Eu já estava o observando fazia alguns minutos. Em total silêncio. Tentava a todo custo ignorar qualquer outra coisa que não fosse ele. Eu precisava ser certeira. Mesmo já tendo feito isso vezes o suficiente para me considerar uma especialista, ainda assim sempre é um grande desafio fazer esse tipo de coisa. Sempre! Ainda mais com um daquele tamanho. Seria um desafio e tanto, mas eu estava pronta para ele. E o momento não poderia ser mais perfeito. Ele parecia estar dormindo, bem tranquilo, debaixo da sombra de uma árvore. Nem sequer sonhava com o que estava prestes a acontecer. Provavelmente ele iria lutar muito quando eu pulasse em cima dele. Eu teria que ser forte para não ser derrubada logo de cara. Mas uma vez que eu estivesse lá, seria questão de tempo para que eu conseguisse dominá-lo por completo. Eu só precisava esperar a hora exata.
O sol não estava tão forte, mas não soprava vento algum. Qualquer coisa poderia quebrar a silenciosa paz daquela manhã. Se aproximar sem fazer barulho era mais que essencial. E pra mim essa era a pior parte. Um único suspiro dado na hora errada poderia colocar tudo a perder. E as coisas nos últimos meses não estavam sendo exatamente as mais fáceis. Eu não tinha o direito de me permitir perder. Não dava pra passar outra semana à base de peixe, água de coco e banana frita. Respirei fundo e me preparei para o ataque. Eu iria pegá-lo no três.
– Um... Dois... Trê...
– Susi, tem um javali bem na sua frente!
E lá se foi o jantar desta noite.
– Lila! – berrei. – Não era pra você estar vigiando a casa agora?
– Mas eu estava. Eu juro! – Lila beijou os dedos cruzados. – Eu saí de lá só por um minuto. Um minutinho apenas, Susi. Não foi por mal. E que era urgente!
– E que compromisso inadiável você tinha pra fazer agora? – eu nem tentava esconder a raiva que eu estava sentindo.
– Eu queria fazer xixi. – Lila abaixou a cabeça e coçou o cabelo como se isso resolvesse tudo. – Eu estava muito apertada.
– E veio fazer xixi justo aqui?
– É que este lugar é mais afastado. – ela continuava de cabeça baixa e um sorriso vagabundo no rosto.
– E pra que você quer fazer xixi em lugar afastado, criatura? – eu ainda berrava muito. – Está achando que alguém vai ficar te espiando?
– O macaco. – Lila abriu ainda mais o sorriso amarelado. E eu fechei ainda mais o meu.
– Macaco, Lila?! Sério mesmo? – respirei bem fundo para não acabar caindo dura de tanta raiva. – Macaco?! Francamente!
– Mas ele ficou me olhando muito. E ele tinha olhos bem grandes para um macaco.
– Até parece que você nunca fez xixi perto de um macaco! – bufei.
– Mas esse macaco era diferente. – ela começou com as explicações mirabolantes. – Ele nem parecia macaco, parecia uma pessoa. Ele olhava pra mim, virava a cabeça para o lado e depois piscava. Os dois olhos. E teve um momento que ele arregalou o olho e ficou me encarando. E você sabe que assim eu não consigo. Tive que vir pra cá.
– Mas pelo menos você fez? – a raiva já estava passando.
– Fiz o que?
– O xixi?! – mas logo voltou.
– Passou a vontade quando vi o javali. – ela tentou falar isso como se fosse uma piada, mas não funcionou.
– Lila – tentei ficar calma – não fale mais nada. Pode ser?
– Tudo bem, eu não falo. – ela se chateou – Mas duvido que você consiga fazer com um macaco te encarando. Eu jamais vou esquecer aqueles olhos esbugalhados.
Respirei ainda mais fundo e segui de volta para casa. Hoje dificilmente eu teria outra oportunidade de pegar aquele javali – ou qualquer outra coisa.
Lilian Laís é a minha irmã mais nova. Minha melhor amiga, mas também a cruz que eu carrego. E há pelo menos dois anos ela é a única pessoa com quem eu tenho contato. E quando eu digo única eu estou falando literalmente. Somos apenas ela e eu no meio dessa não tão imensa ilha. Um acidente que nos condenou por mais tempo do que eu achava que seria possível.
