia ter belos braços. Seu cabelo preto estava com aquele corte de exército, bem baixinho, mas duvido muito que ele tenha servido. Mesmo aparentando ser forte, tinha algo nele que não me fazia crer muito em sua coragem. Seus olhos castanhos deixavam uma mensagem: Estou disponível! E prestando atenção neles que vi que o rapaz também não tirava os olhos de mim. Que tipo de pensamento malicioso não devia estar passando por aquela cabeça?

– Quem é você? – perguntei sem ação.

– Você construiu tudo isso? – ele rebateu com uma pergunta sem lógica.

– Sim, mas qual a surpresa? – respondi um pouco assustada. Ainda não sabia que tipo de garoto ele era.

– Não acredito que uma mulher tenha conseguido construir todo esse lugar! – não acreditei que ele havia dito isso na minha cara. Já começava a detestar esse rapaz.

– Tudo bem, você deve ser o dono daquele avião caído lá em cima. – coloquei o javali no chão. Já via que teria que ser dura com esse rapaz – Se realmente pretende ficar aqui já fique avisado – me aproximei – Fique longe da minha casa! Essa é a minha área, meu território. Não cace por aqui e tente não construir sua cabana por perto. Eu não sou sua amiga e nem pretendo ser. E, principalmente, nem pense em tentar alguma coisa comigo. Vivo muito bem nesta ilha há dois anos. Alguma pergunta?

– Susi? – Lila quase me mata de susto – Com quem está falando?

– É o dono do avião! – respondi sem perder o tom de autoridade suprema daquele lugar. Precisava ter certeza que ele iria embora e que teria medo de mim.

– Achei que não tinha sobrevivido. – Lila se aproximou com os dentes arreganhados – Eu vi o momento em que o avião estava caindo. Que espetáculo! Sabe, não temos muita coisa interessante aqui. 

– Lila! – estava ficando furiosa – Cale a boca!

– Desculpe. – Lila coçou a cabeça. Ela já estava percebendo o que eu pretendia fazer. – Pra você não deve ter sido um espetáculo. Deve ter sido apavorante. 

– Lila! – dei um leve beliscão nela.

O rapaz ficou olhando mais um pouco para nós duas. Ele parecia bem intrigado. Mantive meu olhar firme, tentando o máximo possível demonstrar que ele não era bem-vindo entre nós.

– Vocês duas são?... 

– Irmãs! – não tentei esconder minha fúria – Nós duas somos irmãs!

– Que sorte você falar a nossa língua! – Lila parecia nem se importar com a insinuação – Achei que teria que treinar o meu inglês.

– Desculpe, mas é que eu ainda estou... 

– Lost? – Lila bateu palmas – Are you lost? Right? 

– Lila, ele não fala inglês. – tentei afastar Lila de perto desse rapaz. Não sabia o que ele queria, mas não estava gostando. 

– Eu falo inglês, mas acho que isso não importa muito. – ele ficava nós fitando de cima a baixo. De uma maneira muito desconfortável.

– De fato não importa. – fui dura – E quer parar de ficar nos olhando como se fossemos duas extraterrestres.

– Acho que ele está impressionado com a nossa beleza. – Lila colocou a mão na cintura. Se não conhecesse bem a irmã que tenho, iria achar que ela estava dando em cima desse desconhecido.

– Muito bem! – voltei ao meu tom autoritário – Regras apresentadas. Pode ir embora e procurar seu rumo. Talvez, se eu estiver de bom humor, posso até te ajudar a construir sua cabana, mas apenas para que fique o mais longe possível da nossa área.

– Mas ele não vai ficar com a gente? – Lila tinha que fazer essa pergunta. Só podia ser provocação.

– É claro que não! – berrei para que entendesse bem o recado.

– Mas já está anoitecendo. – Lila se aproximou dele. Ela estava disposta a me convencer – E até ele construir uma cabana vai levar muito tempo.  Susi? Susana Silvia? Você vai deixar esse pobre rapaz ficar ao relento? E se ele for pego por algum animal. Por aquele animal?

– Seria uma grande sorte nossa. –sorri.

– Que feio! – Lila agora se aproximava de mim – Você não é assim. Quer dizer, você até é assim. Malvada! Mas não precisa ser sempre.

– Espere! – ele interrompeu – Ninguém me perguntou se eu quero ficar.

– Muito bem, ele não quer! – agora ele tinha me ofendido – Ele é um ingrato. Viu como tinha razão em não me importar com ele. Não vou nem ajudar a construir sua cabana.

– Espere! – ele falou um pouco mais alto – Eu não disse que não queria ficar.

– Mas você não vai ficar – gritei. Agora era uma questão de honra – quem disse que você iria ficar?

– Que ótimo! – ele bufou feito um cavalo.

