O silêncio no apartamento de Clara era diferente do silêncio da mansão.Era mais leve. Mais vazio, sim — mas sem o peso de julgamentos, sem gritos ecoando pelas paredes. Ainda assim, para Eveline, aquele silêncio machucava. Era como um espelho do que ela sentia por dentro.Ela estava ali há pouco mais de doze horas, e já parecia tempo demais. Clara, sempre generosa, havia deixado o quarto de hóspedes pronto, colocado uma chaleira elétrica ao lado da cama, cobertores limpos, pantufas e um bilhete simples: “Se precisar de mim, estarei na sala. Não precisa falar nada. Só respira.”Eveline chorou quando leu.Naquela noite, dormiu pouco. Não conseguia fechar os olhos sem ver o rosto de Marcus distorcido pelo ódio. A voz dele repetindo palavras que ela sabia que não merecia."Cala a boca.""Voce é uma vagabunda""Voce me enganou.""O filho é meu?""Sai da minha casa."Ela jamais esqueceria aquelas palavras gritavam dentro de sua cabeça......Na manhã seguinte, acordou com o rosto inchado. O
Duas semanas haviam se passado desde a noite em que Marcus destruiu tudo com as próprias mãos.Duas semanas em que a mansão havia se transformado em um mausoléu de memórias. O bar estava mais vazio, as taças mais sujas. Ele mal dormia. Não comia direito. E passava horas trancado no escritório, olhando para a mesma pasta de fotos que ainda insistia em não deletar.As imagens, antes “provas”, agora apenas o incomodavam. Havia algo de estranho nelas. Algo que sua mãe não se cansava de repetir.— Marcus, eu te conheço — ela dissera naquela manhã, entrando no escritório com a coragem que só mães têm. — E conheço a Eveline. Aquilo não é real. Você precisa encarar isso.— Já encarei.— Não. Você gritou, expulsou, ofendeu. Isso não é encarar. Isso é fugir. Covardia mascarada de orgulho.Ele não respondeu. Apenas tomou um gole de café frio.Ela foi até ele e puxou o laptop.— Me mostra.As imagens se abriram na tela. Eveline e o Dr. Daniel. O abraço. O toque no ombro. O beijo.— Aqui — ela apo
A tarde caiu lentamente sobre a mansão Castelão, espalhando sombras douradas pelas cortinas de linho e pelos corredores silenciosos. Marcus não havia saído do quarto do casal desde que encontrara o caderno. Ainda o segurava entre as mãos como se fosse um relicário — o último resquício palpável de tudo que perdera.Foi então que a mãe entrou.Não bateu. Não anunciou. Apenas entrou, como quem entra em um santuário para resgatar uma alma.Ela o viu ali, sentado na beira da cama, com o olhar distante. Os olhos vermelhos, mas ainda secos.Ela não disse nada no início. Caminhou até ele e sentou-se ao seu lado, com delicadeza. Ficaram alguns segundos em silêncio, ouvindo apenas o som abafado do mundo do lado de fora.— Quando você vai parar de fugir, Marcus?Ele não respondeu.Ela continuou:— Eu estive aqui. Vi tudo. Vi quando ela chegou com as malas, chorando como uma menina traída. E mesmo assim, ela agradeceu. Ela me agradeceu, Marcus. Pelo carinho. Mesmo depois do que você fez.Ele abai
Três semanas haviam passado desde que Eveline deixara a mansão dos Castelão.Três semanas desde que ouviu palavras que marcariam sua alma para sempre. Três semanas desde que foi expulsa com o coração dilacerado e o corpo abrigando uma vida que crescia mesmo em meio ao caos.Mas, naquele tempo, algo dentro dela mudou.Chorar não apagava as palavras. Esperar não trazia respostas. Amar, por si só, não curava. Então Eveline decidiu: ia viver. Ia reconstruir. Ia existir longe da sombra de Marcus Castelão.Mudou de número. Bloqueou todos os contatos ligados ao passado. Não queria mais ligações da sogra, do pai dele, de ninguém. A única ponte que manteve foi Clara, sua amiga — e agora, seu único suporte.Clara, vendo sua força renascer, começou a ajudá-la na busca por um trabalho. Era difícil. Eveline estava grávida, emocionalmente abalada e sem experiência formal que brilhasse num currículo.Mas num domingo chuvoso, entre goles de chá e páginas de jornal amassadas, ela viu o anúncio:“Famíl
