As folhas moviam-se numa dança singular com o transpassar de um vento penetrante e ameaçador. Um sopro gelado deslizava por entre as copas das árvores e seguia seu percurso, infiltrando-se por entre ciprestes e salgueiros, criando seu próprio caminho tortuoso. Seres furtivos saíam de seus esconderijos. Olhos arregalados fitando a sufocante escuridão, atentos a qualquer sinal de perigo. Zumbidos, ululas, chiados e coaxos ecoavam nos cantos, copas e tocas. A floresta estava viva, apesar do pútrido odor que emanava de suas entranhas.
Pulsava como um coração prestes a entrar em colapso.
Os passos firmes daqueles pés descalços deixavam marcas visíveis na terra enlameada. Apesar das lágrimas, não vacilou. Estava convicta. O tempo das incertezas há muito jazia no lago do esquecimento. Não havia mais disputa.
“Você é jovem”.
Diziam.
“Tem tempo.”
Mentiam.
“Para com essa bobeira.”
Decretavam.
O tempo se foi e a “bobeira” se enraizou.
Criou um nó que nem mesmo o seu filho poderia desatar.
Ela não saberia dizer quando tudo começou. Talvez o começo fosse um amontoado de pequenos retalhos que, no final da costura, formassem uma imagem desfigurada do que deveria ser uma vestimenta.
Foram os gritos. Tapas. Ausências.
Uma mistura do tudo e do nada.
“Meu pequeno Peter... Mamãe foi dar uma volta. Preciso que você seja forte. Muito mais forte do que eu. Eu sei que o tio Oswald vai cuidar de você, meu amor. Te amo muito.”.
O bilhete jazia ao lado da cama de Peter, que quando acordasse não teria à mesa o seu pão com manteiga e o suco de laranja, nem um cafuné ou o beliscão amoroso na bochecha. Também não sentiria o perfume dela e nem a ouviria lhe chamar para almoçar ou guardar os brinquedos.
Apesar do breu, o facho lunar conseguia clarear algumas partes da floresta. Parou em frente a uma grande árvore que possuía dezenas de rabiscos, nomes e recados. A dela, claro, estava ali, próxima do jovem Barney. Fragmentos de uma época desbotada quando ela acreditava que poderia até voar, se tentasse com afinco.
“Tão romântico, brincalhão, inteligente... Como ele havia se perdido tanto, quando deveria existir apenas um caminho? Em que momento nos perdemos?”.
A cada batida, uma peça que os conectava caía ao chão. No começo eram peças sem muita importância. “Dá para ficar sem!”, “Não importa”. Mas continuaram a cair, uma após a outra. Cada vez maiores e mais significativas. No final, não existia mais algo.
Olhou para as marcas afundadas no casco da árvore e começou a escalá-la como quando nova. Aqueles galhos, que já serviram de esconderijo e descanso, agora atraíam-na uma última vez. Segurou a corda com firmeza, encarando-a com melancolia. Sentia medo, como achou que sentiria. Prendeu umas das pontas no galho acima e enlaçou seu pescoço. O lago a frente soprou, jogando o seu cabelo para trás e empurrando para o abismo os resquícios de lembrança em sua mente. E então, o vazio.
Justine Strall caminhou para frente, como se fosse pisar em uma passarela invisível, mas o pequeno Peter, que havia acordado com o barulho da porta da sala se fechando, havia se esgueirado atrás da mulher que parecia ser o espectro de sua mãe. Chegou ao local da grande árvore no momento exato quando os pés — que em outros tempos serviram de apoio para Peter, enquanto dançavam ao som do velho rádio, no meio da sala —, afundaram no espaço vazio e tremelicaram durante poucos — e infinitos — segundos. Ele não conseguiu gritar. Não conseguiu chorar. Não queria estar ali. Eram muitos nãos para uma criança de onze anos suportar. Ainda de pijama, o menino ficou estático durante toda aquela noite em frente ao corpo inerte e flutuante de sua mãe.