– Olhe aqui, eu decido! – Lila interveio.

– Você não decide nada! – estava ficando nervosa – E agora leve esse javali para dentro antes que estrague.

– Credo, Susi! – Lila foi pegar o javali – Você está muito estranha! O que custa ajudar? Já esqueceu de como foi pra gente?

Eu não estava acreditando no que eu estava prestes a dizer. Sabia que iria me arrepender depois, mas no fundo eu também sabia que não teria outra escolha. Por mais imprestável que ele parecesse ser, era um ser humano. Não é como se ele tivesse jogado o avião dele nessa ilha de propósito, só pra me atormentar. Apesar de tudo, ele também estava preso aqui e eu não podia deixá-lo à própria sorte.

– Tudo bem. – suspirei fundo – Eu deixo você ficar!

– Yupi! – Lila comemorou de dentro de casa.

– Mas só até sua cabana ficar pronta. – já fui estabelecendo as regras – E não faça nenhuma gracinha! De nenhum tipo!

– Gracinha? – ele devia estar se fazendo de besta.

– Você sabe muito bem do que estou falando. – fiz uma cara feia.

– Está tendo uma visão equivocada, Susi. – ele sorriu.

– E você é muito engraçadinho, seu... – só então me dei conta de que não sabia o seu nome – Como você se chama mesmo?

– Richard – ele sorriu – Mas todos me chamam de Rich.

– Rich? – achei graça – Fala sério? Que ridículo!

– Não sei o que tem de ridículo. – ele pareceu se ofender.

– Tudo bem, Rich, vamos entrar! – não pude evitar um risinho.

Ele entrou em casa como se já conhecesse aquele lugar. Não duvidaria nada se, enquanto estava caçando, ele não tivesse vasculhado tudo. Lila é tão boba que é capaz de nem ter reparado.

– Não temos um quarto extra. – falei – E também não temos nenhum colchão sobrando.

– E onde você está pensando em me colocar para dormir? – ele perguntou meio sem graça.

– No chão da sala! – fui direta – Onde mais poderia dormir?

– Mas neste chão duro? – ele fez uma cara de espanto.

– Richard – coloquei a mão em seu ombro – eu dormi no chão duro, ao relento, com chuvas à noite e sol forte pela manhã durante um longo mês. Formigas e mosquitos do tamanho de besouros me picaram em lugares que você nem imagina. Isso sem contar nos dias em que acordava com uma cobra rastejando ao meu lado. Você realmente quer reclamar de um chãozinho duro?

– Caramba! – ele arregalou os olhos.

– Pois bem. – continuei – Agradeça por ao menos ter um teto.

– Está bem! – ele levantou as mãos em sinal de rendição – Eu já entendi. Eu vou me virar sozinho. Não precisa ficar brava. Sou eu por mim mesmo, certo?

– Não– tentei acalmá-lo – Eu e a Lila iremos ajudar você em algumas coisas. Também não somos esses monstros.

– Então por quê? – Rich perguntava com um tom de carência.

– Por que o que? – rebati a pergunta.

– Por que toda essa resistência? Nós nem nos conhecemos e você está me tratando como se eu fosse um prisioneiro de guerra ou um criminoso hediondo.

– Você é um homem. – fui franca – Eu e a Lila somos mulheres. Isso não é A Lagoa Azul não, viu?! E nós não somos selvagens que cresceram na selva e não conhecem nada da vida. Por isso eu já deixo avisado: Não tente nada com nenhuma de nós ou terei que tomar medidas drásticas.

– Que tipo de medida drástica? – ele perguntou assustado. Respondi imitando uma tesoura com os dedos. – Não posso dizer que estou surpreso. – Rich respirou fundo.

– Mas vamos aproveitar os últimos minutos de sol e pegar algumas folhas secas. – disse em um tom mais ameno. Acho que já podia deixar um pouco meu alter ego de capitã.

– Folhas secas para o que? – ele perguntou bem confuso.

– Para o seu colchão! – respondi – Amanhã nós iremos ver como estão os destroços do seu avião. Então acorde cedo. Teremos uma subida e tanto.

– Jatinho, não avião! – ele continuava confuso. 

– Avião, jatinho... Que seja! – revirei os olhos – Amanhã nós iremos ver como estão os destroços de qualquer jeito. 

– E para que ver destroços do jatinho?

– Você nunca brincou de perdidos na selva quando era criança? – estava surpresa com sua burrice – Nós estamos presos aqui. Tudo o que puder ser reaproveitado deve ser reaproveitado! Acho que você não é muito bom de raciocínio. 

– Será que você não sabe dar uma resposta sem ser ríspida ou irônica? 

