Naquela manhã Callab Watson aguardava, com a boca aguada, o pão com ovos e bacon — e duas fatias extras, Camarada! — que Charles fazia com maestria. Era um ritual que ele cumpria todos os dias, apesar das inúmeras advertências do Dr. Alfred Wright. Para ele, ir à lanchonete do Charles era como ir ao banheiro. Uma necessidade fisiológica que o incomodava, até que ele repousasse o largo quadril em uma das banquetas do balcão. Charles olhava de soslaio para a barriga de Callab que se depositava em três camadas. Entre elas o suor acumulava de tal modo, que formava grandes manchas escuras e horizontais no uniforme amarrotado e sujo do sargento.
Enquanto o cheiro do bacon pipocando na frigideira infestava a pequena lanchonete, ele bebericava uma xícara de açúcar com um pouquinho de café e assistia ao noticiário da manhã do canal 21, em que a apresentadora — que naquele dia usava um forte batom vermelho e um avantajado decote “olhem para mim” que fazia Callab transpirar mais do que o normal — relatava o desespero das famílias que sobreviviam na Faixa de Gaza, em meio a um conflito sem fim.
“E aí, queridinha? Que tu está usando aí debaixo dessa roupaida, hein?”
Bebeu mais um pouco do café e olhou na direção da frigideira. As fatias de bacon brilhavam no óleo. Olhou novamente para a tela, perdido em seus próprios pensamentos.
— Callab? Tem alguém em casa? — indagou Charles, com o prato na mão.
— Hã? Ah… Até que enfim! — respondeu, com um largo sorriso e puxando o prato de forma desajeitada.
— Vai com calma, campeão!
— Agora, deixa eu cuidar desta belezinha aqui…
Mal cerrou os dentes no pão, uma voz firme ressoou pelo estabelecimento e o sabor daquele mordida não obteve o resultado esperado. Se havia um momento em que ele detestava ser incomodado era na hora de alguma refeição. Como ele comia o dia todo, odiava ser incomodado sempre.
— Só me faltava essa... — resmungou e virou o corpo em direção àquela mulher loira, olhos esverdeados e de corpo torneado que um dia já lhe preenchera a imaginação. Isso antes de perceber que ela era um porre.
— O que foi?
— Perdoe-me a intromissão — respondeu, com ênfase nas palavras. —, mas as crianças encontraram outro animal morto na Rua 19. Bom dia, Charles!
Charles devolveu a gentileza oferecendo uma xícara de café, que Janet recusou com um aceno.
— E o que esses pirralhos estavam fazendo lá?
— Crianças, né...
Callab, percebendo que a policial não sairia dali sem ele, jogou alguns dólares em cima do balcão e fez um pequeno-grande esforço para sair da banqueta, onde seus pés ficavam sem apoio. Colocou os óculos escuros, segurou o pão, enrolou em um guardanapo, colocou no bolso da calça e seguiu Janet até a sua viatura. A moto dela estava estacionada ao lado. Sem dizer mais nada, Janet disparou pelo asfalto com Callab atrás. Charles pensava nas palavras de Janet enquanto limpava o prato oleoso que o recente cliente havia deixado. Outro animal morto na Rua 19. Em um mês, já haviam encontrado quantos? Três? Era estranho. Aumentou o volume da televisão onde passava um desenho em que o gato perseguia um pintinho amarelo, até dar de frente com um cão bravo e robusto que lhe arrebentava a fuça.
— É, meu chapa... Para alguns, a vida é bem complicada — disse, com seus olhos fixos em um corte já cicatrizado no seu punho direito.
Janet estacionou a moto no acostamento e olhou para a floresta que se estendia à sua frente como um grande monstro prestes a abocanhá-la. Apesar do calor que já mostrava a cara nas primeiras horas da manhã, Janet sentia um fio gelado tocar-lhe a pele. Em Melford existiam várias histórias envolvendo a floresta. Muitas — Janet tinha certeza — foram criadas para assustar as crianças e fazê-las voltar para a casa antes do fim da tarde. Mas outras pareciam — ou eram — bem reais, o que incluía um suicídio, anos atrás, da esposa do Sr. Barney. No entanto, agora havia o mistério dos animais mortos perto dessa mesma floresta. Sem marcas de tiro ou corte. Apenas as carcaças dos animais, que se não fosse a ausência do movimento de respiração, Janet poderia pensar que estivessem dormindo. Fora o grupo de crianças que, naquele momento, cercava o animal, outros curiosos procuravam por um espaço para saber o que estava acontecendo, como fazia a Sra. Thompson, que não perdia uma novidade por nada. Se havia alguma aglomeração, lá estava ela. Callab chegou logo depois, com a boca ainda suja e a camisa manchada de óleo.