No começo, quando tudo aconteceu, foi um pouquinho difícil para nós duas. Não, minto. Foi extremamente difícil. Durante meses pensávamos que sequer iríamos resistir. Mas estamos aqui ainda. Resistimos e nos fortalecemos. Mas isso não tornou as coisas mais fáceis. Apenas nos acostumamos com essa dificuldade nível hard que nos encontrávamos.
Eu não sou muito fã de relembrar os primeiros meses que passamos aqui na ilha. E gosto menos ainda de relembrar como viemos parar aqui. Às vezes a Lila gosta de conversar sobre isso, mas eu prefiro não tocar no assunto. Tudo aqui é tão difícil e sofrido. Não acho que precise de mais dor. Mas o fato é que esta é a nossa nova realidade. E eu tento lidar com ela da melhor maneira possível.
A fome bateu assim que chegamos em casa. E dessa vez parece que mais forte por saber que teria que encarar mais um dia de banana, peixe e coco. Não que fosse assim tão terrível. Pelo menos agora tínhamos sempre o que comer. Mas não é pecado algum querer variar o cardápio uma vez ou outra. O que me consolava um pouco era lembrar que eu tinha encontrado recentemente algumas mudas de couve que eu logo tratei de trazer para perto de casa. E como tive sucesso na pequena plantação de feijão, estava muito esperançosa de que logo teria muita couve para comer.
– Susi, hoje eu vi uma andorinha. – Lila falava feito uma criança – Ela voou bem pertinho da janela do quarto e depois foi embora. Eu nunca tinha visto uma andorinha por aqui.
– Legal, legal! – eu ainda estava pensando no javali.
– Susi, uma vez eu li que as andorinhas podem ir pra África quando migram – Lila continuava falando distraidamente. – Será que nosso avião caiu perto da África?
– Lila, por favor! – me aborreci – Nós estávamos indo para o Canadá. Não tem como o nosso avião ter caído perto da África.
– E você não faz ideia de onde ele possa ter caído – Lila revirou os olhos. – Eu sei disso. Mas às vezes eu fico pensando que...
– Eu sei, eu sei. – tentei cortar logo o assunto – Vamos pra casa.
Nossa casa não era exatamente o que se pode chamar de palacete, mas admito que eu tinha muito orgulho de ter conseguido construí-la sozinha. Ou melhor, com uma pequena ajuda de Lila, serei justa.
Construí a casa apoiada em uma árvore grande. Era uma casa de dois andares, feita de troncos e cascas de árvores, galhos, cipós e folhas de palmeira – os únicos materiais que encontrei. Tentei deixá-la o mais próximo possível de um lar, com todo o conforto que as nossas atuais condições nos permitiam. Era uma casa bonita no fim das contas.
Construí próximo a algumas bananeiras. Achei que seria útil morar perto de algum alimento. E a sorte – neste sentido pelo menos – pareceu estar ao meu lado. Não muito distante dali tinha uma pequena cachoeira, o que me deixou aliviada por saber que eu não precisaria ficar esperando chover para pegar água. Também próximo dali eu encontrei uma área com terra boa. Foi onde plantei os feijões.
Um pouco mais distante dava pra encontrar alguns coqueiros e mais próximo ao mar ficava a minha “cabaninha”. Era uma pequena tenda que construí para quando eu fosse pescar e quando eu resolvia vigiar os céus e os mares em busca de qualquer coisa que pudesse nos resgatar dali. Confesso que ultimamente tenho feito isso cada vez menos.
Ao nos aproximarmos mais da nossa casa, percebi que o caminho estava escuro demais para aquele horário. E isso não era nada bom. E não precisou chegar perto para perceber o que tinha acontecido.
– Lila, o fogo! – gritei.
– Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! – Lila correu para a entrada da casa.
Nós tivemos a sorte de termos pais... Excêntricos. E isso acabou ajudando para que a nossa “estadia” na ilha fosse um pouco menos penosa. Uma dessas ajudas foi a obsessão do meu pai com isqueiros. Meu pai sempre levava com ele pelo menos dois isqueiros de sua coleção. Neste dia em especial ele estava com dois recém-adquiridos. E isso acabou sendo de extrema utilidade. Mas já se passaram dois anos e, por mais que fossem dois, uma hora eles iriam acabar. Então Lila e eu decidimos fazer um esquema estilo tocha olímpica para nunca deixar a chama se apagar. Tínhamos três tochas na entrada da casa e uma fogueira e nos revezava-mos para vigiá-las. E hoje era o dia de Lila.