– Por quê? – não conseguia evitar – O rapazote não está acostumado com as pessoas não te paparicando o tempo todo, Senhor Rich?

– Não é isso. – Richard se defendeu – Só continuo achando desnecessário toda essa agressividade. Independente de eu ficar perto ou longe de você, acho que não precisamos ser tão agressivos. 

– Então comece a se situar melhor das coisas! – tentei não ser grossa. 

– Até algumas horas atrás eu estava pendurado em uma árvore tentando me livrar do paraquedas que ficou preso enquanto via meu jatinho explodir. – Richard falou mais sério – Acho que estou me situando até que rápido demais, não acha?

– Pode até ser. – tive que admitir – Mas tente reorganizar logo suas ideias. De gente inútil eu já tenho a Lila.

– Eu ouvi isso! – Lila gritou da cozinha.

– Que bom! – respondi sentada no nosso sofá improvisado.

– Vocês duas são irmãs mesmo? – Rich insistia na pergunta.

– Não acredito que você está pensando que...

– Não! – ele me interrompeu – É que vocês duas são bem diferentes.

– Nem tanto. – minha voz quase falhou – O que poderia ser tão diferente em nós duas?

– A Lila tem o nariz bem arrebitado, já o seu é mais redondinho. O cabelo dela é lisinho, o seu já é um pouco mais cacheado, só se parecem na cor. É castanho escuro ou preto? Eu sempre confundo.

– É preto. Mas e daí? – mexi os ombros – Eu puxei mais o lado do meu pai.

– Tem também as roupas. – ele ficou vermelho – A Lila parece ser a mais vaidosa. Foi ela quem fez aquele vestido?

– Foi! – respondi – Pegou todos os retalhos cor de rosa que encontrou. Parece uma fantasia de festa junina.

– Parece mesmo. – ele continuava vermelho. Não estava entendendo.

– Você está corando? – perguntei.

Só então que eu finalmente me toquei. Eu estava usando uma camisa branca larga e nada mais. Nada. Mais.

– Seu tarado! – dei um tapa na cara dele – Que ódio, que ódio, que ódio! Desde quando você está me olhando?

– Para ser bem honesto – ele protegia o rosto – desde que você se sentou.

– Cretino! – estava furiosa. 

– Mas não foi minha culpa! – ele levantou as mãos – Não era como se eu estivesse olhando, mas não tinha como não ver. 

– Seu nojento. – tentei dar um tapa nele, mas ele desviou – Você poderia muito bem ter olhado para outro lado. Tarado cretino! Some de perto de mim!

– E as folhas secas que íamos pegar? – ele provocou.

– Vá pegar sozinho! – berrei – E aproveita e enfia elas no...

– Olha! – ele continuava provocando.

– No seu nariz! – tentei me acalmar – Seu pervertido!

Subi para o meu quarto e procurei algo para vestir. Estava morrendo de raiva. Mas morrendo de raiva mesmo. Dois anos tendo a liberdade de andar como bem entendo, para agora ter que vigiar o que visto por conta de um tarado. E ele nem tentou disfarçar.

As minhas roupas sempre foram bem... Confortáveis. Estava difícil achar algo que pudesse tapar tudo o que tem que tapar em qualquer posição que eu me encontre. Cheguei a cogitar as roupas da Lila, mas apesar de ainda estar em forma, a Lila era bem mais magra que eu. No fim da tarde eu acabei conseguindo encontrar uma calça marrom. Era do meu pai. Ficou um pouquinho folgada em mim, mas apertei bem o cinto e acabou servindo. Foi até melhor ela ser um pouco larga, assim não marcava o meu corpo. 

– Essa mudança toda foi por minha causa? – Richard perguntou debochado.

– Deixe de ser engraçadinho! – fiz cara de poucos amigos.

– Não precisa se preocupar tanto assim comigo. – ele sorria – Eu sou um cara legal. Não sou um tarado.

– Claro que não. – ironizei.

– O jantar está na mesa! – Lila chamou da cozinha.

– Já estou indo. – respondi – E as folhas secas?

– A Lila me ajudou a caçar algumas.

– Caçar? – tive que rir – Folhas secas? E elas não te atacaram?

– Sabia que para uma mulher turrona você até que faz muitas piadinhas? – ele fez careta – Acho que no fundo deve ser uma manteiga derretida, não é? 

– E você deve ser um grande filho da...

– O jantar vai esfriar! – Lila apareceu na sala. 

– Bem na hora! – Richard riu – E traga um sabão para sua irmã. Pelo visto ele gosta de falar umas palavras bem sujas.

– Vou te mostrar as palavras sujas rapidinho! – resmunguei.

– Rich – Lila já estava íntima dele – Eu já arrumei o lençol para amarrar com as folhas. Não vai ser grande coisa, mas é melhor que o chão duro.