— Pode ir circulando todo mundo! Vamos lá! — disse Janet, em alta voz, para os curiosos, enquanto os afastava com a ajuda de Nate e Simon, os dois jovens policiais que haviam entrado em contato com ela pelo rádio.
Janet notou como as crianças pareciam não sentir nada naquele lugar, diferente dos adultos em volta que aparentavam um notório desconforto, como a própria Sra. Thompson, que não carregava um olhar curioso, mas olhos marejados e tristes. Um ou outro chegou até mesmo a vomitar, como aconteceu com Willy Russell, que naquele momento despejava no solo o que parecia ter sido a janta e uma parte do café da manhã. Simon o acudiu, tomando cuidado para que as gotículas do vômito não respingassem em seu sapato brilhante. Sua mãe não iria gostar nada da sujeira.
— Mas que merda! Olha o tamanho desse “cara”! — disse Callab, dando um pequeno pontapé nas costas do alce. — Dá um belo hambúrguer, hein? — completou, com uma risada.
Nate quis acompanhar a risada do chefe, enquanto Simon estava mais comedido. Janet apenas ignorava, como aprendera a fazer. Permanecia agachada ao lado do animal, tentando entender o que estava acontecendo. Há duas semanas havia sido o gato da família Jenkins. Uma semana depois, um cachorro de porte grande que gostava de descansar em frente ao bar do Alvin, do outro lado da cidade. Aqueles animais não eram para estar ali, mas algo ou alguém havia os atraído até aquele ponto. Janet estava em Melford há pouco mais de um ano, mas ainda não havia visto de perto um animal tão grande como aquele. Janet anotava tudo em um pequeno bloco que guardava no bolso traseiro. Não queria deixar passar nenhum detalhe.
— Callab, acredito que um especialista deva ver isso...
— O quê?! Nem diga uma coisa dessa, mulher! Se o capitão souber que estou gastando os poucos recursos da nossa delegacia para desvendar a morte de um bicho qualquer, eu estou ferrado! E vocês também!
— Mas se nós não soubermos o que matou esse “bicho”, vai ficar muito difícil entender este caso — disse Janet.
— Sossega aí, mocinha! Nós nem sabemos se isso é ou não um caso — Olhou para Nate. — Meu jovem, chama logo o Steven e tira esse lixo daqui. Só avisa que é um dos grandes e que é para ele trazer a Jamanta.
Jamanta era como Callab chamava a caminhonete maior.
— Sim, senhor! — respondeu o jovem, com alívio. Já podia sentir o seu estômago se revirando, e mais um pouco também colocaria tudo para fora.
— E eu? — perguntou Simon.
— Sei lá! Vê com essa daí. Tenho que resolver tudo?!
Callab olhou para o relógio e limpou o suor na testa. Havia lanchado há poucos minutos, mas seu estômago parecia contorcer-se de dor. Precisava ir embora. Sem olhar para trás, seguiu para a viatura e pegou o caminho para a terra das guloseimas escondidas, também conhecida como delegacia.
Janet suspirou, impotente.
“O que estou fazendo aqui, meu Deus?”
Suas mãos suavam frio e seu coração batia acelerado.
“O que estou fazendo aqui?! Aqui não é o meu lugar... Olha onde você foi parar, Janet! Que oportunidade incrível servir a um sargento preguiçoso, em uma cidade afastada de tudo e todos seus amigos e família. Tudo porque não quis fazer ‘aquilo’ com aquele babaca do capitão. E se eu tivesse feito? Onde estaria agora? É meu sonho estar na polícia e seguir a profissão de meu pai, mas isso é o bastante? Em dez, vinte anos ainda vou chafurdar essa bosta?”
— Janet, precisa de mais alguma coisa? — perguntou Simon, preocupado.
— Se puder, passa uma fita envolta dos animais para afastar esse povo.
Olhou mais uma vez para a floresta e desejou não ter que encará-la outra vez. Ao menos, não tão cedo.
Janet entrou na delegacia e acomodou-se na cadeira. Colocou o bloco de anotações quente e úmido em cima da mesa e folheou suas páginas rabiscadas. Havia-o comprado para justamente aquilo, mas não imaginava que fosse utilizá-lo, além de desenhar figuras aleatórias e traços sem sentido. Nada acontecia em Melford que justificasse anotações mais complexas. Talvez ainda não fosse nada, como Callab assim desejava, mas o coração de Janet alardeava o contrário. “Anota tudo, Janet! Tem algo acontecendo em Melford que nada se assemelha às habituais brigas de bar ou confusões domiciliares!”. Por que se sentia tão incomodada?
