A tarde caiu lentamente sobre a mansão Castelão, espalhando sombras douradas pelas cortinas de linho e pelos corredores silenciosos. Marcus não havia saído do quarto do casal desde que encontrara o caderno. Ainda o segurava entre as mãos como se fosse um relicário — o último resquício palpável de tudo que perdera.Foi então que a mãe entrou.Não bateu. Não anunciou. Apenas entrou, como quem entra em um santuário para resgatar uma alma.Ela o viu ali, sentado na beira da cama, com o olhar distante. Os olhos vermelhos, mas ainda secos.Ela não disse nada no início. Caminhou até ele e sentou-se ao seu lado, com delicadeza. Ficaram alguns segundos em silêncio, ouvindo apenas o som abafado do mundo do lado de fora.— Quando você vai parar de fugir, Marcus?Ele não respondeu.Ela continuou:— Eu estive aqui. Vi tudo. Vi quando ela chegou com as malas, chorando como uma menina traída. E mesmo assim, ela agradeceu. Ela me agradeceu, Marcus. Pelo carinho. Mesmo depois do que você fez.Ele abai
Três semanas haviam passado desde que Eveline deixara a mansão dos Castelão.Três semanas desde que ouviu palavras que marcariam sua alma para sempre. Três semanas desde que foi expulsa com o coração dilacerado e o corpo abrigando uma vida que crescia mesmo em meio ao caos.Mas, naquele tempo, algo dentro dela mudou.Chorar não apagava as palavras. Esperar não trazia respostas. Amar, por si só, não curava. Então Eveline decidiu: ia viver. Ia reconstruir. Ia existir longe da sombra de Marcus Castelão.Mudou de número. Bloqueou todos os contatos ligados ao passado. Não queria mais ligações da sogra, do pai dele, de ninguém. A única ponte que manteve foi Clara, sua amiga — e agora, seu único suporte.Clara, vendo sua força renascer, começou a ajudá-la na busca por um trabalho. Era difícil. Eveline estava grávida, emocionalmente abalada e sem experiência formal que brilhasse num currículo.Mas num domingo chuvoso, entre goles de chá e páginas de jornal amassadas, ela viu o anúncio:“Famíl
Era um sábado de céu nublado quando Marcus finalmente cedeu ao impulso que vinha sufocando seus dias: ligar para Eveline.Ele tinha passado a semana inteira se convencendo de que ela precisava de espaço. Que precisava de tempo. Que em breve, por orgulho ou saudade, ela voltaria. Talvez uma mensagem. Talvez um sinal.Mas os dias se transformaram em semanas.E nada.Agora, sentado no sofá do quarto deles — que permanecia como ela deixou — Marcus segurava o celular com os dedos trêmulos. O nome “Eveline” ainda estava salvo. O coração bateu forte ao tocar a tela. Esperou. Ansioso. Nervoso. Esperançoso.“Este número não existe ou foi desativado.”Ele congelou.Tentou de novo.Mesmo resultado.O coração acelerou. O mundo pareceu girar. Ela havia mudado de número. Bloqueado o passado. Bloqueado ele.Levantou-se de súbito, tropeçando nas próprias ideias, no orgulho esmagado, no desespero que vinha como avalanche.Pegou as chaves. Saiu sem pensar.Clara não se assustou quando viu Marcus à port
A mansão dos Avelas era diferente da que Eveline havia deixado para trás.Não por ser maior ou mais luxuosa — na verdade, era mais simples, mais silenciosa. Mas havia algo ali que preenchia os espaços: Vida.Crianças rindo pelos corredores, vozes leves, o som das pequenas corridas de pés descalços no tapete. Tudo pulsava com uma energia que ela não sentia havia muito tempo. Ali, naquele lugar, não existiam gritos, nem desconfiança, nem acusações.Ali, Eveline podia respirar.Eveline havia sido oficialmente contratada no dia seguinte à entrevista. Daniel, com um sorriso honesto e um aperto de mão firme, disse apenas:— Eu confio em você. E eles também vão confiar."Eles" eram Lucas, de 7 anos, e Beatriz, de 4. Duas pequenas almas que haviam perdido a mãe para uma doença devastadora dois anos antes e que, desde então, viviam com uma sucessão de babás impessoais e cuidadoras ocupadas demais.Mas com Eveline... foi diferente.Logo nos primeiros dias, Beatriz passou a segui-la pela casa co