Também nada fez quando algo em seu peito quebrou em milhões de pedaços, espalhando os estilhaços pela superfície de sua alma.
A brisa passeava pelo lago e costurava a floresta, acariciando palmeiras e bordos. O lago, como alguém na primeira fila de um teatro não querendo perder nenhum detalhe, continuava imóvel, calmo e sereno. E a lua — que, por sinal, estava cheia — banhava-se em suas águas, fazendo um maravilhoso reflexo em sua superfície laminada. Mas algo havia mudado e era tarde demais para que fosse prevenido ou remediado. Junto aos animais selvagens agora habitava algo muito pior, germinado pela dor e angústia, e que um dia iria acordar.
As crianças riam sem parar. Apontavam os dedos pequenos e pontiagudos para ele. Carregavam nos olhos um vermelho vivo animalesco. Algumas babavam de tanto dar risada, outras batiam a cabeça sem parar na mesa escolar. Olhou para a professora, procurando por ajuda. Queria gritar, mas não havia voz. A Sra. Campbell permanecia de frente para o quadro escuro e escrevia com as próprias unhas, num estado catatônico: “VOCÊ É UM MENINO MAU! NINGUÉM GOSTA DE VOCÊ!”. Não havia portas ou janelas. Não havia escape.Peter acordou com o corpo encharcado de um suor frio. Tais pesadelos haviam se tornado recorrentes nos últimos dias, mas esse foi diferente. Real. A Sra. Campbell aparentava ser a mesma de sua lembrança, mesmo não tendo visto a pinta peluda que ela cultivava no canto da boca. Depois de tantos anos... Nos últimos dias, as lembranças de tudo que envolvia sua ci
Naquela manhã Callab Watson aguardava, com a boca aguada, o pão com ovos e bacon — e duas fatias extras, Camarada! — que Charles fazia com maestria. Era um ritual que ele cumpria todos os dias, apesar das inúmeras advertências do Dr. Alfred Wright. Para ele, ir à lanchonete do Charles era como ir ao banheiro. Uma necessidade fisiológica que o incomodava, até que ele repousasse o largo quadril em uma das banquetas do balcão. Charles olhava de soslaio para a barriga de Callab que se depositava em três camadas. Entre elas o suor acumulava de tal modo, que formava grandes manchas escuras e horizontais no uniforme amarrotado e sujo do sargento.Enquanto o cheiro do bacon pipocando na frigideira infestava a pequena lanchonete, ele bebericava uma xícara de açúcar com um pouquinho de café e assistia ao noticiário da manhã do canal 21, em que a apresentadora — que n
— Você sabe que não precisava vir junto,né?— Mas eu quis, ou você não me quer por perto? — perguntou Sandra, com um arqueio de sobrancelha e um pequeno sorriso. — Além do mais, estava sem ter o que fazer mesmo, então...— Não é isso... — respondeu Peter, enrubescido.— E outra! Você sabe que eu estou preocupada contigo, então não adianta tentar correr, porque meu segundo nome é Usain Bolt!— Preocupada comigo?— Óbvio, ou você acha mesmo que eu acreditei que as suas olheiras foram provocadas por causa de uma noite selvagem com as gatinhas?O táxi em que estavam virou a esquina e passou por cima de um buraco, arrancando um “filho da puta” do motorista, seguido por um “me desculpem”.— Eu só estou tendo uns pesadelos
A floresta era uma vitrine. Um quadro vivo e em movimento capaz de causar inveja à Gogh e Monet. Hora ou outra um traço venoso dessas pinturas, na forma de um artrópode ardiloso, visitava Barney, a fim de caçar alguma presa foragida do interior da floresta, que achava ser uma boa ideia esconder-se no porão úmido ou no sótão empoeirado do solitário morador. Por um instante, parou aquele eterno balançar e ficou estático. Apesar das aparências, o aroma do desespero brotava daquelas plantas. Ele sabia o que estava acontecendo. Sempre soubera.— E aí, meu amigo! Como vão as coisas?Um senhor alto de cabelos brancos e corpo esguio surgiu pela lateral da casa, como de costume, e tomou seu lugar ao lado de Barney. Algo no rosto pálido de Oswald estava diferente, Barney notou. Os olhos fundos e o cabelo bagunçado informavam muito mais do que um simples “bom