Voltou a si quando viu Callab por trás do vidro de sua sala, de costas para ela, com a mão inteira dentro da calça, coçando a enorme bunda.
— Mas que merda...
Melford era uma pequena cidade pertencente ao estado do Kentucky e afastada alguns quilômetros de Louisville, a cidade mais populosa do estado. Era uma cidade como todas as outras que não possuíam grandes atrativos. Suas ruas, embora asfaltadas, estampavam as feridas abertas como buracos e rachaduras causadas pelo tempo e pelas pessoas. Carecia de atenção. Era uma carcaça sem cor ou cheiro, que facilmente passava despercebida pelos retrovisores dos automotores que deslizavam pela Rodovia 68, buscando os grandes centros comerciais e incríveis pontos turísticos. Mas uma coisa em seu cerne pulsava e era a antítese desse invólucro ordinário.
A floresta. Era ela que irrigava a vida no interior seco de Melford. Recheada de ipês, figueiras, salgueiros e bordos que cresciam e entrelaçavam-se, fazendo com que ela se fechasse, como um domo, e cultivasse em seu interior o seu próprio bioma. Seus diversos tons esverdeados pincelavam um quadro de cores vivas em meio ao nada. Os poucos que reparavam em sua beleza sentiam-se fascinados pela sua grandeza. No entanto, ela possuía a estranha capacidade de influenciar aqueles que ousavam aproximar-se de seu território. Normalmente, ela causava uma sensação de vazio nas pessoas. Um certo desconforto suportável, principalmente àqueles que eram mais familiarizados com ela e que conheciam todo o peso que carregava. Aos poucos, essas pessoas deixaram de passear em seu interior, contentando-se em serem apenas espectadores. Os mais atentos podiam notar as mudanças acontecendo através do movimento sinistro das copas das árvores, da terra remexida pelas raízes, e pelo surgimento dos animais mortos no limiar do território da floresta. Era como se um perigoso gigante estivesse dormindo, mas os movimentos involuntários de seu corpo ferissem a terra ao redor.
Um velho homem ousava olhar para a floresta, mesmo que não se sentisse merecedor de contemplar suas mudanças. Não se achava digno ou corajoso, mas permanecia olhando. Sentado em uma cadeira de balanço que rangia com seu movimento pendular, na varanda de sua casa do outro lado da Rua 19, Barney Strall vislumbrava seu passado e futuro por detrás de um véu verde e impenetrável.
— Você sabe que não precisava vir junto,né?— Mas eu quis, ou você não me quer por perto? — perguntou Sandra, com um arqueio de sobrancelha e um pequeno sorriso. — Além do mais, estava sem ter o que fazer mesmo, então...— Não é isso... — respondeu Peter, enrubescido.— E outra! Você sabe que eu estou preocupada contigo, então não adianta tentar correr, porque meu segundo nome é Usain Bolt!— Preocupada comigo?— Óbvio, ou você acha mesmo que eu acreditei que as suas olheiras foram provocadas por causa de uma noite selvagem com as gatinhas?O táxi em que estavam virou a esquina e passou por cima de um buraco, arrancando um “filho da puta” do motorista, seguido por um “me desculpem”.— Eu só estou tendo uns pesadelos
A floresta era uma vitrine. Um quadro vivo e em movimento capaz de causar inveja à Gogh e Monet. Hora ou outra um traço venoso dessas pinturas, na forma de um artrópode ardiloso, visitava Barney, a fim de caçar alguma presa foragida do interior da floresta, que achava ser uma boa ideia esconder-se no porão úmido ou no sótão empoeirado do solitário morador. Por um instante, parou aquele eterno balançar e ficou estático. Apesar das aparências, o aroma do desespero brotava daquelas plantas. Ele sabia o que estava acontecendo. Sempre soubera.— E aí, meu amigo! Como vão as coisas?Um senhor alto de cabelos brancos e corpo esguio surgiu pela lateral da casa, como de costume, e tomou seu lugar ao lado de Barney. Algo no rosto pálido de Oswald estava diferente, Barney notou. Os olhos fundos e o cabelo bagunçado informavam muito mais do que um simples “bom