– Deve ser! – ele sorriu.

– Agora vamos jantar? – Lila intimou a todos. 

– Vamos logo comer! – bufei como se isso pudesse espantar a raiva. 

– Usando as calças do papai, Susi? – Lila segurou o riso. 

– Parece que esse será o meu novo traje de agora em diante. – tentei segurar o sarcasmo – Agora que temos um... Uma pessoa um tanto observadora no nosso meio.

– Veja – Richard começou a se explicar – Eu não tenho culpa se sua irmã gosta de andar quase nua pela floresta a fora.

– Susi, eu já te falei que o fato de estarmos perdidas aqui não quer dizer que devemos nos transformar em selvagens.

– Selvagens? – achei graça – Está bem! Para mim já chega.

– Ela está sempre nervosinha assim? – Richard não parava de debochar.

– Com o tempo você se acostuma! – Lila deu dois tapinhas nas costas de Richard – Quem sabe você até não fique aqui de vez.

– Mas nunca! – falei um pouco alto demais – Lila, uma coisa é você querer ajudar alguém que perdeu tudo. Acho justo. Mas agora conviver com ele. 

– E por que não, Susi? – Lila tentou usar a voz doce pra me convencer. 

– Não adianta! – fui firme – Você vai embora assim que sua cabana ficar pronta. 

– Eu realmente não fiz nada desde que cheguei. – Rich tentou falar sério, mas pareceu deboche – Se vai mesmo me ajudar, vamos ao menos fazer isso em paz?

– Olha quem fala. – bufei – Você é o primeiro a perturbar a paz. 

– Tem certeza disso? – ele perguntou como se tivesse dado a palavra final. 

– Ridículo! – falei entre os dentes – Espero que a onça te encontre e te devore!

– Onça? – Richard mudou sua expressão – Aqui tem onça?

– Não exatamente. – Lila se preparava para explicar – Quando chegamos a essa ilha, dois anos atrás, ouvíamos durante a noite barulhos estranhos. Rugidos altos, zangados. Alguns dias depois eles pararam, mas não por muito tempo. De mês em mês ela retorna, passa uma semana na ilha, rugindo, e depois vai embora. Nós nunca a vimos, nem mesmo de longe. Nem eu e nem a Susi sabemos se é de fato uma onça, mas acreditamos nessa hipótese. 

– E o dia de sua chegada está se aproximando. – falei com raiva.

– Espere! – Rich interrompeu – Isso aqui é uma ilha, certo?

– Sim! – respondi – Já rondamos toda a região. Sem chance de ser outra coisa.

– Mas você disse que ela vai embora. – ele levantou uma sobrancelha – Como?

– Nós também não sabemos. – Lila respondeu por mim – Já procuramos por essa ilha inteira e nunca a encontramos.

– É como se ela simplesmente desaparecesse. – complementei.

– Desaparecesse? – ele continuava espantado – Como se fosse mágica?

– Exatamente! – respondi.

– Mas isso não existe! – Rich parecia não saber o que pensar.

– Eu sei – sentei novamente – e isso é o mais estranho. Uma onça não sairia simplesmente da ilha e nem teria condições de voltar depois. Mas não consigo acreditar em algo sobrenatural.

– Mas e se for? – Rich deixou um clima de suspense no ar. Ele parecia estar tentando criar uma cena de filme.

– Eu acho melhor nós irmos dormir! – Lila estava com os olhos arregalados – Essa história está me deixando com medo.

– Lila! – tive que rir – Não seja criança! Essas coisas não existem!

– Será que não? – Rich insistia na hipótese.

– Pare! – quase gritei – Nem bem chegou e já está querendo virar essa ilha de cabeça pra baixo!

– Eu só estou tentando encarar os fatos. – ele se defendeu.

– Acontece que não temos fato algum. – falei zangada – Agora pegue o seu saco de folhas secas e se arrume na sala. Lila e eu iremos subir. E não se esqueça de acordar bem cedo! Já aviso que se eu precisar te acordar, não será nada agradável. 

– Sim, senhora capitã! – Richard debochou.

Apesar de estar zangada com o Richard por vários motivos, não pude deixar de pensar no que ele disse. Não havia muitas explicações lógicas para o que acontece nesta ilha todo início de mês. E quando uma coisa não tem uma explicação lógica, talvez a única explicação seja fora do que entendemos por lógico.

Afastei os pensamentos. Isso não era nada bom. Talvez a onça apenas se esconda muito bem. Já se passaram dois anos desde que “desembarquei” nesta ilha e nada de ruim aconteceu. Não seria agora que iria acontecer. Ou pelo menos era o que eu esperava.

Capítulos gratis disponibles en la App >

Capítulos relacionados

Último capítulo