Henry Stock arqueou as costas no couro escuro da cadeira e jogou o cabelo grisalho para trás. Na mesa à sua frente — metodicamente organizada — repousava o retrato de sua amada esposa, Amélia. Avessa aos procedimentos cirúrgicos e aplicações estéticas que visavam retardar o envelhecimento, os sulcos e linhas em sua pele quebradiça estampavam para o mundo que ela já havia passado por muita coisa. Eram marcas do passado, dizia ela. Não importava o que Henry dissesse, se Amélia batesse o pé, não tinha mais conversa. Ele gostava de brincar com os mais chegados de que a última palavra no casamento sempre era a dele. “Sim, senhora!”. Eles se acabavam de rir, mesmo que já tivessem ouvido aquela piada algumas dezenas de vezes proferidas pelo capitão. Após dar andamento ao processo de sua aposentadoria, Stock começou a sentir
Os tentáculos arbóreos costuravam o caminho através da terra. Fragmentos rochosos e matéria orgânica depositadas por milhares de anos eram deslocados por uma força ininterrupta das arestas florísticas. As raízes transpassavam seus limites naturais e invadiam a área povoada da cidade em uma velocidade anormal. Os moradores acima permaneciam desatentos, alheios a qualquer possibilidade de terem seus afazeres diários interrompidos. Dia após dia a floresta continuava o seu êxodo. O que conseguia extrair dos animais já não era o bastante. Não possuíam o necessário.Robert Hall agora sentia mais dores de cabeça do que o habitual. Sua esposa, Darla, não conseguia mais concentrar-se nos afazeres domésticos como outrora, e a torta de amora que fazia toda sexta-feira precisou ficar para depois, para o descontentamento dos filhos. Esses, aliás,
— Sra. Thompson! — chamou Janet, com o dente recuperado nas mãos. Perguntas precisavam ser feitas e não tinha ideia sobre o tipo de resposta que teria.— Sra. Thompson! É a Janet!Deu três batidas na porta branca de madeira. Estava impaciente. Olhou em volta e deparou-se com uma imensa samambaia pendurada por correntes no teto. Como não tinha visto aquilo? Sua folhagem descia até o chão e ali depositava-se, formando algo parecido com um ninho. Lembrou-se de que a Sra. Thompson havia comentado sobre aquilo, mas Janet não havia dado a mínima. Continuava não sendo um caso para a polícia resolver, mas a planta possuía um aspecto sinistro que a deixava desconfortável.— Sra. Thompson! Preciso falar com a senhora... Assunto da polícia!O silêncio ainda pairava pela casa. Levou a mão à maçaneta e a girou lentamente.
Henry Stock estava deitado com os olhos voltados para o teto do seu quarto e com as mãos atrás da cabeça. Amélia dormia tranquila ao seu lado, sem incomodar-se com a turbulência que o deixava inquieto. Ficou assim até ver as primeiras luzes do dia passarem pela persiana e o alarme tocar.— Bom trabalho, amor — desejou a esposa, como sempre fazia.Henry deu-lhe um beijo na testa, colocou o uniforme e saiu. Antes de entrar no carro, pegou o celular e conferiu, mais uma vez, se não havia nada comprometedor nas mensagens ou fotos. Estremecia só de pensar que pudesse ter deixado alguma ponta solta. Mas aquela havia sido a última vez. Era uma promessa — como havia feito tantas outras vezes. As imagens das algemas na parede e o chicote pendurado atrás da porta lhe arremeteram de súbito e precisou conter a excitação.— Bom dia, Sam.— Bom dia, s