Era um sábado de céu nublado quando Marcus finalmente cedeu ao impulso que vinha sufocando seus dias: ligar para Eveline.Ele tinha passado a semana inteira se convencendo de que ela precisava de espaço. Que precisava de tempo. Que em breve, por orgulho ou saudade, ela voltaria. Talvez uma mensagem. Talvez um sinal.Mas os dias se transformaram em semanas.E nada.Agora, sentado no sofá do quarto deles — que permanecia como ela deixou — Marcus segurava o celular com os dedos trêmulos. O nome “Eveline” ainda estava salvo. O coração bateu forte ao tocar a tela. Esperou. Ansioso. Nervoso. Esperançoso.“Este número não existe ou foi desativado.”Ele congelou.Tentou de novo.Mesmo resultado.O coração acelerou. O mundo pareceu girar. Ela havia mudado de número. Bloqueado o passado. Bloqueado ele.Levantou-se de súbito, tropeçando nas próprias ideias, no orgulho esmagado, no desespero que vinha como avalanche.Pegou as chaves. Saiu sem pensar.Clara não se assustou quando viu Marcus à port
A mansão dos Avelas era diferente da que Eveline havia deixado para trás.Não por ser maior ou mais luxuosa — na verdade, era mais simples, mais silenciosa. Mas havia algo ali que preenchia os espaços: Vida.Crianças rindo pelos corredores, vozes leves, o som das pequenas corridas de pés descalços no tapete. Tudo pulsava com uma energia que ela não sentia havia muito tempo. Ali, naquele lugar, não existiam gritos, nem desconfiança, nem acusações.Ali, Eveline podia respirar.Eveline havia sido oficialmente contratada no dia seguinte à entrevista. Daniel, com um sorriso honesto e um aperto de mão firme, disse apenas:— Eu confio em você. E eles também vão confiar."Eles" eram Lucas, de 7 anos, e Beatriz, de 4. Duas pequenas almas que haviam perdido a mãe para uma doença devastadora dois anos antes e que, desde então, viviam com uma sucessão de babás impessoais e cuidadoras ocupadas demais.Mas com Eveline... foi diferente.Logo nos primeiros dias, Beatriz passou a segui-la pela casa co
Marcus sempre fora um homem de presença marcante. Mas naquele início de manhã, sentado à beira da cama, ele parecia outro. O espelho à sua frente refletia uma versão dele mais polida, mais contida — mais humana.Usava uma camisa branca de linho engomado, abotoada até o pescoço, com um blazer grafite sob medida, sapatos de couro preto recém-lustrados. O cabelo, agora ligeiramente mais longo, estava penteado para trás com pomada fosca. A barba bem aparada delineava o novo formato do rosto — fruto das cirurgias faciais iniciadas meses atrás.A cada nova consulta com o cirurgião plástico, ele se via menos como o homem do passado e mais como alguém em construção. As cicatrizes físicas quase não existiam mais. Mas as emocionais? Essas ele estava aprendendo a encarar em outro lugar.Seu acompanhamento psicológico semanal se tornara um hábito inegociável. O consultório era aconchegante, com estantes de livros e janelas que deixavam a luz entrar. Ali, Marcus não era o herdeiro dos Castelão. Ne
A caneta escorregava entre os dedos finos de Eveline Rocha. O papel à sua frente tremia como se denunciasse o que ela não podia dizer em voz alta. Aquela não era uma assinatura de amor. Era um contrato de resgate. Resgate financeiro — não emocional.Sentada à mesa da sala de jantar, Eveline parecia pequena demais para a gravidade daquela decisão. A jovem de pele alva e cabelos negros como a noite encarava o documento com os olhos cor de mel marejados. Seu coração batia tão alto que podia jurar que os outros escutavam.Mas ninguém escutava nada naquela casa.Seu pai, Júlio Rocha, estava de pé ao lado da lareira, com os braços cruzados e a expressão fria como mármore. Desde que a fábrica da família — uma tradicional tecelagem herdada do avô de Eveline — começara a falir, ele já não a olhava como filha. Era uma moeda de troca, e nada mais.— Assine de uma vez, Eveline. Não temos o dia todo — disse ele com voz áspera, sem tirar os olhos do relógio de bolso que herdara como um troféu de te