Henry Stock arqueou as costas no couro escuro da cadeira e jogou o cabelo grisalho para trás. Na mesa à sua frente — metodicamente organizada — repousava o retrato de sua amada esposa, Amélia. Avessa aos procedimentos cirúrgicos e aplicações estéticas que visavam retardar o envelhecimento, os sulcos e linhas em sua pele quebradiça estampavam para o mundo que ela já havia passado por muita coisa. Eram marcas do passado, dizia ela. Não importava o que Henry dissesse, se Amélia batesse o pé, não tinha mais conversa. Ele gostava de brincar com os mais chegados de que a última palavra no casamento sempre era a dele. “Sim, senhora!”. Eles se acabavam de rir, mesmo que já tivessem ouvido aquela piada algumas dezenas de vezes proferidas pelo capitão. Após dar andamento ao processo de sua aposentadoria, Stock começou a sentir
Os tentáculos arbóreos costuravam o caminho através da terra. Fragmentos rochosos e matéria orgânica depositadas por milhares de anos eram deslocados por uma força ininterrupta das arestas florísticas. As raízes transpassavam seus limites naturais e invadiam a área povoada da cidade em uma velocidade anormal. Os moradores acima permaneciam desatentos, alheios a qualquer possibilidade de terem seus afazeres diários interrompidos. Dia após dia a floresta continuava o seu êxodo. O que conseguia extrair dos animais já não era o bastante. Não possuíam o necessário.Robert Hall agora sentia mais dores de cabeça do que o habitual. Sua esposa, Darla, não conseguia mais concentrar-se nos afazeres domésticos como outrora, e a torta de amora que fazia toda sexta-feira precisou ficar para depois, para o descontentamento dos filhos. Esses, aliás,
— Sra. Thompson! — chamou Janet, com o dente recuperado nas mãos. Perguntas precisavam ser feitas e não tinha ideia sobre o tipo de resposta que teria.— Sra. Thompson! É a Janet!Deu três batidas na porta branca de madeira. Estava impaciente. Olhou em volta e deparou-se com uma imensa samambaia pendurada por correntes no teto. Como não tinha visto aquilo? Sua folhagem descia até o chão e ali depositava-se, formando algo parecido com um ninho. Lembrou-se de que a Sra. Thompson havia comentado sobre aquilo, mas Janet não havia dado a mínima. Continuava não sendo um caso para a polícia resolver, mas a planta possuía um aspecto sinistro que a deixava desconfortável.— Sra. Thompson! Preciso falar com a senhora... Assunto da polícia!O silêncio ainda pairava pela casa. Levou a mão à maçaneta e a girou lentamente.
Henry Stock estava deitado com os olhos voltados para o teto do seu quarto e com as mãos atrás da cabeça. Amélia dormia tranquila ao seu lado, sem incomodar-se com a turbulência que o deixava inquieto. Ficou assim até ver as primeiras luzes do dia passarem pela persiana e o alarme tocar.— Bom trabalho, amor — desejou a esposa, como sempre fazia.Henry deu-lhe um beijo na testa, colocou o uniforme e saiu. Antes de entrar no carro, pegou o celular e conferiu, mais uma vez, se não havia nada comprometedor nas mensagens ou fotos. Estremecia só de pensar que pudesse ter deixado alguma ponta solta. Mas aquela havia sido a última vez. Era uma promessa — como havia feito tantas outras vezes. As imagens das algemas na parede e o chicote pendurado atrás da porta lhe arremeteram de súbito e precisou conter a excitação.— Bom dia, Sam.— Bom dia, s
Callab Watson aguardava, com visível ansiedade, em sua sala-esconderijo as notícias sobre o desenrolar das investigações. Estava certo de que havia um louco à solta em Melford, e quanto menos colocasse o rosto largo à mostra, melhor. Apesar de, por muitas vezes, ter desejado que algo ruim acontecesse consigo próprio — principalmente na época da separação —, queria viver, mesmo que fosse na companhia dos chocolates e frituras. Seu telefone estava em cima da mesa, desligado. Na parte da manhã havia tocado sem parar e o nome do capitão estampava a pequena tela trincada tal qual um letreiro iluminado em uma viela escura. Não tinha o que e nem como falar com Henry. No mínimo, ficaria com a orelha vermelha de tanto que seria xingado. Como se não bastasse o celular, o telefone fixo esperneou irritado. Como ninguém ligava para aquele número, Callab havia esqueci
Durma, Criança!Ele está chegandoTrazendo os velhos sonhos roubadosDos tortuosos caminhosEle não entendia aquele olharO que havia naquela janela para tanto espiar?Vislumbrava o futuro incertoOu o passado que teimava em ficar?Durma, Menino!Ele já vai chegarTrazendo os velhos sonhos roubadosDos tortuosos caminhosAcordou como de súbitoEncontrar a mulher de branco era o seu intuitoNa floresta deparou-se com o momento fortuitoOnde os pés delicados flutuavam muitoApontavam os dedos miúdosE escancaravam os dentes pontudosBrincavam, zombavam e batia