Marcus sempre fora um homem de presença marcante. Mas naquele início de manhã, sentado à beira da cama, ele parecia outro. O espelho à sua frente refletia uma versão dele mais polida, mais contida — mais humana.Usava uma camisa branca de linho engomado, abotoada até o pescoço, com um blazer grafite sob medida, sapatos de couro preto recém-lustrados. O cabelo, agora ligeiramente mais longo, estava penteado para trás com pomada fosca. A barba bem aparada delineava o novo formato do rosto — fruto das cirurgias faciais iniciadas meses atrás.A cada nova consulta com o cirurgião plástico, ele se via menos como o homem do passado e mais como alguém em construção. As cicatrizes físicas quase não existiam mais. Mas as emocionais? Essas ele estava aprendendo a encarar em outro lugar.Seu acompanhamento psicológico semanal se tornara um hábito inegociável. O consultório era aconchegante, com estantes de livros e janelas que deixavam a luz entrar. Ali, Marcus não era o herdeiro dos Castelão. Ne
A caneta escorregava entre os dedos finos de Eveline Rocha. O papel à sua frente tremia como se denunciasse o que ela não podia dizer em voz alta. Aquela não era uma assinatura de amor. Era um contrato de resgate. Resgate financeiro — não emocional.Sentada à mesa da sala de jantar, Eveline parecia pequena demais para a gravidade daquela decisão. A jovem de pele alva e cabelos negros como a noite encarava o documento com os olhos cor de mel marejados. Seu coração batia tão alto que podia jurar que os outros escutavam.Mas ninguém escutava nada naquela casa.Seu pai, Júlio Rocha, estava de pé ao lado da lareira, com os braços cruzados e a expressão fria como mármore. Desde que a fábrica da família — uma tradicional tecelagem herdada do avô de Eveline — começara a falir, ele já não a olhava como filha. Era uma moeda de troca, e nada mais.— Assine de uma vez, Eveline. Não temos o dia todo — disse ele com voz áspera, sem tirar os olhos do relógio de bolso que herdara como um troféu de te
Eveline observava, pela janela do carro, as vastas paisagens da fazenda, a estrada de terra, ainda um pouco empoeirada pela recente chuva, parecia não ter fim. O coração dela batia acelerado, mas ela tentava controlar as emoções. Era a primeira vez que estava indo para lá, e apesar de tudo, uma sensação de ansiedade misturada com curiosidade dominava seu corpo.Ela não sabia bem o que esperar. As palavras de seu pai, Júlio, ecoavam em sua mente: "Este casamento é sua salvação, Eveline. A nossa única chance." Ele e a madrasta, Claudia, tinham apostado tudo naquele matrimônio. Marcus Castelão não era apenas rico — ele era a última tábua de salvação para os negócios em ruínas da família Rocha. Eveline nunca pensou que um casamento, tão frio e imposto, pudesse ter algo de bom.Ela chegou à fazenda por volta do final da tarde, o céu tingido de laranja, como um aviso de que a noite estava prestes a cair. Quando o carro parou, não havia ninguém à porta esperando por ela, nada que lembrasse u
O jantar foi silencioso.Eveline sentou-se à mesa longa, comendo sob o olhar atento de Maria e os poucos funcionários que transitavam discretamente pela casa. Marcus não apareceu para comer com ela. A mesa, embora farta, parecia um palco vazio. Nada ali era acolhedor, e cada mordida parecia feita por obrigação.Depois do jantar, Maria levou-a de volta ao quarto. As malas já estavam no lugar, as roupas cuidadosamente organizadas no armário. A noite estava quente, e uma brisa morna entrava pela janela, balançando levemente as cortinas.Eveline trocou-se por uma camisola leve de seda vermelha, que Claudia fizera questão de colocar no fundo da mala. O tecido macio grudava em seu corpo como uma segunda pele, destacando sua silhueta. Ela hesitou em se olhar no espelho, mas o fez. Pela primeira vez, se viu com os olhos de um homem. Um homem como Marcus.Será que ele me deseja? Ou só me escolheu pelo ventre?Bateu à porta. Um toque firme. Ela se sobressaltou.Maria entrou.— O senhor Marcus e