– Desculpa, Susi. – Lila estava em desespero – Mas olha aquela ali! Ainda está acesa! Ainda dá pra acender as outras duas.
Lila correu toda estabanada com as duas tochas apagadas e foi acendê-las na única tocha sobrevivente. O desespero dificultou que ela voltasse com as duas tochas acesas para o lugar delas, mas Lila conseguiu. E aproveitou e ascendeu à fogueira também.
– Como você fugiu do seu serviço e ainda me atrapalhou na caça, amanhã você vai ficar responsável pelas tochas outra vez. – falei assim que entramos em casa.
– O que? – Lila falou quase em falsete – Não é...
– Justo? – completei a frase – Tem certeza?
– Não é altruísta da sua parte. – Lila sentou e bufou.
– Você nem sabe o que quer dizer a palavra altruísta.
– Sei sim. – Lila virou a cara – É uma coisa que você não é.
– Sei... – segurei o riso – Vou quebrar o seu galo e fazer a nossa janta hoje. É altruísta o suficiente pra você?
Lila virou ainda mais a cara e bufou bem alto. Mas eu sabia que ela não estava zangada de verdade. O fato é que Lila adora fazer um drama. Antes de acabarmos presas nessa ilha, costumava brincar de que a Lila deveria ser contratada para fazer novelas, tamanho o seu dom para o dramalhão.
A noite não demorou muito para chegar. E nem o sono. Se algum dia alguém me dissesse que eu iria me acostumar a dormir pouco depois do sol se pôr, eu acharia loucura. E acharia mais loucura ainda se também me dissessem que eu iria começar a acordar pouco antes do sol nascer. Mas eu acharia uma loucura ainda maior se me dissessem que um dia eu sofreria um acidente de avião e ficaria presa em uma ilha perdida no mapa. Então até que as outras duas opções não pareciam mais tão absurdas.
Fechei os olhos e dormi imediatamente.
ormi quase como uma pedra. Se não fosse os pesadelos. Mas isso já é comum. Desde que tudo aconteceu eu nunca mais tive uma noite realmente tranquila. Mas, como eu disse, isso já era comum. O que não era comum era eu dormir até tão mais tarde. E, principalmente, acordar com um barulho tão estrondoso quanto o que tinha acabado de ouvir. Era um barulho estranho vindo da parte oeste da ilha. Não era barulho de nenhum animal ou qualquer outro ruído típico da natureza. Parecia barulho de explosão. Uma grande explosão. Sai rapidamente de casa para conferir o que tinha acontecido. Pela posição do sol, já deveria ser quase meio-dia. Eu realmente não costumo dormir tanto assim. E justo quando eu durmo, algo estranho acontece. Parecia até um aviso de que as coisas estavam prestes a mudar. Fui em direção ao local de onde o barulho parecia ter vindo. Fiquei atenta ao meu
Acordamos assim que o sol deu seus primeiros sinais de vida, iluminando toda a montanha. Subir até o local do acidente já seria uma missão demorada por si só. Procurar pelos destroços coisas que ainda sirvam e descer com elas iria levar o dia todo. Então não podíamos perder nenhum segundo.Vesti novamente as calças do meu pai e fui ver se já estavam todos de pé. Lila já havia acordado e estava com toda a animação habitual dela – o oposto de mim que sempre acordo mal-humorada. Já o Richard... Não esperava outra coisa dele mesmo.– Levanta logo, Bela Adormecida! – chutei de leve a barriga de Rich. Ele não acordou – Seu preguiçoso! – berrei em seu ouvido – Está pensando que isso aqui é col&o
Passamos o restante do dia sem nos falarmos. Na verdade ninguém abriu a boca para falar absolutamente nada com ninguém. Mas, tirando o fato da minha irmã estar zangada comigo, não ouvir a voz do Richard não me fez nenhuma falta. Na realidade foi algo até conveniente. Não queria falar com ele mesmo. Estava fazendo até bem para a minha saúde, inclusive. Todas as vezes que o Richard chegava perto eu meio que tinha um ataque do coração de tanta raiva. Como pode uma pessoa causar uma emoção tão forte assim? Seria ele um tipo de demônio? Sei lá, tanto tempo nessa ilha. Vai que eu e a Lila havíamos morrido e estávamos no inferno. Mas os sentimentos que corriam em meu corpo eram vivos demais para serem apenas truques de um demônio. E eu não sabia o que era pior. Na manhã seguinte fiquei surpresa de ver que Richard já estava acordado. Ele estava juntando um amontoado de galhos e folhas e fazendo a maior bagunça. T
Minha perna ainda doía, mas já estava bem melhor. Assim que consegui ficar de pé não quis esperar nenhum segundo para seguir em frente. Não sabia exatamente para onde estávamos indo, só sabia que precisávamos continuar. Lila precisava que continuássemos. – E então, capitã? – Richard tentou soar carinhoso. Mas não sei se gostei. – Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui? O meu coração se aqueceu e se espantou neste momento. Era um trecho de Alice no País das Maravilhas que Richard estava citando ou apenas uma coincidência? – Isso depende bastante de onde você quer chegar. – continuei o diálogo do livro. – O lugar não importa muito.
– Quem ou o que é Tadita? – perguntei. – Tajita – Savite me corrigiu. Novamente – Ela é a líder da tribo Rambek. – A onça é a líder de uma tribo? – não sei se tinha entendido. – Não! – Savite fez um sinal de desdém com a mão – Não tem nada disso. As patas são de Giba, a jaguar gigante que Tajita usa para montar. – Então não tem onça? – perguntei. – Susi? – Richard se espantou – Por essa eu não esperava. – O que foi que eu fiz? – perguntei. – Jaguar e onça são a mesma coisa! – Richard respondeu com uma cara péssima. – Agora eu que não entendo! – Savite coçou a cabeça.
Eu achei que estava tudo perdido quando a passagem se fechou. Lila iria ficar presa naquele universo paralelo estranho e eu ficaria aqui, presa, com o Richard para sempre. Nada parecia muito justo naquele momento. Mas parece que eu não tinha muitas escolhas além de aceitar. – Eu ainda não sei se foi uma boa ideia ter voltado para cá. – Richard falou andando de um lado para o outro – Se acontecer alguma coisa com a Lila? – Pensa que eu não estou preocupada com isso? – respondi seca – Mas o que poderia ter sido feito? Você viu a guerra que foi instaurada naquele lugar. O que nós poderíamos fazer? – Não sei, mas não acho certo. Voltar para cá parece voltar à estaca zero. – Eu também tenho essa sensação, mas não nos foi dado muitas escolhas, não é?
Não sei se era a minha ansiedade, mas o caminho para a passagem que nos levou para o outro lado da ilha na primeira vez parecia mais distante do que nunca. Meu corpo doía e eu estava física e mentalmente exausta. Mas sabia que não poderia parar. Já tinha passado por situações de grande pressão desde que cheguei a essa ilha. E por mais que tudo o que estava acontecendo fosse extremamente maior do que qualquer outra coisa que eu já tivesse vivido, eu não iria deixar isso me abalar. Pelo menos não mais do que eu já estava. Eu precisava focar na minha missão: encontrar Lila. Chegamos ao local da passagem. Como da primeira vez, a passagem estava escondida. Não demorei em retirar as pedras e plantas que cobriam a passagem. Mas algo não estava certo naquilo. Na verdade, não fazia o menor sentido – não que isso fosse alguma novidade. Parece que o lógico agora era nada ter lógica nenhuma.
Continuamos seguindo em silêncio. O som do rugido não voltou a aparecer, mas preferi continuar sem fazer barulho. O isqueiro eu acabei guardando e resolvi acender novamente a tocha. Nosso caminho não parecia ter mudado muito e pelo pouco que consegui enxergar, ainda tínhamos muito chão pela frente até chegar em onde quer que aquele caminho desse. Estranhamente percebi que o sol começava a nascer outra vez. Tudo bem que eu estava meio perdida em relação ao tempo e espaço, mas isso já era ridículo. Não deveria ter nem três horas desde que o sol se pôs, como ele já poderia estar nascendo? – Nós estamos andando faz quanto tempo? – Richard pelo visto também estava estranhando. – Não o suficiente para a noite já ter acabado. – respondi séria. – Tem certeza? – Richard parec